Mariana Alvim, na BBC News Brasil em São Paulo – Pular, cantar, dançar, beijar — talvez.
Aproveitar festas como o carnaval que se aproxima pedem muita energia, e há um produto na prateleira de mercado mais próxima que promete entregar isso com alguns goles: as bebidas energéticas.
Só que, nos últimos anos, a bebida, associada na publicidade aos esportes, a atividades saudáveis e à vitalidade, vem sendo estudada por seus possíveis impactos negativos justamente na saúde. Autoridades pelo mundo também estão atentas ao tema — como no Reino Unido, onde o governo abriu uma consulta pública em 2018 e ainda analisa a possibilidade de proibição da venda dos energéticos a pessoas menores que determinada idade, possivelmente 16 ou 18 anos.
Os defensores do banimento apontam para aquilo que vem sendo alvo de estudos e preocupações: os efeitos de dois dos principais componentes destas bebidas, o açúcar e a cafeína. Há grupos considerados especialmente vulneráveis, como os mais jovens, cujos organismos são mais suscetíveis a altas doses dessas substâncias e que não têm maiores impedimentos para comprar os energéticos.
“Todos temos a responsabilidade de proteger as crianças de produtos que afetam sua saúde e educação, e sabemos que bebidas repletas de cafeína e, muitas vezes, açúcar, estão se tornando um item comum na dieta delas”, argumentou na época Steve Brine, subsecretário para Saúde Pública no Reino Unido.
Ao mesmo tempo, representantes da indústria reclamam que uma medida do tipo discrimina um único produto, entre muitos que também carregam esses ingredientes.
Em dezembro de 2018, uma avaliação técnica do Comitê de Ciência e Tecnologia do Parlamento britânico relatório concluiu não haverem evidências científicas suficientes para sustentar um banimento.
“O consumo de bebidas energéticas tem correlação com pessoas jovens adotando comportamentos de risco, como beber álcool e fumar, mas não é possível determinar se há uma causalidade nisso”, diz o relatório da comissão. “Do nosso ponto de vista, não há evidências suficientes sobre se os hábitos de consumo das crianças são significativamente diferentes para bebidas energéticas em comparação com outros produtos com cafeína, como chá e café.”
No Brasil, segundo dados da consultoria Kantar, do volume de energéticos consumidos em 2019, 1% ficou na faixa dos 11 a 17 anos; 26% de 18 a 29 anos; 18% de 30 a 39 anos; 28% de 40 a 49 anos; e 28% na parcela de pessoas com mais de 50 anos.
Com o carnaval se aproximando no país, a reportagem consultou especialistas e levantou dados sobre os efeitos para a saúde dos energéticos — que de acordo com levantamento da consultoria Kantar, é o terceiro tipo de bebida que mais cresce em penetração (percentual de indivíduos que consomem o produto) no consumo fora do lar no Brasil, atrás da cerveja e água de coco.
Spoiler: com doses relativamente altas de açúcar e cafeína, é o consumo excessivo destas bebidas — como várias latas em uma noite ou latas contendo quantidades grandes de líquido — que mais preocupa, e isso para pessoas mais velhas também. A realidade de ingestão dos energéticos também acende o alerta: eles muitas vezes são combinados com o álcool, cenário que gera preocupações extras (entenda abaixo).
Confira também, no final da matéria, o posicionamento da associação que representa as marcas de bebidas energéticas no Brasil.
O papel de velhos conhecidos: açúcar e cafeína
Tecnicamente, a “energia” prometida por estas bebidas, como em qualquer alimento, viria das calorias — ou seja, dos chamados macronutrientes, como as gorduras, os açúcares e proteínas, que são como combustível para o nosso corpo. Portanto, nos energéticos, a principal fonte de energia é mesmo o açúcar, explicou à BBC News Brasil Ellen Cristini de Freitas, pós-doutora em ciências médicas e professora da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto na área de nutrição e educação física.
O açúcar normalmente está nestas bebidas em doses de 10 a 30 g por cerca de 250 ml, a depender da marca — a reportagem consultou os rótulos de várias delas comercializadas no Brasil, considerando as do tipo padrão, ou seja, excluindo as versões com redução de açúcar ou sugar free.
Em geral, um produto com mais de 15 gramas de açúcar por 100 gramas é considerado como de alto teor de açúcar.
Em 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu a recomendação de consumo diário de açúcar para uma dieta saudável a 5% do total de calorias ingeridas. O limite máximo é de 10%. Assim, considerando também a recomendação genérica de que uma pessoa adulta consuma aproximadamente 2 mil calorias por dia, o limite máximo de 10% corresponde a 50 g de açúcar diários; e o limite considerado ideal, de 5%, a 25 g. O açúcar que está presente naturalmente em frutas, verduras, legumes e leite fresco não deve ser considerados nestes números.
Os problemas para a saúde do excesso de açúcar são bem sabidos: danos aos dentes, sobrepeso e obesidade, problemas cardíacos, alguns tipos de câncer e diabetes.
Se o açúcar dá “energia”, a cafeína é a responsável pelo “estímulo” trazido por estas bebidas, explica Ellen Cristini de Freitas. Há também a taurina (um aminoácido naturalmente presente no nosso corpo e em peixes e frutos do mar ingeridos) — mas em quantidades (nos energéticos) que, para Freitas, não são relevantes o suficiente para gerar os efeitos positivos ou negativos tipicamente associados a ela.
“Tanto a taurina quanto a cafeína são conhecidas como drogas psicoativas, ou seja, estimulantes diretos do sistema nervoso central — especialmente a cafeína. Nos 45 minutos iniciais, há um pico (da substância) na circulação, deixando o indivíduo mais alerta, atento, concentrado. Reduz-se o cansaço, a fadiga mental. Depois, o efeito da cafeína começa a cair e vem o efeito do açúcar”, explica a pesquisadora.
Nos energéticos, há aproximadamente 80 a 90 mg de cafeína para cada 250 ml de bebida. O consumo recomendado de cafeína para adultos é de até 400 mg por dia. Já crianças com menos de 12 anos não devem consumir cafeína; e, dos 12 e 18 anos, o consumo não deve passar de 100 mg por dia, de acordo com a Academia Americana de Pediatria.
Assim, mais uma vez, é a dosagem ingerida que preocupa — principalmente por seus efeitos de curto prazo, como irritabilidade, aumento da pressão arterial e da frequência cardíaca e piora no sono. Já o impacto da cafeína em problemas crônicos, como a hipertensão, ainda não têm tanta sustentação científica assim.
O cardiologista Roberto Kalil, professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês, destaca que ainda é preciso entender melhor os desdobramentos da combinação entre taurina e cafeína, “combo” que alguns estudos já mostraram potencializar os efeitos da última.
“Sabemos que o excesso destes estimulantes promove a liberação de hormônios de excitação, como a adrenalina e noradrenalina, que favorecem o aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca e promovem a vasoconstricção dos vasos”, escreveu à BBC News Brasil Kalil, que também é presidente do Instituto do Coração (inCor/HCFMUSP).
“Assim, as principais complicações cardiovasculares decorrentes do uso em excesso dos energéticos são as arritmias (aumento desordenado da frequência cardíaca) e os picos hipertensivos. Em casos extremos, podem causar infarto agudo do miocárdio.”
Quanto há de cafeína em:
– Uma caneca de café solúvel: 100 mg
– Uma caneca de café filtrado: 140 mg
– Uma caneca de chá preto: 75 mg
– Uma lata de Coca-Cola: 35 mg
– Uma lata de 250ml de energético: entre 80 e 90 mg
– Uma barra de chocolate puro: cerca de 25 mg
– Uma barra de chocolate ao leite: menos de 10 mg
A mistura com o álcool
Se a cafeína nos energéticos tem o papel de colocar o pé no “acelerador”, o álcool, que muitas vezes se junta na forma de vodca ou uísque, por exemplo, seria como colocar o pé no “freio” ao mesmo tempo.
Essa é a analogia escolhida por Erica Siu, coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), para falar dos problemas de se misturar energético com álcool, combo frequente nas noites.
Ela explica que as drogas são classificadas em três grupos: as depressoras do sistema nervoso central (cujo principal órgão é o cérebro); as estimulantes; e as perturbadoras. As primeiras reduzem funções cognitivas como memória e concentração; as estimulantes, o contrário. Já as perturbadoras alteram a percepção dos sentidos e produzem alucinações.
“A cafeína é um estimulante e o álcool, um depressor. E é justamente esse contraponto que as pessoas tentam fazer: tomar um estimulante para contrapor os efeitos depressores do álcool, como o sono, para, por exemplo, durar mais na noite”, aponta Siu, com formação em biomedicina e especialização em dependência química.
“Você pode até mascarar os efeitos depressores do álcool, o problema é que a mistura não corta os efeitos do álcool em si, mas sim a percepção da embriaguez. Tem vários estudos mostrando que a mistura leva a comportamentos de risco mais intensos, como beber maior quantidade de álcool e ter comportamento sexual de risco.”
Ela destaca também que a mistura muitas vezes é feita para adocicar o gosto do álcool — não à toa, em uma pesquisa de mercado da Kantar, os consumidores apontaram o sabor dos energéticos como o principal motivador para seu consumo.
Além disso, tanto a cafeína presente nos energéticos quanto o álcool são diuréticos, ou seja, aumentam o fluxo urinário e, com isso, podem levar mais facilmente à desidratação. Por isso, Siu recomenda, primeiro, que não se faça a mistura álcool e energéticos; e, quando houver o consumo desses produtos, que seja acompanhado da hidratação e alimentação.
Kalil também alerta para os efeitos da combinação na saúde cardiovascular.
“A associação da cafeína com bebida alcoólica pode se tornar uma bomba relógio no sistema cardiovascular, mesmo nos mais jovens. Se a pessoa já tem doença cardiovascular, como arritmias cardíacas e doença das coronárias, o cuidado tem que ser redobrado”, alerta.
“O álcool em excesso, por si só, já acelera o coração e faz subir a pressão arterial. Logo, com energético, os efeitos são potencializados. Sintomas como tremores e dor de cabeça também podem acontecer.”
Como produto ultraprocessado, energéticos deveriam sofrer restrições, diz organização
Para além dos impactos fisiológicos, Paula Johns, diretora da organização ACT Promoção da Saúde — que nasceu motivada pela agenda antitabaco — alerta também para as ações publicitárias e de marketing desses produtos.
“Eles são propagandeados como bons para a saúde, associados a atividades esportivas… Mas os energéticos trazem mais danos do que benefícios. Eles estão absolutamente dentro da categoria de ultraprocessados”, afirmou Johns à BBC News Brasil, referindo-se ao grupo de alimentos cujo consumo não é recomendado por ter altos níveis de sal, açúcar e gordura, além de uma lista de muitos ingredientes, boa parte deles artificiais.
“Sendo uma bebida açucarada, os energéticos devem estar submetidos às políticas que defendemos para os ultraprocessados: primeiro, serem sobretaxados; segundo, não deveria ser permitida sua publicidade; terceiro, deveriam vir com rótulos frontais informando sobre a quantidade de açúcar e outros componentes nocivos”, defende.
Hoje, as latas de energéticos trazem em seu verso a recomendação de que “crianças, gestantes, nutrizes, idosos e portadores de enfermidades” devem “consultar o médico antes de consumir o produto”. Além disso, há a advertência de que “não é recomendado o consumo com bebida alcoólica”.
Mas as restrições pelo poder público mais explícitas talvez se limitem a regras da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que determinam as quantidades de cafeína e taurina nestas bebidas — respectivamente 35 mg por 100 ml; e 400 mg por 100 ml.
O que dizem os produtores de energéticos
Em documento enviado à BBC News Brasil, a Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (ABIR), que representa o segmento, afirmou que a “venda de bebidas energéticas ocorre em mais de 165 países, estando em conformidade com as melhores e mais aprimoradas regulações internacionais”.
“A ABIR informa ainda que diversas pesquisas e literaturas nacionais e internacionais comprovam e atestam que as bebidas energéticas não são prejudiciais à saúde e/ou relacionadas a ocorrências de doenças, se consumidas com segurança”.
“Além disso, importante frisar que a quantidade dos componentes presentes nessas bebidas não tem qualquer efeito maléfico à saúde, podendo, inclusive, serem encontrados em alimentos habitualmente consumidos pela população em geral.”
A associação cita ainda pareceres da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) e do Committee on Toxicity of Chemicals in Food, Consumer Products and the Environment (COT) afirmando que não há indicação de que as bebidas energéticas tenham qualquer efeito específico, positivo ou negativo, quando combinadas com bebidas alcoólicas.
A ABIR evoca ainda uma pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, publicada em 2016 no periódico Jama Internal Medicine, que descartou os efeitos nocivos da cafeína para pacientes que sofrem de arritmia.