A segunda morte de Chico; Mendes Sob Bolsonaro, ex-seringueiros aceleram desmatamento e a troca de extrativismo por gado
Na FSP
Fabiano MaisonnaveLalo de Almeida
Mais do que a borracha, a castanha-do-pará é um valioso produto extrativista da Amazônia. Apesar da renda assegurada e de a árvore majestosa estar protegida por lei, neste ano a família do ex-seringueiro Francisco Diogo da Silva, 72, decidiu queimar um castanhal para substituí-lo por pasto e gado.
Nascido em um seringal que hoje está dentro da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, Silva começou a cortar aos oito anos de idade, seguindo os passos do pai. Dedicou-se à atividade ao longo de 58 anos, 49 deles no seringal Albracia, onde vive até hoje.
Nenhum dos dez filhos, porém, extrai o látex. Cinco estão na “rua”, expressão usada como sinônimo de cidade. Os demais moram com ele e se dedicam à pecuária. É a atividade contra a qual a Resex Chico Mendes foi criada em 1990, pouco mais de um ano após o assassinato do líder extrativista que lhe dá o nome. A morte foi encomendada por um pecuarista.
“Eles acham que o boi tem mais futuro. Se eles puderem vender um ou dois por mês, já têm dinheiro pra fazer a feira, remédio. E a borracha é cativa. Precisava ter um mercado certo, que não faltasse”, diz Silva sobre os filhos, em entrevista na casa de madeira e poucos móveis, onde a luz estava conectada havia um mês.
Silva nasceu no tempo “dos patrões”, quando os seringueiros, isolados na floresta, eram submetidos a um regime de trabalho análogo à escravidão pelos seringalistas. Contraíam dívidas impagáveis e eram proibidos de fazer roça. Ao contrário dos filhos, ele nunca frequentou uma escola. “Nem faço nem conheço o meu nome.”
Com a criação da Resex, as famílias se livraram de vez dos patrões e, principalmente, conseguiram uma barreira legal contra os fazendeiros de gado, que avançavam contra a floresta. As escolas se proliferaram, e a luz chegou pela rede elétrica ou por placas solares.
Outra grande melhoria foi a construção de linhas (estradas de terra), facilitando o acesso à cidade. Silva levava cerca de 14 horas para chegar a Xapuri em carro de boi. Hoje, basta 1h30 com o carro ou a moto dos filhos.
No aspecto ambiental, a Resex também vem freando o avanço do “arco do desmatamento”, frente de destruição da floresta amazônica que vai do Acre ao Maranhão e avança rumo ao norte. Às margens da rodovia que liga Rio Branco a Xapuri, quase tudo virou pasto.
Por outro lado, a economia em torno da borracha colapsou. A família Silva deixou de cortar seringa há seis anos. O ex-seringueiro afirma que a venda era incerta e que só vinha ocorrendo, no máximo, dois meses por ano. Muitas vezes, o látex extraído se perdia.
A agricultura tampouco gera renda, afirma o ex-seringueiro: “O povo na rua se interessa mais no que vem plastificado, de qualidade. Eles dizem que a da gente é mal feita. Você leva 500 kg de farinha e passa a semana todinha pelejando pra vender. A outra vem plastificadinha, o cabra já monta na prateleira. Não precisa comprar os materiais, ensacar.”
Silva e muitas famílias viram na pecuária a alternativa econômica mais viável, mesmo que seja ilegal. A atividade é permitida de forma bastante limitada.
Uma colocação (área destinada por família) só pode desmatar até 30 hectares, e apenas metade pode ser usada para a pecuária. Além disso, o desmatamento precisa de autorização prévia do ICMBio, responsável pela gestão da Resex. Segundo Silva, um dos filhos foi multado por tombar 200 hectares.
No livro “Rainforest Cowboys” (caubóis da floresta), de 2015, o antropólogo norte-americano Jeffrey Hoelle já apontava a tendência de avanço ilegal da pecuária como resultado, segundo ele, do fim de incentivos para borracha e agricultura. O gado, por outro lado, é visto como a melhor alternativa pelos seringueiros como uma poupança e um produto com grande liquidez.
Essa troca da floresta pelo capim se acelerou em 2019, no rastro da eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), que prometeu reduzir a proteção ambiental em favor da agropecuária. Segundo o ex-seringueiro, seus discursos, além do incentivo de um vereador de Xapuri, serviram de sinal verde para o avanço do pasto.
“Ele disse que o homem do campo, as pessoas de bem podiam usar as suas áreas. Aí a gente ficou naquela animaçãozinha”, relembra. “Ele disse que a pobreza podia trabalhar à vontade, não ia ser mais reprimida, ficar com medo.”
No segundo turno de 2018, o Acre deu a Bolsonaro a sua maior votação proporcional, 77% dos votos válidos. O presidente venceu também em Xapuri, onde Chico Mendes, líder histórico do PT no Acre, foi assassinado, com 59%.
No primeiro ano do governo Bolsonaro, o desmatamento na Resex cresceu 203% em relação a 2018. A área de floresta perdida, 74,5 quilômetros quadrados, é a maior da série histórica do sistema de monitoramento Prodes (Inpe), iniciado em 2008, e equivale a quase dois Parques Nacionais da Tijuca (RJ). Ao todo, a unidade já perdeu 7,5% da sua cobertura florestal.
A sinalização do governo Bolsonaro é de que não haverá mais incentivos ao extrativismo. Em artigo publicado em novembro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, comparou os seringueiros a “cobaias humanas”. Além disso, a deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC) protocolou projeto de lei que retira da Resex uma parte já tomada pela pecuária.
A liberação para o desmatamento, no entanto, não ocorreu até agora. Pressionado dentro e fora do Brasil pela onda de destruição, o governo Bolsonaro apertou a fiscalização. Silva diz que, em outubro, três filhos receberam multas ambientais que, somadas, chegam a cerca de R$ 880 mil. A quantia é impagável para a família.
“O que eu vou dizer? Vou me encolher, não sou as autoridades. Era escutar e ficar pedindo a Deus que eles baixassem o coração e deixassem ao menos o cara no lugar”, afirmou, em alusão à possibilidade de ser expulso da Resex.
Questionado sobre se o desmatamento não deixa triste, Silva afirma que sim, mas vê como uma tendência inevitável: “Tenho pena, fui criado só na mata mesmo. Mas o que há de fazer? Você vai na rua, é só campo. Não tem mata como era.”
Vizinha de Francisco, Luzineide Marques da Silva, 41, é uma das poucas pessoas que cortam seringa no Albracia. Há dois anos, sua produção é comprada pela empresa de sapatos Veja, de capital francês e que incentiva práticas sustentáveis. A borracha é levada até o Rio Grande do Sul, onde está a fábrica.
“Neste momento, a venda da borracha está ótima. Já vendi a R$ 1. Agora, está R$ 13,50, sendo que R$ 8 a empresa paga e R$ 5,50 vêm de subsídio”, afirma Luzineide, que também quebra castanha, colhida entre dezembro e fevereiro, mantém uma roça e cria algumas vacas, dentro do limite legal.
Antes da chegada dos sapatos Veja, a seringueira diz que sua família atravessava dificuldades. “No verão, estávamos passando necessidade, porque nós produzimos o leite, o arroz, o feijão, cultivamos o milho pra alimentar as galinhas, mas nós precisamos comprar o açúcar, o sal, o sabão, o óleo, essas outras coisas, né? Medicação nós precisamos, manter nossos filhos na escola, principalmente isso.”
Atualmente, diz, “dá pra viver, não passamos fome”. “Quando estamos em agosto, a seringa diminui, aí a gente já começa a passar um pouco de necessidade se for um ano que não temos legumes. No ano em que temos legumes dá pra comer bem, viver normal.”
Na sua colocação, ela mora com o marido, a quem ensinou a extrair seringa, três filhas, um cunhado e cinco netos. Ela nasceu na Resex e aprendeu a profissão com o pai, por ser a filha mais velha. Vivem em duas casas de madeira, não muito diferentes da do vizinho Francisco.
A seringueira diz que a partilha da terra entre os filhos não é desculpa para o desmatamento e aponta os índios como exemplo. “No ano passado, era um hectare com plantação de arroz, éramos dez pessoas e não conseguimos colher tudo em 20 dias. Perdemos 6.000 quilos. Por aí a gente já calcula, não precisa derrubar em grande quantidade. Não há necessidade de cada filha minha ter um roçado porque não daremos conta de plantar, de limpar e colher. Um exemplo são os indígenas, têm uma plantação só e todos vivem daquilo”.
Apesar de satisfeita com o tamanho da roça e com o preço da borracha, ela diz que a maioria dos seringueiros não tem o mesmo cálculo e está optando pelo gado. Das 35 colocações da sua região, afirma, apenas três trabalham com a seringa. Com a recente onda de desmate, a sua colocação está se transformando em uma ilha de floresta cercada de pasto.
“Isso foi o maior crime que aconteceu na face da Terra”, diz Luzineide, sobre o avanço do pasto sobre os seringais e a venda ilegal de lotes. “Se a Resex continuar indo no patamar que está indo hoje, nesse ritmo vai estar toda no chão. Só as famílias tradicionais, que nunca venderam um pedaço de chão, que nunca tiveram a cabeça pra criar boi é que vão manter suas condições em pé e talvez podem até ser mortas porque vão invadir.”
Ao menos nesse ponto, Francisco concorda com a vizinha que o futuro será sombrio: “Está mais quente o dobro. Era muito bom. Tinha friagem de oito dias sem ver o Sol. Agora não, passa um dia nublado, dois dias, o Solzão já parte, não tem quem aguente. Os diaristas [trabalhadores braçais] só faltam morrer. Uns dizem que foi mais desmatação da floresta. Outros dizem que estamos no fim das eras.”