Comunidade negra repudia série sobre Marielle, anunciada pela Rede Globo

Comunidade negra repudia série sobre Marielle, anunciada pela Rede Globo

Produção não conta com profissionais negros em sua concepção, e o diretor escolhido é o conservador José Padilha

A Rede Globo e a Globoplay anunciaram na sexta-feira (6) que vão produzir uma série ficcional baseada na vida de Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 continua sem respostas. Após anúncio do projeto sem pessoas negras em sua direção, diversos profissionais negros se manifestaram por meio de nota de repúdio, reproduzida pelo site Alma Preta.

Redação Rede Brasil Atual

O projeto é encabeçado por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino (Sexo e as NegasBruna Surfistinha e Tim Maia), George Moura (Onde Nascem os FortesAmores Roubados e O Canto da Sereia) e o diretor José Padilha.

“É revoltante. No entanto, numa sociedade capitalista, não surpreende que a história de uma mulher negra seja contada a partir do ponto de vista de três pessoas brancas. A única surpresa é o fato de terem demorado tanto para anunciar o projeto, visto a sanha que têm de se apropriar dessa história há tanto tempo”, afirmam os signatários da nota.

“Mas o desastre fica maior a cada detalhe. O diretor escolhido para comandar a série é o homem que deu e dá ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país. É uma violência extrema envolver numa série sobre Marielle o autor de filmes que retrataram de forma heroica a polícia mais violenta do país”, diz a nota sobre o diretor. 

“Para se ter uma ideia, após Tropa de Elite, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente. O retrato ali inspirou e inspira ações violentas em todo o país. Não à toa, a música tema da tropa no filme apareceu em dezenas de vídeos de apoio ao presidente em exercício. É o filme que mais exaltou o tema ‘bandido bom é bandido morto’, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia”, diz ainda a nota.

Além disso, o texto ressalta que ficcionalizar em torno de um caso que ainda está sendo investigado, também “é uma violência e uma naturalização do crime violento e dos 13 tiros disparados contra o carro de Marielle, que vitimaram ela e o motorista Anderson Gomes”.

Mônica Benício nega ter recebido R$ 2 milhões da Globo pela série

A viúva de Marielle Franco, Mônica Benício, negou neste domingo por meio de sua conta no Twitter que teria recebido R$ 2 milhões da Rede Globo para a realização da série ficcional. A afirmação foi publicada na coluna de Daniel Castro, no portal UOL.

Leia a íntegra da nota da comunidade negra:

Nota de repúdio:

Na sexta-feira, 6 de março de 2020, a Rede Globo e a Globoplay anunciaram uma série ficcional baseada na vida de Marielle Franco, cujo assassinato em 2018 continua sem respostas. Acontece que o projeto anunciado é encabeçado por três pessoas brancas. A roteirista Antonia Pellegrino (“Sexo e as Negas”, “Bruna Surfistinhas” e “Tim Maia”), George Moura (“Onde Nascem os Fortes”, “Amores Roubados” e “O Canto da Sereia”) e José Padilha.

É revoltante. No entanto, numa sociedade capitalista, não surpreende que a história de uma mulher negra seja contada a partir do ponto de vista de três pessoas brancas. A única surpresa é o fato de terem demorado tanto para anunciar o projeto, visto a sanha que têm de se apropriar dessa história há tanto tempo.

Mas o desastre fica maior a cada detalhe. O diretor escolhido para comandar a série é o homem que deu e dá ferramentas simbólicas para a construção do fascismo e genocídio da juventude negra no país. É uma violência extrema envolver numa série sobre Marielle o autor de filmes que retrataram de forma heroica a polícia mais violenta do país. Para se ter uma ideia, após “Tropa de Elite”, as inscrições no Bope aumentaram vertiginosamente. O retrato ali inspirou e inspira ações violentas em todo o país. Não à toa, a música tema da tropa no filme apareceu em dezenas de vídeos de apoio ao presidente em exercício. É o filme que mais exaltou o tema “bandido bom é bandido morto”, simplificando a discussão da violência urbana a uma questão de polícia.

Além disso, ficcionalizar em torno de um crime que ainda está sendo investigado também é uma violência e uma naturalização do crime violento e dos 13 tiros disparados contra o carro de Marielle, que vitimaram ela e o motorista Anderson Gomes.

Depois disso, Padilha ainda dirigiu a série “O Mecanismo”, cujas falsificações históricas só fizeram recrudescer o discurso fascista que resultou no governo mais autoritário e violento das últimas décadas no Brasil.

É revoltante mais uma vez ver a branquitude disfarçar de boas intenções a apropriação da imagem de uma mulher negra lésbica, favelada, mãe, filha, irmã e esposa. Para defender sua propriedade de contar a história de Marielle, Antonia Pellegrino usou como argumento: “eu a conhecia muito bem”, “eu ajudei na sua primeira campanha”, “eu segurei o seu caixão”.

Mas a mesma pessoa que diz ter se inspirado em Marielle e diz ter respeito pelo feminismo negro, se lança como arauto para contar essa história aliada aos seus pares, masculinos e brancos. Tudo isso é extremamente violento. É um desrespeito a tudo que Marielle defendia.

Se qualquer uma dessas pessoas tivesse entendido de fato a luta de Marielle, saberia o quão violento é fazer esse projeto encabeçado apenas por pessoas que não refletem sua imagem e semelhança. Existe um valor simbólico e financeiro em contar essa história. Um valor que vai ficar na mão daqueles que sempre dominaram o audiovisual no Brasil.

Ter em algum momento convivido ou lutado ao lado de Marielle não tira o peso da decisão de se apropriar da história dela dessa forma.

Padilha disse em entrevista ao “O Globo” que “se dedicou por muito tempo a histórias de violência urbana do Rio. Essa é uma que precisa ser contada”. A história de Marielle é muito mais do que apenas a violência institucional. Ela é muito mais do que uma vítima da violência urbana que tentam fazer parecer. Seu assassinato é o reflexo da necropolítica que ela denunciava.

A história de Marielle é também a história das tecnologias afetivas, pois Marielle sempre falou sobre afeto, empatia, mulheres lutando juntas, jovens negras movendo estruturas. A branquitude quer se apropriar e narrar essa história sem ao menos entender sobre o que ela é. Tudo isso é desesperador demais.

Às mulheres e homens pretos e lésbicas foi negado o direito de contar essa história. Pois ainda que o racismo estrutural e institucional tente nos paralisar, homens e mulheres negros e negras se tornaram grandes realizadores, comandando produções e recebendo reconhecimento aqui e fora o Brasil. Por isso, é ainda mais perverso saber que essa história só será contata se for produzida por essas pessoas, pois o racismo produziu mecanismo para distanciar pessoas negras do direito de contar a própria história.

Quem trabalha no audiovisual conhece bem as estratégias perversas da branquitude que domina esse meio e entende o código por trás de afirmações “bem intencionadas” sobre transformar a série numa “escola”. Isso significa que as decisões finais serão todas tomadas por brancos e que os profissionais não-brancos da equipe terão no máximo o direito de brigar e adoecer tentando deixar a narrativa menos racista, sendo subjugados pelo tokenismo.

Marielle, em sua última fala pública, contou a respeito da prefeitura do Rio: “primeiro eles saem chutando a porta, depois eles pedem desculpas e por último oferecem um microcrédito, que não repara nada”. Esse é o modus operandi da branquitude. Se apropriar como se tudo a ela pertencesse: nosso corpos, nossa subjetividade, nossa história. É um desastre, é violento e racista.

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