Governo de extrema direita e seus aliados recomendam medidas sem respaldo científico para prevenir o contágio.
Brasil de Fato | Nova Delhi (Índia)
Homeopatia, ioga, esterco e urina de vaca. Essas foram algumas das receitas sugeridas pelo governo de extrema direita da Índia e seus aliados para o enfrentamento ao coronavírus. Nenhuma delas é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como medida de prevenção.
Até o momento, o país tem 73 casos confirmados e nenhuma morte registrada. Na capital Nova Delhi, as escolas primárias estão fechadas até o fim de março.
A Índia não possui uma estrutura de atendimento comparável ao Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. A saúde é considerada uma responsabilidade dos estados, que muitas vezes são incapazes de garantir cobertura em regiões vulneráveis ou isoladas.
Em 2018, o país asiático investiu em saúde cerca de US$ 209 por habitante, o equivalente a R$ 982. No Brasil, o investimento foi de US$ 1.282, o equivalente a R$ 6.025.
Segundo uma pesquisa do Instituto Nacional de Política Pública e Finanças, realizada com moradores de bairros pobres do estado de Delhi, 80% dos entrevistados utilizam a medicina privada e 15% recorrem a curandeiros após a identificação de sintomas.
A expectativa de vida média dos indianos é de 68 anos, sete a menos que a dos brasileiros. Entre as principais causas de morte estão diarreia, pneumonia e tuberculose.
Desinformação
O ministro-chefe (cargo equivalente a governador) do estado de Uttar Pradesh, Yogi Adityanath, participou da inauguração de um evento que reuniu praticantes de ioga de 11 países no dia 1º de março. Na ocasião, ele citou os benefícios dessa prática milenar para a prevenção e cura de doenças. “Se uma pessoa superar o stress e as doenças mentais, então não irá mais sofrer com pressão arterial, ataques do coração, insuficiência renal, disfunção hepática, ou mesmo coronavírus”, afirmou.
No dia seguinte, Suman Haripriya, integrante da Assembleia Legislativa (cargo equivalente a deputada estadual) do estado de Assam, usou o plenário para fazer uma sugestão ainda mais inusitada.
“Sabe-se que a urina e o esterco de vaca têm valores medicinais e que estão sendo usados até para tratamento de câncer”, disse. “Acho que usar esterco de vaca e urina para curar o coronavírus seria benéfico”, completou durante uma sessão de orçamento da assembleia.
Do lado de fora da casa legislativa, Haripriya acrescentou: “O mundo está buscando a Índia para curar o coronavírus. A Índia vem fazendo algumas descobertas. Então, o esterco de vaca e urina podem ser usados para obter a cura. Se estrume de vaca e urina são utilizados nos yagnas [rituais hindus], é porque há algo de científico nisso”.
A vaca é sagrada, segundo a tradição do hinduísmo, e sua urina e fezes são usadas no interior do país para a preparação de bebidas com suposto potencial curativo. Suman Haripriya recomendou ainda que o líquido seja borrifado nos ambientes como forma de “purificação” contra o coronavírus.
Yogi Adityanath e Haripriya fazem parte do Partido do Povo Indiano (BJP), o mesmo do primeiro-ministro Narendra Modi, e são aliados ferrenhos do atual governo. A sigla é o braço político do grupo paramilitar Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), que propõe a “refundação” da Índia a partir dos valores do hinduísmo, religião predominante no país.
O próprio governo Narendra Modi, que lidera o país desde 2014, divulgou em 29 de janeiro um comunicado oficial sugerindo o uso de homeopatia, sem comprovação científica, contra o coronavírus.
Primeiro-ministro Modi (esq.) cumprimenta o ministro-chefe de Uttar Pradesh e colega de partido, Yogi Adityanath (dir.) / AFP/Arquivo
Um dos principais cabos eleitorais do primeiro-ministro, o guru Baba Ramdev participou de um programa de televisão na semana passada e falou sobre o coronavírus. “É como outro vírus qualquer, mas tem mais força porque vem de um animal”, afirmou.
Em seguida, sugeriu uma receita caseira com água, gengibre, pimenta preta e outras especiarias. “Essa mistura nos salvou da gripe suína e da chikungunya. Então, também podemos derrotar o coronavírus”, concluiu.
As sugestões não convencionais para prevenção do coronavírus repercutiram em todo o país e se transformaram em uma disputa entre direita e esquerda – a Índia vive um momento de polarização semelhante ao do Brasil.
Apoiadores do governo, chamados de “nacionalistas hindus”, foram às redes para endossar a importância dos métodos recomendados por Modi e seus aliados, enquanto opositores se dedicam a criticar ou ironizar as medidas.
Quatro moradores de Karnataka, no sul da Índia, foram flagrados tomando um banho de fezes de vaca. Em um vídeo divulgado no Youtube, eles recomendam que os compatriotas façam o mesmo, uma vez por mês, para se tornarem imunes ao coronavírus.
Na última quarta-feira (11), o governo indiano suspendeu todos os vistos de turismo até 15 de abril e afirmou que colocará em quarentena os cidadãos vindos de sete países: China, Itália, Irã, República da Coreia, França, Espanha, Alemanha.
V. R. Raman, representante da Rede de Recursos de Saúde Pública da Índia, denomina “pânico informativo” a reação causada por informações desencontradas e sem respaldo científico. “Há muitas organizações, políticos e líderes religiosos divulgando informações imprecisas, e muita gente acreditando. Nada disso está provado cientificamente”, reforça. “Lavar as mãos com frequência, evitar multidões e manter certa distância ao conversar em lugares públicos são maneiras fáceis e eficientes de evitar transmissão e contágio”, explica.
Atalho
Médico e integrante do Movimento de Saúde Popular da Índia, Gargeya Telakapalli considera que as receitas caseiras são parte de uma estratégia política.
“E não é só para o coronavírus. Eles vêm recomendando para qualquer doença essas soluções fáceis, em vez de propor soluções reais. O que fazer quando não se consegue melhorar o sistema de saúde? Propagar informações sem sentido”, aponta.
O especialista ressalta que apoiadores do governo nacionalista hindu têm aproveitado a pandemia para reforçar alguns de seus dogmas: “Muitos dizem que o coronavírus começou porque os chineses comem vários tipos de carne, e que uma forma de prevenir seria adotar uma dieta vegetariana”, pontua.
Telakapalli acrescenta que há divergências entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Ayurveda (medicina tradicional indiana), Ioga e Naturopatia, criado por Modi em 2014.
A vaca é um animal sagrado na tradição hindu / AFP
“Um problema grave que temos são as instituições governamentais que se baseiam em métodos não científicos”, analisa, ponderando que as notícias falsas não vêm só da direita. “Já vi pessoas na extrema esquerda espalhando informações equivocadas, falando que o coronavírus seria uma invenção da indústria farmacêutica para as pessoas comprarem mais remédios”, aponta.
Prevenção e tratamento
Em 1980, a China tinha 2,2 leitos hospitalares a cada mil habitantes, em comparação com 0,8 na Índia. Esse número saltou para 3,8 na China em 2011, enquanto diminuiu para 0,7 na Índia. O dado divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) ajuda a explicar a incapacidade do sistema público indiano de lidar com epidemias e pandemias.
Para Telakapalli, no caso do coronavírus, o principal problema não é a falta de leitos. “Temos hospitais suficientes, considerando que 70% procuram o sistema privado quando têm algum sintoma. A questão é que o próprio governo vem destruindo há anos o sistema público de saúde. Faltam médicos e enfermeiros, e as condições de trabalho são cada vez piores. Eles estão fazendo horas-extras, recebem salários atrasados, e agora, com o coronavírus, estão trabalhando sob uma pressão imensa”, afirma.
O médico lembra que a Índia registra centenas de mortes todos os dias por diarreia e tuberculose, por exemplo, mas a atenção dada ao coronavírus é maior porque afeta os ricos e a classe média, que estão em pânico.
Representante do Fórum de Ciências de Delhi, D. Raghunandan lembra que ainda não houve transmissão comunitária na Índia e já se identificou quem transmitiu o vírus a cada um dos infectados.
“Os casos de coronavírus vieram de fora do país, trazidos por não indianos e italianos, ou indianos vindos de fora”, ressaltou, em entrevista ao canal indiano Newsclick.
Por outro lado, o pesquisador chama a atenção para a aparente eficiência dos exames realizados nos aeroportos, no momento do desembarque.
“A triagem não resolve o problema quando o vírus ainda não se manifestou. Vários dos casos, no estado de Kerala, foram transmitidos por pessoas que passaram por uma triagem no aeroporto e foram liberadas para o convívio”, pondera D. Raghunandan.
O médico Gargeya Telakapalli pede atenção sobre a forma como serão distribuídas as vacinas e medicamentos contra o coronavírus pelo mundo.
“As companhias privadas que estão produzindo as vacinas estão usando as amostras retiradas dos pacientes. Portanto, a OMS precisa garantir que cada país receba esses medicamentos proporcionalmente ao número de casos. O que vemos, usualmente, são os países ricos recebendo essas vacinas primeiro, porque eles têm recursos para comprá-las”, alerta.
Edição: Leandro Melito