Fica cada vez mais distante a busca de uma luta organizada para chegarmos à clarificação deste crime, que possivelmente exporia as relações entre governo, polícia e redes criminosas no Rio.
No El País
Março evoca, além de suas águas que tudo levam —como uma vez escreveu o compositor Tom Jobim― acontecimentos que não podem e não devem ser apagados ou esquecidos. São acontecimentos que nos convidam a refletir, a todo o momento, sobre como lidamos com processos históricos estruturantes no campo da política, dos direitos fundamentais e da existência em um mundo que nos desafia todos os dias.
No plano global, março demarca a importância de olharmos para as questões que estruturam a desigualdade de gênero mundo afora. Um momento que pode ser —embora não somente— relevante para visibilizar de forma positiva o conjunto de lutas e conquistas travadas diariamente pelas mulheres, em todas as suas potencias e possibilidades.
Há no Brasil, no entanto, um fato que marca este mês de forma dolorosa: foi em março de 1964 que aconteceu o golpe militar de Estado.
Um momento da nossa história que precisa ser fortemente lembrado e reconhecido, pelo grave atentado contra toda uma sociedade, que foi cerceada em seus direitos básicos como a liberdade de expressão. Além disso, milhares de indivíduos tiveram a própria vida ceifada por não concordar com atrocidades cometidas.
É um período nefasto da nossa história, onde a perseguição, prisão e tortura de muitos cidadãos deixou marcas profundas e eternas nos planos objetivos e subjetivos destas vidas e de seus familiares. Por esta e tantas outras razões, é inconcebível aceitarmos um momento de deteorização vertiginosa da democracia, pela qual tanto lutamos para estabelecer como regime. É vergonhoso observar o processo em curso —orquestrado por parte de certos grupos— de cerceamento dos direitos básicos conquistados no país, fatos que causam repugnância quando vislumbramos as consequências que atentam contra os direitos da população brasileira.
O Rio de Janeiro —conhecido solo fértil para gerar e aprofundar vícios e práticas consideradas nocivas à vida pública— tem visto a preservação e a garantia dos direitos da população decair em uma espiral sem fim, no que tange o controle das violências e das redes criminosas que já ocupam diferentes instâncias de poder.
É nesse cenário que março derrama novamente suas águas pesadas quando, em 2018, as circunstâncias do assassinato da vereadora Marielle Franco rompem todos os limites éticos aos direitos humanos. A notícia expõe a gravidade das relações espúrias que vem sendo geridas, numa linha temporal, perpassando inúmeras gestões de governadores e prefeitos que fazem parte desse estado.
Dois anos após esse crime bárbaro, uma pergunta insistente e indigesta continua a desestabilizar o cotidiano: quem mandou matar a vereadora Marielle Franco e, como consequência, o motorista Anderson Gomes? Como olhar de forma passiva para governantes, parlamentares e gestores das políticas públicas depois de um assassinato que escancara a fragilidade e a profundidade de um país que não esclarece seus crimes, principalmente aqueles que atingem grupos de determinados extratos sociais.
Como uma das pessoas cujo o nome se encontrava nas possíveis listas de buscas na internet realizadas pelo acusado pelo assassinato da vereadora, o policial militar reformado Ronnie Lessa —divulgadas pelo Ministério Público em outro março, desta vez de 2019— falo de um lugar completamente desprotegido e exposto. Desde então, são muitos os questionamentos e dúvidas sobre os resultados das investigações e para onde ela aponta.
É nesse hiato de tempo, dois anos inteiros sem a elucidação do brutal homicídio de Marielle Franco e Anderson Gomes, que uma profusão de especulações sobre a vida da vereadora e sua atuação política se fazem presentes; além de toda apropriação e uso indevido de sua memória e imagem por toda a sorte de grupos e pessoas. Nesse modo operante, fica evidente que está cada vez mais distante a busca de uma luta organizada para chegarmos à clarificação deste crime, que possivelmente exporia as relações entre governo, polícia e redes criminosas no Rio de Janeiro.
Algumas organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, têm cobrado de forma sistemática e incansável —bem como a família de Marielle Franco e o partido do qual ela fazia parte— a responsabilização dos mandantes desse assassinato. Por mais que pese esse esforço, há muitos labirintos e entrelinhas que desconhecemos para que a justiça se faça —neste e em muitos ouros crimes nesse país. A nós, neste março de 2020, resta relembrar à sociedade um pedido que não deve ser levado com as águas nem com o tempo: que a morte dessa parlamentar não seja em vão.
Eliana Sousa Silva é diretora da ONG Redes da Maré, pesquisadora em segurança pública e professora visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP