Com pouco mais de mil casos de coronavírus, Japão contraria recomendações sanitárias e causa desconfiança às vésperas de uma Olimpíada cada vez mais improvável.
Revista Piauí – Antônio Prada
Nova York, 12.315 casos confirmados de coronavírus e 76 mortes até sábado, 21 de março. Do aeroporto JFK, a funcionária de uma multinacional de tecnologia embarca para o Japão, onde reside. Quatorze horas e 10 minutos depois, aterrissa no aeroporto de Narita. Passa pela alfândega sem ser submetida a nenhum tipo de controle sanitário e em duas horas chega ao centro de Tóquio. À noite, janta com amigas e encontra a cidade em ritmo normal: bares, restaurantes e casas noturnas abertas, metrôs funcionando normalmente. Nenhum sinal aparente de que há uma pandemia no ar.
Não é uma surpresa. Até aqui, o Japão, um dos primeiros países fora da China a ser atingido pelo coronavírus, é um ponto fora da curva nos gráficos oficiais da pandemia que aterroriza o mundo diariamente. É a nação desenvolvida menos afetada e, aí sim uma surpresa, com protocolos de ações de prevenção e combate na contramão dos da maioria das países atingidos pelo vírus e das recomendações da Organização Mundial da Saúde.
O Japão acumulava 1.101 casos confirmados e 41 mortes até 22 de março. O primeiro caso do Covid-19 foi registrado em 10 de janeiro. Os números excluem os 712 infectados e as 8 mortes do polêmico cruzeiro Diamond Princess, que ficou retido em Yokohama, de quarentena.
A boa notícia dos números oficiais, no entanto, carece de lógica quando se comparam período de surto, casos confirmados, mortes, ações de combate e testes ao redor do mundo. A questão virou um enigma entre especialistas e um motivo de suspeita para os que acusam o governo de maquiar a situação para não prejudicar ainda mais a economia e continuar garantindo a realização da Olimpíada, cada vez mais improvável. A pressão de atletas e de vários países provocou uma reunião de emergência neste domingo, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu iniciar as discussões sobre um possível adiamento dos jogos, previstos para começar em 24 de julho. A decisão será tomada em um mês e, nesse meio tempo, os interesses de federações, comitês olímpicos, detentores dos direitos de televisão, patrocinadores, do governo japonês e de centenas de outros envolvidos devem ser alinhados. O cancelamento, segundo o presidente do COI, Thomas Bach, está fora de cogitação.
Enquanto o mundo se isola e paralisa praticamente todas as atividades, o Japão se limitou a decretar emergência no estado de Hokkaido, região com maior número de casos, cancelar eventos esportivos, fechar grandes espaços de entretenimento e paralisar todas as atividades escolares por 3 semanas. O prazo vence na próxima semana e a perspectiva é de que tudo volte ao normal, em etapas. O reinício das aulas a partir do dia 30 já foi confirmado pelo primeiro-ministro Shinzo Abe. O tradicional parque de diversão em Tokorozawa, em Saitama, foi reaberto neste sábado, superlotado. Com o aumento de temperatura, praias como as de Enoshima, a 50 km de Tóquio, também ficaram abarrotadas neste final de semana. A Legoland e o Sea Life Nagoya, em Aichi, retornam com algumas de suas principais atrações a partir de segunda-feira, 23.
De forma compulsória, empresas ainda orientam funcionários a trabalharem remotamente, o que, em muitas delas, já não tem funcionado. A vida segue ritmo normal, com os principais centros de comércio lotados, como sempre – sem, claro, boa parte dos cerca 2,7 milhões de turistas, especialmente chineses, que se espalham mensalmente pelas centenas de atrações turísticas do país.
O Japão tampouco fechou fronteiras de forma radical até agora, como fizeram Estados Unidos, Comunidade Europeia e países da América Latina. Durante a maior parte dos cerca de três meses do surto, as ações de bloqueio sempre foram pontuais. Somente no dia 9 de março, quando já havia um pico consolidado de casos na China e na Coréia do Sul, o governo anunciou restrições de viagens para viajantes provenientes desses países. Em 15 de março, o Japão proibiu a entrada de viajantes estrangeiros com passaportes chineses emitidos pelas províncias de Hubei e Zhejiang, bem como daqueles que visitaram regiões do Irã e Itália nos últimos 14 dias.
Em 18 de março, o Japão adicionou à lista duas províncias da Suíça, quatro estados na Espanha e todo a Islândia. A proibição entrou em vigor no dia 19 de março. Desde sábado, dia 21, viajantes de 38 países precisam ficar em quarentena por 14 dias em instalações aprovadas pelas autoridades japonesas. Esses países incluem os 26 países europeus signatários do acordo de Schengen (que abre fronteiras e permite livre circulação de cidadãos), além da Irlanda, Andorra, Irã, Grã-Bretanha, Egito, Chipre, Croácia, São Marinho, Vaticano, Bulgária, Mônaco e Romênia. Neste domingo, a quarentena de duas semanas foi estendida a quem estiver chegando dos Estados Unidos.
Arecomendação da OMS de “teste, teste, teste”, encampada com êxito pela vizinha Coreia do Sul, não foi adotada, apesar de o Japão ter kits disponíveis, ao contrário de muitos países. O Japão mantém um protocolo de testar apenas aqueles com sintomas visíveis ou histórico de contato direto com aqueles cujos testes foram positivos, tentando isolar pequenos grupos antes que eles cresçam. Novos testes que produzem resultados em 10 a 15 minutos estão se tornando disponíveis, mas mesmo com a tecnologia aprimorada, segundo a política atual, um teste só será administrado nas circunstâncias mais extremas, quando as pessoas tiverem febre por quatro dias ou mais.
Até este final de semana, enquanto a Coreia do Sul aplicava cerca de seis mil testes por 1 milhão de habitantes, o Japão se limitava a 117 por milhão. A Alemanha, outro case de sucesso no combate ao vírus, acumulava até sábado 18.610 casos confirmados e 55 mortos, e 4.000 testes por milhão. Portanto, se há menos testes, há menos casos confirmados. Autoridades do Japão defendem seu regime de testagem. “Em primeiro lugar, acreditamos que não há tanta necessidade de testes no Japão”, disse Takuma Kato, vice-diretor da divisão de controle de doenças infecciosas do Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar, já em 11 de março. Kato garantiu que o Japão não está enfrentando uma explosão de números de infecções com sintomas graves, como visto em países como Itália. “A proporção de pessoas que deram positivo para o vírus em relação àquelas que foram testadas nunca é alta”, disse.
Não é o que pensa o infectologista Kentaro Iwata, professor de doenças infecciosas na Universidade de Kobe, um dos mais ferozes críticos de como o governo lidou com a situação do navio Diamond Princess. “É difícil explicar de forma abrangente (capacidade de teste no Japão como um todo), pois isso varia em todo o país. Mas não está sendo feito o suficiente ao meu redor, pelo menos. O Japão não conteve o vírus, ou talvez eu deva dizer que não podemos sequer julgar se o contivemos sem realizar um número suficiente de testes”, disse ele, enfatizando a necessidade de fazer mais testes em áreas onde as infecções estão aumentando.
Nas ruas e nas redes sociais a tática do governo também é questionada. “Só quem mora no Japão sabe o descaso do governo em relação ao coronavírus. Isso de baixa porcentagem de casos é só pura negligência na área de saúde, como sempre aconteceu. Conheço muita gente ardendo em febre tendo que ficar em casa, sem atendimento porque os hospitais se recusam a atender mesmo pagando, até porque aqui não existe SUS (a menos que você esteja em estado grave). Os números de testes da doença são extremamente baixos por província. Na cabeça deles, se não tem diagnóstico, não tem casos, então não diagnosticam praticamente ninguém. Tampouco há quarentena”, desabafou em uma rede social Lauro Hideki, de 20 anos, que trabalha como inspetor em uma fábrica em Ota/Gunma.
Antes da decisão de discutir o adiamento dos jogos, a aeronave que carregava a chama olímpica chegou na dia 19 de março à base de Matsushima da Força Aérea de Autodefesa do Japão. Saiu de Atenas, solitária, devidamente acomodada numa poltrona de primeira classe de um avião quase vazio. A cerimônia de chegada não teve espectadores. A chama tem previsão de percorrer a região de Tohoku atingida pelo tsunami e pelo terremoto, no que os organizadores chamam de turnê de “chama de recuperação” até a cerimônia oficial de lançamento em Fukushima, em 26 de março. Na manhã deste domingo (22), para ver a tocha olímpica na estação de trem em Hanamaki, cerca de dez mil pessoas fizeram fila – gente com e sem máscara. Os organizadores pediram que o público não crie aglomeração na rota de revezamento da tocha. Além disso, cancelou muitos eventos ao longo do caminho e restringiu o acesso do público a outros.
O governo japonês, até este domingo, continuava afirmando que estava determinado a realizar uma Olimpíada de Tóquio “segura e protegida” dentro do cronograma. O coro dos descontentes, no entanto, ecoou alto e pressionou o Comitê Olímpico Internacional (COI) a começar a rever a posição. O presidente dos EUA, Donald Trump, sugeriu um atraso de um ano por causa da pandemia. A diretoria da federação de atletismo dos Estados Unidos pediu enfaticamente o adiamento dos jogos, frisando que seguir adiante com os preparativos olímpicos “não seria do melhor interesse de nossos atletas”. O pedido se soma ao realizado por vários atletas ao redor do mundo. “O correto e responsável a fazer é priorizar a saúde e a segurança de todos e reconhecer de forma apropriada os efeitos que tem esta difícil situação, e que segue tendo, sobre nossos atletas e seus preparativos para os Jogos Olímpicos”, afirmou a federação de natação norte-americana.
O Comitê Olímpico Brasileiro (COB) também defendeu o adiamento para 2021. “Como judoca e ex-técnico da modalidade, aprendi que o sonho de todo atleta é disputar os Jogos Olímpicos em suas melhores condições”, afirmou o presidente da entidade, Paulo Wanderley, em comunicado. “Está claro que, neste momento, manter os Jogos para este ano impedirá que este sonho seja realizado em sua plenitude”.
Alheio ao horror da pandemia, o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos chegou a ventilar que não haveria devolução do dinheiro dos ingressos comprados antecipadamente caso a Olimpíada fosse de fato adiada, segundo a imprensa japonesa. Conforme as mesmas fontes, o comitê teria um acordo com a empresa responsável pela comercialização: que só ocorreria ressarcimento dos valores “caso não fossem cumpridas as obrigações estipuladas no contrato para a realização da Tóquio 2020”. Se as causas do adiamento ou cancelamento fossem por “força maior”, a empresa não seria responsável.
O Japão, ainda impassível, segue o script com quase nenhum diálogo, relatando os casos confirmados de coronavírus dentro do seu protocolo e virando, até segunda ordem, um ponto fora da curva da pandemia mundial. Mas as dúvidas permanecem, embaladas pela expectativa real de adiamento da Olimpíada: o surto no Japão já está mesmo controlado? Ou o pior ainda está por vir?