Não devemos esperar que a tragédia vire manchete de jornal para agir. Será tarde demais para proteger as populações que cuidam do mais importante patrimônio para o futuro do Brasil.
No El País
A Amazônia corre o risco de ser, uma vez mais, esquecida para depois ser lembrada apenas quando a tragédia atingir proporções alarmantes. Falo isso sobre a crise da Covid-19, com especial ênfase para a Amazônia profunda, habitada por populações tradicionais e povos indígenas.
A Amazônia possui mais de 10.000 comunidades de populações tradicionais (ribeirinhos, extrativistas, quilombolas, pescadores etc.) ―a maior parte delas sequer catalogada pelos órgãos governamentais. Na Amazônia continental, que envolve nove países, existem 511 povos indígenas, sendo 66 em isolamento voluntário. Esses segmentos das nossas sociedades são os mais vulneráveis à crise do coronavírus e ainda não tem recebido a devida atenção dos governos, empresas e instituições privadas de investimento social. O primeiro caso de coronavírus numa pessoa indígena (etnia Kokama) ocorreu no final de março, em Santo Antônio do Içá, situada a nove dias de viagem de barco até Manaus.
A maior vulnerabilidade e risco dessas populações pode ser resumida em seis fatores. Primeiro, existe uma maior dificuldade de acesso às informações sobre como prevenir e lidar com os casos de contágio. A maior parte dessas populações não possui energia elétrica regular, tendo acesso muito limitado ―e às vezes inexistente― aos meios de comunicação (televisão, telefone, internet, etc.). Segundo, possuem pouco acesso à água limpa (livre de contaminantes), assim como material de limpeza para higienização pessoal (sabão, álcool, etc.). Terceiro, possuem acesso muito limitado aos serviços do SUS que, na maior parte das vezes se resume a um agente indígena ou comunitário de saúde com pouco ou nenhuma capacitação técnica e com pouquíssimos recursos para atendimento. Quarto, possuem custos de deslocamento de pacientes em estado grave muito maiores do que os moradores da zona urbana. Quinto, possuem um maior risco de contágio com a migração desordenada das comunidades para as sedes municipais. Isso sobrecarrega ainda mais os SUS municipais, que já são precários na maior parte dos municípios do interior. Sexto, possuem um risco crescente de contágio em função da migração de pessoas das áreas urbanas para as comunidades em busca de se isolar do coronavírus. Essa migração local aumenta a velocidade da disseminação do vírus para essas populações.
Essas especificidades da Amazônia profunda criam um contexto totalmente singular e requerem uma estratégia de ação diferenciada. Diante disso, o que fazer?
Primeiro, é necessário sensibilizar as autoridades e instituições responsáveis pela saúde públicapara as especificidades da Amazônia profunda. Segundo, é necessário criar uma coalizão de atores locais para desenhar uma estratégia de ação que incorpore o estado da arte das ciências da saúde e, ao mesmo tempo, o conhecimento da realidade de logística, infraestrutura, economia, ambiente e cultura dessas populações. Terceiro, é essencial mobilizar recursos públicos e privados para implementar ações práticas eficazes e eficientes.
Dentre as ações práticas, podemos identificar cinco eixos. Primeiro, um programa de comunicação, voltado para reduzir o contágio e, ao mesmo tempo, como lidar com os doentes. Essa campanha deve usar rádios e TVs locais, cartazes educativos e, quando disponível, redes de WhatsApp e internet. Segundo, um programa de educação à distância, voltado para a formação de agentes indígenas ou comunitários de saúde. Terceiro, um programa de telesaúde, usando as estruturas de internet já disponíveis em algumas comunidades e que podem ser multiplicadas. Quarto, o fortalecimento e ampliação da rede de ambulanchas e rádios de comunicação já disponíveis para a remoção de casos mais graves para os centros urbanos. Quinto, um programa de auxílio financeiro emergencial, nos moldes do que vem sendo ofertado para as populações pobres urbanas. Esse programa deve ser complementado pelo envio de gêneros de primeira necessidade (sal, açúcar, combustível etc.) para diminuir o fluxo de pessoas entre as populações da floresta e as áreas urbanas.
A boa notícia é que algumas das ações elencadas acima já começam a ser colocadas em prática no Amazonas. Entretanto, é essencial ampliar o engajamento de outros atores e mobilizar recursos adicionais para enfrentar um desafio dessa magnitude.
Vale lembrar que devemos a essas populações um reconhecimento pelos serviços ambientais (regime de chuvas, mitigação da mudança climática, conservação da biodiversidade, entre outros), que são essenciais para a produção agropecuária, geração de energia elétrica e abastecimento urbano de água em quase todo o Brasil. É hora de retribuir a esses guardiões da floresta amazônica um pouco dos benefícios que eles têm gerado para todo o Brasil e o planeta.
Nesse caso, assim como na agenda de desmatamento e queimadas, é mais inteligente prevenir do que remediar. Não devemos esperar que a tragédia vire manchete de jornal para agir. Aí será tarde demais para proteger as populações que cuidam do mais importante patrimônio para o futuro do Brasil: a Amazônia.
Virgilio Viana é engenheiro florestal pela ESALQ, Ph.D. pela Universidade de Harvard, ex-secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas e Superintendente Geral da Fundação Amazonas Sustentável.