Menor renda, doenças crônicas e segregação deixam as minorias mais vulneráveis.
Na FSP – Diogo Bercito, WASHINGTON
Quando começaram a circular as primeiras informações sobre o coronavírus, a pandemia foi tratada como uma força igualitária. Disseram que um vírus —algo feito de uma simples cápsula de proteína— não discrimina de acordo com a cor ou a classe social de ninguém. O governador de Nova York, Andrew Cuomo, chegou a falar que o coronavírus era um “grande equalizador”.
As estatísticas que começam a circular nos Estados Unidos, no entanto, mostram que o coronavírus não é tão democrático assim. Minorias estão mais vulneráveis. As comunidades negras e de baixa renda, assim como os latinos, concentram casos e mortes de maneira desproporcional.
É a situação em Nova York, o epicentro do vírus nos Estados Unidos. Um dos distritos mais afetados ali é o Bronx, que tem a maior porcentagem de população negra e a menor renda da cidade. Nessa região, o vírus ataca de forma desproporcional: o bairro concentra 17% das pessoas de Nova York, mas tem 23% dos mortos.
Esse levantamento foi feito antes de a cidade atualizar as suas estatísticas, adicionando 3.700 mortos à conta na terça-feira (14).
A disparidade se repete em toda a cidade, onde os negros são 22% da população e 28% dos mortos. No estado de Nova York, excluindo a cidade, são 9% da população e 17% dos mortos.
O cenário é o mesmo para os poucos estados que começaram a divulgar as suas estatísticas na semana passada. De norte a sul, os negros morrem mais. Eles são apenas 14% da população do estado de Michigan, mas têm 40% das mortes. Em Louisiana, a disparidade é mais gritante: afro-americanos compõem 32% da população —mas chegam a 70% do total de mortos.
Ainda não há estatísticas nacionais, o que impede uma visão mais ampla dessas disparidades. Os poucos dados disponíveis são incompletos, sem informacão de cor para todas as mortes. É difícil, também, separar as causas econômicas das raciais, que agem em conluio nesta pandemia.
Na semana passada, reagindo à notícia de que o coronavírus infecta e mata os negros de maneira desproporcional, Donald Trump demonstrou alguma surpresa. “É terrível”, o presidente disse. “Eles têm sido afetados de maneira muito, muito dura. Não faz sentido e eu não gosto disso.”
Neste caso, porém, a surpresa é que é surpreendente.
Especialistas em saúde pública insistem há décadas em que a população negra é especialmente vulnerável a esse tipo de crise. Esse é o caso também da população latina e de outras minorias.
Essa vulnerabilidade é o resultado do que pesquisadores chamam de fatores sociais da saúde. Em outras palavras, as razões pelas quais determinados grupos têm menos chance de ser saudáveis.
Um desses fatores é a classe social. Os negros são proporcionalmente mais pobres do que os brancos nos Estados Unidos, o que significa que eles têm menos acesso a tratamento médico. Segundo uma pesquisa do governo americano publicada em 2018, 16% da população negra não foi ao médico nos 12 meses anteriores porque não tinha dinheiro. Apenas 10% dos brancos passaram por essa dificuldade.
Políticas de segregação, ademais, levaram comunidades negras a viver em bairros marginalizados, com maior poluição e mais próximos a áreas industriais. Afro-americanos têm também uma probabilidade maior de morar nas ruas, em comparação à população branca —são pessoas que não podem seguir a recomendação de se isolar em casa porque não têm uma.
Um outro fator importante é a alta taxa de doenças crônicas como diabetes, asma e pressão alta entre a população negra. Cientistas acreditam que essas enfermidades estão relacionadas a uma maior mortalidade entre os que contraem o coronavírus.
Essas doenças são também o resultado de discriminação e desigualdade social. Especialistas afirmam que a alta taxa de diabetes entre negros, por exemplo, é consequência da má alimentação. Não porque essa comunidade decide comer mal, mas porque tem menos recursos, assim como tem menos oportunidade para se exercitar.
Os dados do governo mostram que afro-americanos adultos têm 60% mais chance de receber o diagnóstico de diabetes, em comparação com brancos —e o dobro de chance de morrer pela doença.
“Há quem tente culpar a população negra por ser mais afetada por doenças crônicas”, diz Courtney Cogburn, professora da Universidade Columbia. A ideia, ela afirma, é de base racista —e serve para que as pessoas digam que os negros estão mais vulneráveis porque fizeram escolhas ruins, eximindo o governo de culpa. “O que aconteceu foi que eles foram expostos a mais riscos e precisam ser compensados.”
A população negra está também mais vulnerável porque em geral tem menos oportunidade de trabalhar de casa. Segundo dados do governo, 20% dos afro-americanos podem trabalhar a distância, em comparação a 30% da população branca. Com isso, estão mais expostos ao vírus.
O preconceito afeta inclusive as medidas de prevenção nesta pandemia. Especialistas de saúde têm recomendado que as pessoas saiam às ruas de máscara —mas vêm surgindo relatos de homens negros parados pela polícia porque, com o rosto coberto, são identificados como criminosos.
Apesar de cientistas já terem previsto e comprovado que a população negra está mais vulnerável a esta pandemia, ainda há escassa informação para embasar políticas públicas. Foram poucos os estados americanos que até agora divulgaram estatísticas relacionando o número de infeções e mortes à cor e à classe social dos pacientes.
“Uma das maneiras de criar estigma contra um determinado grupo é não coletar informação”, afirma Carlos Rodriguez-Diaz, professor na Universidade George Washington e especialista em saúde pública. “Nós sabemos que esses dados são importantes e temos pedido para o governo coletá-los, mas isso ainda não aconteceu. Esse é um exemplo de racismo estrutural.”
Se os Estados Unidos tivessem uma ideia mais clara de quais comunidades são mais vulneráveis e onde elas estão localizadas, por exemplo, poderiam alocar recursos e pessoal médico para tratá-los. Respiradores poderiam ser enviados a hospitais em bairros de população majoritariamente negra. Já os folhetos informativos poderiam ser distribuídos em espanhol em regiões de maioria latina.
As autoridades americanas poderiam também aproveitar as redes de assistência criadas por essas comunidades. Rodriguez-Diaz cita o caso da população afro-americana, organizada em torno de igrejas que agora poderiam ser mobilizadas para oferecer exames e cuidados básicos. O governo também precisa levar em conta que parte dos latinos vive no país sem visto e, por isso, evita ir ao hospital. É necessário encontrar alternativas para testá-los e tratá-los.
“Esses dados não são levantados por causa do racismo”, diz Uché Blackstock, fundadora do Advancing Health Equity, um grupo que advoga pela equidade da saúde americana. “Não é intencional. Mas tampouco é uma prioridade.”CONTINUE LENDO ▾
Colaborou Guilherme Garcia