Aprovação de medidas garantidoras dos interesses da maioria requer desprendimento das lideranças políticas.
Na FSP
Marcos Mendes
A Câmara aprovou na segunda (13) um projeto de socorro aos estados. O custo estimado caiu pela metade, em relação à proposta da semana passada: de aproximados R$ 200 bilhões para R$ 100 bilhões.
Isso é bom? Não.
Primeiro, porque o desenho da ajuda contém incentivos errados e complexidade excessiva. Segundo, porque o custo continua alto. O proibitivo pacote inicial parece ter sido o bode na sala, que tornou palatável o pacote ora aprovado.
O mais lógico seria fixar um valor em reais, a ser distribuído aos estados e municípios por critério per capita, durante três meses. Ao final desse período, se avaliaria a extensão por mais três meses e se recalibraria o valor. Método simples e claro.
Optou-se por um seguro-receita: a União pagará a cada estado a diferença entre a arrecadação mensal em 2020 e o mesmo mês de 2019, durante seis meses.
Aí começam as complicações: e se os dados de 2020 não estiverem prontos a tempo? Paga um percentual da receita e depois desconta se tiver pago a mais. E se em 2019 tiver havido receitas extraordinárias: desconta ou não desconta?
As complicações e as nuances de conceitos vão gerar conflito, intermináveis reuniões consumirão o tempo de trabalho dos gestores, e vão acabar na Justiça.
O seguro-receita criado pela Lei Kandir deveria ter acabado em 2002, mas até hoje assombra as contas públicas, com demandas bilionárias dos estados no STF, que exploram lacunas conceituais no texto da lei.
O projeto tentou antecipar alguns problemas e soluções. Mas, quanto mais se escreve, mais se abre brecha para entendimentos diversos.
E quanto aos incentivos? Se a União vai cobrir toda a perda de receita, o governador e o prefeito ficarão tentados e serão pressionados a dar perdão e benefícios fiscais.
O projeto tenta proibir, mais uma vez deixando brechas. Por exemplo: há exceção para pequenas e microempresas e para ações de garantia do emprego. O suficiente para os secretários de Fazenda serem crivados de pressões. Afinal, está escrito na lei que pode dar o benefício!
Mas a questão principal é a total ausência de medidas para limitar despesas. Repetiu-se o roteiro de sempre: começa com um pacote de ajuda com contrapartida de ajuste. Os ajustes somem, e a ajuda fica. Socialização de custos, manutenção de privilégios. O “caronavírus” é endêmico no Brasil.
A crise atual é forte o suficiente para que as grandes lideranças no plano federal e estadual tenham respaldo para tomar medidas justas, que sempre são repelidas pelas corporações.
Já que se está aprovando uma “PEC de Orçamento de guerra”, esta deve distribuir os custos e fazer os que são protegidos pela estabilidade no emprego e têm salários elevados a dar sua cota de sacrifício. Nada mais normal quando empregados do setor privado estão perdendo até 70% dos seus salários, para garantir o emprego.
A lista de medidas está pronta e já consta de outras PECs, hoje em banho-maria.
Vale repeti-la: redução de jornada de servidores com redução de remuneração; contingenciamento do orçamento dos demais Poderes; transferência do saldo dos fundos desses poderes para o Executivo; repasse do pagamento de aposentadorias e pensões para os poderes onde os servidores se aposentaram; inclusão dos inativos nas despesas mínimas de educação e saúde; unificação do gasto mínimo em saúde e educação; limitação das diversas formas de expansão de despesa de pessoal.
Se medidas como essa permitissem uma pequena redução de 5% na folha de pagamento dos estados e municípios, durante um ano, isso produziria uma economia de R$ 45 bilhões. Ou seja, quase metade do pacote de ajuda poderia ser financiada pelos próprios estados e municípios, sem necessidade de jogar a conta nas costas do contribuinte.
A aprovação de medidas duras, porém justas e garantidoras dos interesses da maioria, requer cooperação e desprendimento das lideranças políticas. Agindo na base do cada um por si, de olho nas próximas eleições, e movidos pelo bate-boca cotidiano, os nossos líderes não serão capazes de aprová-las.
Marcos Mendes é doutor em economia pela USP, consultor legislativo do Senado e ex-chefe da assessoria econômica do ministro da Fazenda (2016-2018)