Xingu População indígena no norte do Mato Grosso já foi dizimada por epidemias, a primeira delas no século 16; sanitarista que trabalha na região prevê ‘situação explosiva’ e diz que cidades vizinhas já têm infectados por coronavírus.
Na Folha de São Paulo
Terra indígena é hoje ilha de floresta cercada por soja.
O Xingu tem muitas entradas. As mais usadas passam por cidades que nasceram e cresceram vertiginosamente nas últimas décadas, como Canarana, Feliz Natal, Gaúcha do Norte, Lucas do Rio Verde, Marcelândia, Querência, São José do Xingu e Sinop. Todas são referência na produção de soja e delas saem estradas para diferentes aldeias do território. Por ar ou terra, a viagem é reveladora do desmatamento radical das áreas do entorno pelas fazendas da monocultura.
Levantamento da Rede Xingu + publicado pelo ISA (Instituto Socioambiental) no início de abril mostra que, nos dois primeiros meses de 2020, 10 milhões de árvores foram derrubadas ilegalmente na porção mato-grossense da bacia do Xingu, o equivalente a 84% do desmatamento na região entre janeiro e fevereiro.
Ao sul do parque, Canarana é a cidade mais próxima de onde vivem os índios kalapalos, kamaiurás, kuikuros, waurás e yawalapitis, moradores da área chamada de Alto Xingu(o rio corre do sul para o norte). O caminho usual leva por terra até a aldeia dos kalapalos, às margens do Culuene, e de lá a viagem segue de barco a outras comunidades.
São cerca de cinco horas de estrada de terra atravessando o deserto de soja, cortado por fazendas com placas que destacam nomes de proprietários como os ex-governadores Íris Rezende (GO) e Blairo Maggi (MT).
Como a eliminação das florestas torna os ventos mais fortes, as sedes precisam de proteção. Por isso, são cercadas de uma pequena mata, algumas de reflorestamento com eucaliptos, formando uma paliçada em volta dos silos e casas. Não é possível deixar de notar o paradoxo da eliminação radical da floresta original e a necessidade de plantar árvores exóticas para proteção.
Logo volta o horizonte que parece infinito de soja absoluta. Com as melhores terras do mundo, o Mato Grosso em volta do Xingu é hoje todo dedicado à produção da commodity.
Quase cinco horas de estrada depois, tem início uma floresta, que parece ter sido desenhada com régua, de tão exata em seus limites. Logo as placas da Funai (Fundação Nacional do Índio) avisam que ali começa a Terra Indígena do Xingu. Mais uns tantos quilômetros e chegamos à aldeia Aiha, dos kalapalos, com acesso ao rio Culuene.
Chegar pela primeira vez a uma aldeia xinguana provoca uma espécie de deslumbramento: as casas são imponentes, com altura de três andares, e sua disposição segue um rígido plano urbanístico. Elas são construídas formando um círculo em torno de um pátio central.
São grandes ocas com cobertura de sapê até o chão. Cada construção abriga uma família, em torno do dono da casa e seus filhos.
Ao centro, há uma construção menor, a casa dos homens, onde eles se reúnem para rituais, trocar ideias e tratar de assuntos de interesse coletivo. Nessas casas são guardadas as flautas que só os homens podem ver e manipular.
Uma vista aérea permite notar que as aldeias xinguanas têm o traçado sempre idêntico, como se fossem círculos cortados por uma cruz. Elas se localizam próximas de lagoas ou rios, onde os índios buscam água. E ao seu redor há roças plantadas e pomares, ricos em espécies frutíferas. As aldeias atuais parecem miniaturas das cidades que os arqueólogos têm identificado em escavações recentes.
As lagoas são tão importantes para sua localização que frequentemente as aldeias são batizadas com seus nomes, como Piyulaga, dos waurás, e Ipavu, dos kamaiurás.
Dentro da estrutura dessas aldeias, quando as crianças chegam à adolescência, elas vivem longos períodos de recolhimento.
O das meninas começa na primeira menstruação e dura um ano ou um pouco mais. Elas são alimentadas pela mãe e aprendem as técnicas das atividades femininas (como tecer redes, trançar esteiras, processar os alimentos). Elas só saem de casa à noite, para se banhar, e não cortam o cabelo. Quando chega a festa do Kuarup, as jovens mulheres ganham um novo nome e são apresentadas à sociedade.
Já os rapazes aprendem técnicas das atividades masculinas, entre elas confeccionar objetos reservados para os homens, como flechas e cocares, trançar cestos de palha e fazer pentes, e sobretudo treinam intensamente para se tornarem bons lutadores. Podem ficar recolhidos por até mais de um ano, como o líder Afukaká kuikuro, 64, que ficou quatro anos afastado em preparação para se tornar cacique.
Nos períodos intermediários, os pais vigiam os filhos para que eles não tenham relações sexuais: o protocolo xinguano prevê que um jovem só deve fazer sexo depois que se tornar um hábil lutador.
Os casamentos nas etnias do Xingu têm por tradição acontecerem entre primos cruzados: os jovens devem se casar preferencialmente com filhos de irmãs do pai ou de um irmão da mãe; os irmãos do pai são como pais, e as irmãs da mãe, mães (seus filhos, portanto, são como irmãos).
Quando uma filha se casa, o marido se muda para a casa dos sogros. Ao terem filhos, o casal vai para a oca de origem do marido.
Ao mesmo tempo, é prestigioso para um líder ter várias famílias sob seu teto, o que aumenta os braços para suas roças, por exemplo. Por isso, muitos casais, com filhos, seguem vivendo na oca dos pais.
Gisele Bündchen fez campanha contra contaminação da água
Há vários anos, a poluição das águas da bacia do Xingu chama atenção dos índios e seus parceiros e de personalidades da sociedade civil.
Em 2006, a top model Gisele Bündchen foi garota-propaganda da campanha ”Y Ikatu Xingu” (salve a água boa do Xingu).
Ao longo das décadas, desde a campanha original para a criação da reserva indígena, em meados dos anos 1950, o território foi reduzido, deixando para fora de seus limites as nascentes dos rios.
Além da devastação das matas em volta do parque, as águas cruzam municípios que não tratam esgoto, e os governos estadual e federal permitiram a construção de dezenas de hidrelétricas de diferentes tamanhos. O resultado é o assoreamento dos rios e a redução dos estoques de peixe.
Além do desmatamento e da poluição que afetam a área, diversos projetos de infraestrutura, como novas rodovias e duas ferrovias para escoamento de grãos, estão em estudo avançado. Localizados fora da terra indígena, dois sítios arqueológicos com pinturas rupestres, considerados sagrados pelos índios e tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), estão no traçado inicial da rota prevista dessas vias.
Diabetes, obesidade e pressão alta preocupam médicos
18.abr.2020 – 1h
A chegada da epidemia de coronavírus e a contaminação do território por agrotóxicos não são as únicas ameaças à saúde dos índios da Terra Indígena do Xingu. Hoje, há também grande preocupação com o crescimento dos casos de diabetes (doença caracterizada por excesso de açúcar no sangue ou hiperglicemia), provocado pela mudança dos hábitos alimentares tradicionais ao longo principalmente das três últimas décadas.
Não se trata de um problema exclusivo dos xinguanos. É um fenômeno estudado entre índios das três Américas e, no Brasil, se revela particularmente grave entre os xavantes, habitantes do mesmo Mato Grosso.
Até meados dos anos 1980, não existiam na Terra Indígena do Xingu casos de diabetes, obesidade e hipertensão. Isso ficou comprovado por um estudo realizado em diversos países para medir a relação entre o uso do sal industrial e a incidência de pressão alta, denominado Intersalt. No Brasil, foram estudados os xinguanos e os ianomâmis. A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) participou da pesquisa, com o levantamento sobre os xinguanos. Na época, os dois grupos brasileiros não tinham registros de pressão alta, obesidade e diabetes.
Cerca de 15 anos depois, um novo estudo foi realizado no Xingu e apareceram vários casos de excesso de peso, mas apenas dois de diabetes. Agora está sendo feito um novo levantamento, e a pesquisa já aponta 70 ocorrências de diabetes e muitas outras de excesso de peso.
“É um problema crescente”, diz o médico sanitarista Douglas Rodrigues. “Há grande preocupação, porque a diabetes é diferente de outras doenças para as quais temos remédios, como malária. A hiperglicemia é crônica e causa múltiplas lesões: no olho, nos rins, nas extremidades. E hoje já é o principal problema de saúde pública no Xingu”, diz.
A ocorrência dessa doença entre indígenas de todo o planeta, quando adotam dietas industrializadas e ricas em açúcar, vem sendo estudada há várias décadas. O que os cientistas notam é que, ao adotar comidas típicas dos brancos, os índios desenvolvem mais diabetes do que os próprios habitantes das grandes cidades.
Isso se deve a uma característica adquirida pelos indígenas ao longo dos muitos milênios seguindo o mesmo estilo de vida. Eles passam a ter um metabolismo chamado de genótipo econômico, incorporado ao seu padrão genético pelo mecanismo que os cientistas chamam de epigenética (os fatores externos, como o modo de vida, ativam certos genes mais que outros e essa característica passa para as gerações futuras, junto com o material propriamente genético, o DNA).
O genótipo econômico, explica Rodrigues, faz com que os índios absorvam muita energia dos alimentos que consomem, mais do que uma outra pessoa que tenha um estilo de vida diverso. Isso explica por que normalmente os habitantes de sociedades tribais têm ao longo do ano épocas com maior acesso a alimentos e outras em que falta comida. Quando uma roça está sendo desenvolvida, não produz; quando os rios estão cheios, na época de chuvas, é difícil pescar e até mesmo caçar. Quando têm bons alimentos, os índios tentam absorvê-los intensamente, como se criassem uma reserva para atravessar os períodos de carência. Como sua vida cotidiana exige muito esforço físico, as calorias são consumidas.
Esse fenômeno ocorreu com os índios xavantes, contatados pelos irmãos Villas Bôas em 1945. Nos anos 1970, as terras dos xavantes tinham sido invadidas, e o governo brasileiro destinou a eles várias reservas separadas entre si, com áreas insuficientes para sua sobrevivência, como as denominadas Sangradouro e São Marcos, perto da cidade de Barra do Garças (MT). Ao mesmo tempo, a Funai (Fundação Nacional do Índio) incentivou a troca da agricultura tradicional (mandioca) por arroz, cujo excedente supostamente poderiam vender. O resultado foi a mudança dos hábitos alimentares. Os xavantes têm índices de diabetes semelhantes aos índios pima norte-americanos (27% da população, quando a média brasileira é 9%).
A incidência da doença no Xingu é baixa comparada à dos xavantes: cerca de 3%. Mas o crescimento é progressivo, partindo de zero há pouco mais de 30 anos. E, em várias aldeias do território, o índice de pessoas com excesso de peso já chega a 50%. “Temos feito campanhas para a redução do consumo de açúcar e preparamos os agentes de saúde para estimular constantemente o controle”, afirma Rodrigues.
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