O presidente Jair Bolsonaro atua de forma agressiva para abrir a floresta amazônica ao desenvolvimento comercial e representa uma ameaça existencial para as tribos da região.
Por Ernesto Londoño
By Letícia Casado
TERRITÓRIO URU EU WAU WAU, Brasil — O cartaz na entrada de uma pequena aldeia indígena na Amazônia se tornou uma relíquia em menos de uma década, e não reflete mais uma realidade.
“Aqui tem investimento do governo federal”, proclama a placa, erguida em 2012, agora coberta por folhas de palmeiras caídas.
De fato, este pequeno povoado no estado de Rondônia, chamado Alto Jamari, lar para cerca de 10 famílias da tribo Uru Eu Wau Wau, mal sobrevive, assim como muitas outras aldeias que resistem na região e que durante décadas serviram de refúgio para a cultura dos povos indígenas e de baluarte contra o desmatamento no Brasil.
Enquanto a presença federal encolhe, por um lado mais forasteiros invadem as terras, ansiosos pela exploração ilegal dos recursos da floresta, e o coronavírus fecha o cerco por outro, tendo já alcançado algumas aldeias remotas com sua ameaça mortal.
Os líderes locais e os defensores dos indígenas apontam um único responsável pelo agravamento dessa situação: o presidente Jair Bolsonaro.
Durante sua campanha eleitoral, Bolsonaro prometeu abrir a Amazônia para um maior desenvolvimento comercial, incluindo mineração e agricultura em larga escala.
“Onde há terra indígena”, disse Bolsonaro, “há riqueza por baixo”.
Desde que assumiu a presidência há pouco mais de um ano, Bolsonaro atua agressivamente para promover essas metas de desenvolvimento, adotando políticas que os críticos temem tenha desencadeado uma nova era de etnocídio das comunidades indígenas.
Já de início agiu para desmantelar o sistema de proteção para as comunidades indígenas consagrado pela Constituição brasileira, efetuando cortes no financiamento da Fundação Nacional do Índio, a agência federal responsável por defender os direitos indígenas.
Como presidente, Bolsonaro prometeu não demarcar “um centímetro” a mais de terras indígenas protegidas, argumentando que viver em isolamento é um anacronismo no século XXI e um obstáculo ao crescimento económico.
“Índio não pode ficar na sua terra como um ser humano pré-histórico”, declarou Bolsonaro em fevereiro.
Ainda em fevereiro, Bolsonaro apresentou um projeto de lei ao Congresso que, na prática, poderia legalizar os empreendimentos clandestinos de mineração que poluíram rios e destruíram grandes áreas da Amazônia.
A legislação proposta, cuja tramitação no Congresso parece ter esbarrado em falta de entusiasmo enquanto o país combate o coronavírus, também permitiria a exploração de petróleo e gás e a instalação de usinas hidroelétricas em territórios indígenas. Segundo o projeto de lei, as comunidades nativas seriam consultadas sobre os empreendimentos — mas perdem o poder de veto.
No ano passado, Bolsonaro exultou ter “acabado” com o que chamou de “multas astronômicas” contra empresas que violam as leis ambientais da Amazônia, removendo um dos poucos elementos de dissuasão que os grileiros enfrentam.
O presidente do Brasil cumpre suas promessas de expansão do desenvolvimento na Amazônia. E para muitos dos povos indígenas que lá vivem, a era Bolsonaro se tornou uma ameaça existencial.
O QUE ENCONTRAMOS
‘Arrasando nossa floresta’
A Constituição do Brasil de 1988 confere amplos direitos aos povos indígenas, uma forma de reparação por séculos de tratamento brutal.
Embora esses direitos nunca tenham sido totalmente respeitados, na era Bolsonaro estão sendo eviscerados, segundo ativistas e líderes indígenas.
Para comunidades com populações pequenas, como os Uru Eu Wau Wau, que começaram a nova década com uns 200 membros, a posição do governo poderia significar o total desaparecimento da tribo.
Na maior das seis aldeias Uru Eu Wau Wau, a escola — uma instalação moderna cercada por um conjunto de cabanas modestas — está vazia. Os professores pararam de vir ano passado porque não estavam sendo pagos.
As visitas de médicos e enfermeiros rarearam, em grande parte porque os médicos cubanos que atendíam em aldeias remotas deixaram o país abruptamente pouco antes da posse de Bolsonaro em janeiro de 2019, diante de ameaças do novo presidente.
As incursões ilegais de madeireiros cada vez mais frequentes nas margens dos territórios indígenas colocaram seus habitantes em pé de guerra.
“Eles estão arrasando nossa floresta”, disse Juvitai Uru Eu Wau Wau, de 19 anos, do alto de uma rede enquanto uma criança empurrava um triciclo empoeirado ao redor de um grupo de pequenas cabanas. Seguindo o costume indígena, Juvitai tem o nome da tribo como sobrenome.
As crianças da aldeia se contagiaram com a angústia coletiva, disse Juvitai, e constantemente perguntam se os dias em relativo isolamento estariam chegando ao fim.
“Eu digo para eles ficarem calmos”, disse Juvitai, com insegurança na voz. “Esta é nossa terra. A gente fica aqui”.
O QUE ENCONTRAMOS
‘Um governo a favor do desmatamento’
Na imagem de satélite, o território Uru Eu Wau Wau se destaca como uma ilha verde esmeralda cercada por trechos de floresta arrasada, a maior parte das quais hoje são fazendas de gado.
Em 1991, o governo federal demarcou oficialmente o território Uru Eu Wau Wau. Ele abrange uma área de 18.000 quilômetros quadrados — um pouco menor que o estado de Nova Jersey — onde a tribo construiu um conjunto de pequenas aldeias. Este reconhecimento federal em teoria confere um grau de autonomia política, proibe a entrada de estranhos sem autorização explícita e impede atividades comerciais em larga escala.
O território, tecnicamente de propriedade do governo federal, é hoje o lar de uns 200 membros da tribo Uru Eu Wau Wau além de outras tribos menores e isoladas, cujo tamanho exato da população é desconhecido.
Os Uru Eu Wau Wau tem sofrido incursões ilegais de madeireiros há anos. Mas em fevereiro do ano passado ficou claro que a tribo estava enfrentando uma ameaça muito mais séria quando cerca de 200 homens irromperam em seu território aparentemente com intenção de estabelecer um assentamento permanente.
Os protestos dos Uru Eu Wau Wau alertaram a mídia brasileira, e a Polícia Federal interveio com a expulsão. Mas ações de fiscalização como essas são raras e o patrulhamento efetivo de uma região tão vasta é impossível para as autoridades, o que tanto os madeireiros como as tribos bem sabem.
Tão logo a polícia se ausentou, a placa oficial que sinalizava a área de proteção em uma das principais entradas do território indígena foi crivada de balas. Foi uma mensagem amarga para os Uru Eu Wau Wau.
“O que estamos vendo é o resultado de um governo que é a favor do desmatamento na Amazônia”, disse Bitate Uru Eu Wau Wau, líder da comunidade. “Isso incentivou invasores a entrar em territórios indígenas”.
O QUE ENCONTRAMOS
Infratores se ‘amparam em um fator político’
Segundo procuradores do Ministério Público Federal do estado, as incursões pertencem a uma onda de invasões ilegais que devastam áreas protegidas, extraem a madeira e subdividem a terra em lotes sob títulos falsos.
Há anos que madeireiros, mineradores, pecuaristas e outros usam essa abordagem na Amazônia, geralmente com sucesso, uma vez que legisladores frequentemente criam arranjos que facilitam a legalização da propriedade das terras em posse ilegal.
Ainda que as táticas não sejam novas, os promotores alertam para a ousadia crescente dos invasores desde a eleição de Bolsonaro, favorecidos tanto pela redução do tamanho das multas quanto pela clara mudança da atitude do governo em relação ao desenvolvimento.
“O objetivo é criar o fato consumado”, disse Daniel Azevedo, procurador federal em Porto Velho, capital de Rondônia, que se especializa em crimes ambientais e contra indígenas.
O desmatamento em territórios indígenas no Brasil aumentou fortemente nos último meses. De agosto de 2018 a junho de 2019, foram derrubados 4.200 quilômetros quadrados de cobertura florestal, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, um aumento de 74 por cento em relação ao mesmo período do ano anterior.
O território Uru Eu Wau Wau está entre os dez mais atingidos pelo desmatamento naquele período.
Azevedo relata que as autoridades policiais podem instaurar processos contra os responsáveis mais notórios pelo desmatamento, mas observa que as autoridades estão mal equipadas para reverter as forças que impulsionam o desmatamento num momento em que os invasores se sentem apoiados pelas autoridades eleitas.
“Eles se amparam em um fator político, percebendo que os políticos locais, senadores e até o presidente apoiam sua causa”, disse Azevedo.
Os Uru Eu Wau Wau são uma das várias comunidades indígenas que sofreram um forte aumento nas incursões e ameaças na era Bolsonaro. Mais ao norte, as tribos Yanomami e Munduruku foram invadidas por milhares de garimpeiros.
Em 2019, pelo menos sete líderes indígenas foram assassinados em conflitos de terras.
Em uma reunião no ano passado com os governadores dos nove estados amazônicos, Bolsonaro deixou claro que via as terras indígenas como um empecilho para o potencial do Brasil.
“O índio não faz lobby, não fala a nossa língua e consegue hoje em dia ter 14 por cento do território nacional”, declarou, utilizando uma cifra ligeiramente maior do que os dados do próprio governo. “Uma das intenções é nos inviabilizar”.
‘Eles não trazem dinheiro para o Brasil, apenas prejuízos’
Bolsonaro venceu as eleições com o 55 por cento dos votos, e alguns de seus apoiadores concordam com sua percepção de que as comunidades indígenas não devem controlar os 13 ou 14 por cento da terra do país demarcados como terras indígenas.
Daniel da Cunha, de 60 anos, que mora nos arredores do território dos Uru Eu Wau Wau, disse que essas terras devem ser repartidas para que desempregados possam aproveitá-las em atividades lucrativas.
“Eles não trabalham”, disse dos indígenas. “Eles não trazem dinheiro para o Brasil, apenas prejuízos”.
Alguns parlamentares argumentam que Bolsonaro tem razão em querer reverter a política indígena brasileira, mas preferem uma abordagem mais moderada.
Arthur Oliveira Maia, um congressista de centro-direita do estado da Bahia, disse que, de acordo com o atual quadro jurídico, ninguém, incluindo as próprias tribos indígenas, pode lucrar dos territórios reservados.
“O processo de exploração comercial das terras indígenas poderia ser feito gradativamente, usando 10 ou 15 por cento da área”, disse.
Ele acrescentou que preferiria começar pela agricultura, que tende a ter um impacto ambiental menor do que a mineração.
“Hoje os índios passam dificuldades”, disse ele. “A emancipação dessas pessoas é possível só por meio da economia”.
O QUE ENCONTRAMOS
Um passado de horrores, um presente de cortes
É de longa data que Bolsonaro fala com desprezo dos povos indígenas. Em 1998, quando era um parlamentar inexpressivo de extrema direita, Bolsonaro disse que era uma “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”.
O que Bolsonaro deixa de reconhecer é que os povos indígenas do Brasil foram quase exterminados após a chegada dos europeus no início do século XVI.
A população indígena no Brasil contemporâneo caiu drasticamente de um total cujas estimativas variam de 3 a até 11 milhões no século XVI, para 70 mil na década de 1950, com tribos inteiras exterminadas, além de um sem-número de indígenas escravizados.
Depois que generais tomaram o poder no Brasil nos anos 60, o governo militar repressivo — que Bolsonaro celebra há tempos — tratou os indígenas na Amazônia como obstáculos ao crescimento econômico.
A Constituição de 1988 procurou corrigir alguns desses erros.
Ela deu fim à política da era militar que incentivava a assimilação dos indígenas e reconheceu seus “costumes, línguas, crenças e tradições”.
A Constituição também estabeleceu um processo de demarcação de terras que, ao longo dos anos, criou a vasta colcha de retalhos de 567 territórios indígenas protegidos. Em 2010, quando Brasil realizou seu último censo, cerca de 517.000 dos 897.000 indígenas do país moravam nessas terras.
No seu primeiro dia como presidente, Bolsonaro transferiu o processo de demarcação de terras da Fundação Nacional do Índio, conhecida como FUNAI, para o Ministério da Agricultura, que é fortemente influenciado pelo lobby do agronegócio. A Suprema Corte bloqueou a ação, considerando-a inconstitucional, mas todos os casos pendentes de demarcação permanecem congelados.
Além da dificuldade em neutralizar a FUNAI, Bolsonaro encontrou outros contratempos ou demoras. Líderes do Congresso sinalizaram que não têm pressa em avançar na apreciação do projeto de lei para autorizar propostas de desenvolvimento energético em terras indígenas.
Mas o poder da presidência ainda lhe oferece amplas oportunidades para promover sua visão.
O governo nomeou recentemente um ex-missionário cristão, Ricardo Lopes Dias, para chefiar a divisão encarregada de proteger tribos isoladas. Embora Dias tenha prometido não usar seu posto para fazer proselitismo, a nomeação causou temores de que o governo permitirá o acesso de missionários a tribos isoladas cujas vulnerabilidades ao contato podem levá-las a serem dizimadas por doenças comuns.
Um porta-voz da FUNAI disse que a agência está investindo em programas de empreendedorismo e sustentabilidade como a pesca artesanal e fabricação de mel em pequena escala, que visam incentivar a autonomia das comunidades indígenas.
Mesmo antes que Bolsonaro se tornasse presidente, a FUNAI já vinha sofrendo há anos com redução de pessoal e orçamentos apertados que forçaram a agência a abandonar vários postos avançados em áreas remotas e a diminuir a frequência das visitas às aldeias.
Enquanto o orçamento da FUNAI se manteve relativamente estável nos últimos anos, o governo Bolsonaro fez um corte profundo nas despesas programadas para 2020, destinando 15 milhões de dólares para programas de defesa dos direitos indígenas, cerca de 40 por cento menos do que no ano passado.
A associação dos servidores da agência declarou em um comunicado que a redução significa que a FUNAI terá uma presença cada vez mais exígua em campo, deixando as comunidades sitiadas por grileiros mais expostas.
“Esta é a primeira vez que o planejamento governamental”, disse a associação de funcionários, “não contempla direitos indígenas garantidos pela Constituição”.
‘Se não matamos, vai piorar’
Sempre que os Uru Eu Wau Wau descobrem novas incursões no seu território, partem a pé para examinar os danos e queimar acampamentos de colonos. Enquanto um grupo se preparava ao amanhecer para uma expedição recente, os guerreiros da tribo passaram veneno nas pontas das flechas.
Ivaneide Bandeira Cardozo, uma ativista que frequentemente acompanha os Uru Eu Wau Wau, empalideceu, preocupada com o resultado de um confronto com madeireiros.
“Vocês tem de me prometer que, se vocês se encontram com um deles, vocês não matarão”, implorou.
“Se não matamos, vai piorar dia após dia”, respondeu um dos homens.
Ao fim de uma árdua caminhada de seis horas por floresta fechada, atravessando rios e nuvens de insetos, os os Uru Eu Wau Wau chegaram a um grande trecho de terra recentemente reduzido a cinzas.
Os Uru Eu Wau Wau pouco puderam fazer além de tirar fotos dos danos e incendiar o pequeno acampamento.
Questionada sobre o possível efeito das políticas do governo Bolsonaro em comunidades como essas, Ivaneide Cardozo, que apoia a tribo há décadas, mostrou abatimento.
“O objetivo deles é forçá-los a sair das suas terras e transformá-los em cidadãos comuns na periferia das cidades, em mendigos”, disse ela. “Para mim, isso equivale a uma política de genocídio e etnocídio”.
Borea Uru Eu Wau Wau, uma dos membros mais antigos da tribo, tem cicatrizes nas costas de ferimentos de bala que sofreu durante uma emboscada armada por seringueiros na década de 1980. Uma irmã, uma tia e a avó foram mortas na época, ela lembra.
Desde o início da nova onda de incursões, Borea tem tido flashbacks, revivendo a experiência que a deixou com uma visão fatalista do futuro.
“Leva muito tempo para esperar pela justiça, pela qual esperamos e esperamos”, disse ela, falando em tom um pouco acima de um sussurro. “É mais fácil matar”.
A conclusão: Bolsonaro está determinado a expandir a exploração econômica da Amazônia a todo custo.
Ernesto Londoño reportou desde o território Uru Eu Wau Wau, e Letícia Casado, de Brasília.
Ernesto Londoño is the Brazil bureau chief, based in Rio de Janeiro. He was previously an editorial writer and, before joining The Times in 2014, reported for The Washington Post. @londonoe • Facebook