Reinaldo Azevedo – O presidente Jair Bolsonaro não tem intimidade nem com as leis nem com as palavras. No seu universo, essas coisas não parecem especialmente importantes. No seu estonteante pronunciamento desta sexta, em que falou de tudo e nada ao mesmo tempo, acabou confessando — e o fez na parte improvisada — que quer, de fato, uma Polícia Federal que esteja a seu serviço, não do Estado brasileiro.
Vale dizer: antes mesmo que Sergio Moro exibisse uma prova de sua tentativa indevida de interferência na Polícia Federal, o próprio presidente a confessou com todas as letras. Pior: afirmou que teve acesso, e é preciso ver como, a dados sigilosos da investigação sobre a morte de Marielle Franco. Sergio Moro entregou ao “Jornal Nacional” duas evidências, digamos, “leves” da ação indevida do presidente. Imprudente como, então, demonstra ser, é de se supor que muitas outras existam. Leiam este trecho do seu pronunciamento: Sempre falei para ele: ‘Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo o dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas 24 horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação’. Eu nunca pedi para ele o andamento de qualquer processo, até porque a inteligência com ele perdeu espaço na Justiça. Quase que implorando informações. E assim eu sempre cobrei informações dos demais órgãos de inteligência oficiais do governo, como a Abin, que tem à frente um delegado da Polícia Federal, uma pessoa que eu conheci durante a minha campanha e tem um nome e é respeitado pelos seus companheiros. RETOMO De que diabos de relatório fala o presidente? Inexiste tal procedimento. Mais: o que ele pede é absolutamente ilegal. Nem o diretor-geral sabe das investigações que estão em curso no órgão. As diligências feitas pelos agentes federais são autorizadas por um juiz, podendo ser um ministro do Supremo quando a investigação envolve pessoas com foro naquele tribunal.
Prestem atenção a estes números: em 2018, a PF realizou 1.563 operações e 9.938 prisões; em 2019, houve uma queda expressiva, mas o número é ainda gigantesco: 1.062 operações e 9.226 prisões. Será que Bolsonaro quer um relatório diário sobre todas essas ações? É evidente que não! O que ele chama “relatório” corresponde, na verdade, a um pedido para ter acesso a dados sigilosos sobre algumas investigações — em particular aquelas que dizem respeito a ele, à sua família e a seus aliados. Isso fica claro na sua troca de mensagens com Moro e, por incrível que pareça, em seu próprio depoimento. A ser assim, ele está confessando que quer um diretor-geral da PF que pratique crimes em série.
O “ZERO QUATRO” PEGADOR E INFORMAÇÃO SIGILOSA Em outro momento de seu pronunciamento, afirma Bolsonaro, daquele seu modo formidavelmente confuso: Quando no clamor da questão do porteiro, do caso Adélio [ELE SE CONFUNDIU; CERTAMENTE QUIS DIZER CASDO MARIELLE], que os dois ex-policiais teriam ido falar comigo, também apareceu que o meu filho 04 teria namorado a filha desse ex-sargento. Eu comecei a correr atrás, primeiro eu chamei meu filho: ‘Abre o jogo’. ‘Pai, eu saí com metade do condomínio, nem lembro quem é essa menina, se é que eu estive com ela’. Hoje a vida é assim, a intenção de dizer que o meu filho namorava a filha do ex-sargento era que nós tínhamos um relacionamento familiar.
Eu não me lembro dele, pode ser até que tenha tirado foto com ele, durante pré-campanha e campanha era comum eu tirar em média 500 fotografias por dia, porque essa era a minha imprensa. E daí eu fiz um pedido para a Polícia Federal, quase como um “por favor, cheguem em Mossoró e interrogue o ex-sargento”. Foram lá, a PF fez até o trabalho, interrogou e está comigo a cópia do interrogatório, onde ele diz simplesmente o seguinte: ‘A minha filha nunca namorou a filha do presidente Jair Bolsonaro, porque a minha filha sempre morou nos Estados Unidos’. Mas eu é que tenho que correr atrás disso? Ou é o ministro, ou é a Polícia Federal que tem que se interessar? Não é pra me blindar, porque porque eu não estou em curso em nenhum crime.
RETOMO Pela ordem! Presidente nem dá ordens nem pede favor à Polícia Federal. Bolsonaro está afirmando que teve acesso, então, com cópia a dados sigilosos da investigação, como é o caso do depoimento. A Agência Brasileira de Inteligência, sob o comando de Alexandre Ramagem Rodrigues, que agora vai para PF, parece fornecer os tais “relatórios” para Bolsonaro. Convenham, leitores: a curiosidade de vocês não deve ser menor do que a minha. O que Bolsonaro pretende? Selecionar, num universo de mais de mil investigações, aqueles que devem ser objetos de relatórios? Pois é. Não há como o Supremo não abrir a investigação. Que vai ter de ser tocada pela Polícia Federal. O presidente atua de modo a se meter ou numa farsa ou numa encrenca. Nem uma coisa nem outra são boas.