Compras de equipamentos para combate à Covid-19 têm fraudes pelo mundo

Compras de equipamentos para combate à Covid-19 têm fraudes pelo mundo

Dispensa de licitação pela pandemia leva a irregularidades em vários países.

Na FSP, Patrícia Campos Mello

Não foi só no Brasil que as compras emergenciais de respiradores e equipamentos de proteção contra o coronavírus deram origem a um festival de irregularidades. Em países da Europa, África e nos Estados Unidos, houve inúmeros episódios de compras superfaturadas sem licitação, entrega de produtos com defeito e fornecedores descumprindo contratos.

Uma fazenda de framboesas chamada Silver Raspberry (Framboesa prateada) recebeu 5,4 milhões de euros (R$ 34 milhões) do governo da Bósnia para importar cem respiradores da China e
equipar os hospitais do país.

Cada respirador saiu por cerca de R$ 340 mil, muito acima do preço normalmente cobrado: mesmo em meio à escassez de equipamentos e à disputa entre países, o aparelho dificilmente custa mais de R$ 150 mil.

Para completar, os ventiladores não eram adequados para UTIs que tratam pacientes graves com a Covid-19 —o modelo era para uso em ambulâncias. O dono da fazenda e processadora de frutas Framboesa Prateada é o apresentador de TV Fikret Hodzic, que comanda o programa “Você também pode ser uma estrela”. Ele negou ter cobrado preços superfaturados e disse que usou conexões na China para
empreender o que ele chamou de “missão humanitária”.

Esses desvios consomem parte do auxílio humanitário recebido pelo país —no mês passado, o FMI aprovou pacote de ajuda emergencial de US$ 361 milhões (R$ 2,1 bilhões) para a Bósnia, que se somam aos 80 milhões de euros (R$ 470 milhões)
da Comissão Europeia.

Como se trata de uma situação de emergência, muitos governos precisam eliminar licitações e outros procedimentos burocráticos para acelerar a compra dos equipamentos.

Mas, segundo Guilherme France, coordenador de pesquisas da Transparência Internacional no Brasil, isso torna as compras muito vulneráveis à corrupção. Existe enorme disputa entre países e até estados dentro do mesmo país para comprar. Esse excesso de demanda já gera um aumento nos preços. Os gestores públicos são pressionados a aceitar condições extraordinárias
—como pagamento adiantado e contrato sem licitação— que abrem caminho para abusos.

No Brasil, a corrida pela importação de respiradores já provocou a queda de secretários, prisões de servidores públicos e de empresários.

No Rio de Janeiro, o antigo número dois da Secretaria de Saúde foi preso preventivamente em 7 de maio com mais um servidor e três empresários sob suspeita de crimes na aquisição de equipamentos. Em Roraima e em Santa Catarina, secretários de Saúde foram exonerados sob suspeita de irregularidades. Em São Paulo, compras de ventiladores são investigadas.

Um dos problemas, segundo France, é que no Brasil não houve centralização das compras, o que poderia ter tornado essas operações mais eficientes e menos sujeitas a fraudes. O número elevado de diferentes compradores acaba transformando as vendas em disputas, além de tornar mais difícil a fiscalização. “Países que centralizaram as compras de forma transparente, com controles, conseguiram ter processo mais harmônico”.

Segundo Aris Georgopoulos, professor de direito na Universidade de Nottingham e integrante do grupo de pesquisa de compras governamentais, será necessário, após a pandemia, fazer um esforço de responsabilização. “Será preciso checar todos os contratos e produtos entregues para detectar erros e fraudes; precisamos aprender com tudo isso para estarmos mais bem preparados em uma próxima vez.”

Na Romênia, a empresa BSG Business Select, cuja especialidade era aromaterapia e outras terapias alternativas, fechou contrato de 860 mil euros (R$ 5 milhões) para fornecer ao governo máscaras e macacões de proteção. Segundo o OCCRP (Projeto de
Jornalismo sobre Crime Organizado e Corrupção), a empresa comprou os produtos na Turquia e vendeu ao governo com margem de lucro de 40%. Para completar, metade das máscaras foram parar no lixo, porque não se fixavam de forma correta sobre o nariz.

O ministro da economia da Eslovênia, Zdravko Pocivalsek, foi acusado de tentar favorecer uma empresa em um contrato para compra de equipamento de proteção individual. Um “whistleblower” disse que o ministro tentou favorecer a empresa Geneplanet em um contrato de 8 milhões de euros (R$ 50 milhões), o equivalente a 150% do faturamento da empresa em 2018.

Na África, milhões em ajuda humanitária já tinham sido desviados durante a epidemia de Ebola entre 2014 e 2016. Na pandemia de Covid-19, começam a surgir relatos de irregularidades. No início de abril, quatro altos funcionários do governo de Uganda foram presos após superfaturar alimentos destinados a populações vulneráveis à Covid-19.

Mas o problema não se limita a países em desenvolvimento. A Agência Federal de Administração de Emergências dos EUA (Fema, na sigla em inglês) cancelou nesta semana contrato de US$ 55,5 milhões (R$ 324 milhões) para fornecimento de máscaras por uma empresa chamada Panthera. A Panthera foi escolhida sem licitação para fornecer o insumo, apesar de nunca ter trabalhado na área e de sua controladora estar em concordata. A Fema cancelou a compra porque a Panthera não entregou no prazo. Segundo o jornal Wall Street Journal, várias compras emergenciais nos EUA foram feitas sem licitação e alguns fornecedores não entregaram máscaras no prazo.

“Se alguma coisa dá errado no Brasil, na Grécia ou na Itália, a primeira reação é dizer que houve corrupção; se algo dá errado no Reino Unido ou na Alemanha, partem do pressuposto que foi apenas um erro —não é sempre assim”, diz Georgopoulos.

O especialista cita como bom exemplo o projeto de compras unificadas implementado pela UE durante a pandemia para adquirir máscaras, luvas, óculos, aventais, testes e ventiladores. Além disso, há mecanismo para pegar equipamentos em países onde há excesso e encaminhar para onde faltam.

Uniformizar a lista dos insumos, para que não se adquiram equipamentos fora de especificações; e ter lista de fornecedores aprovados são algumas das medidas que reduzem fraudes. “Mas isso demanda grande concerto entre as diferentes esferas do governo que, neste momento, não existe no Brasil”, diz France.

Para Christopher Yukins, professor de Compras Governamentais da Faculdade de Direito da Universidade George Washington, uma das primeiras providências é vetar fornecedores que não tenham histórico na área. “Além disso, é preciso estabelecer cooperação entre agências internacionais, para intercâmbio de informações sobre fornecedores, e formar consórcios para fazer as compras de forma mais organizada”, diz.

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