Prefeito de BH, uma das capitais com menor incidência de coronavírus, enaltece respaldo científico no combate à pandemia e diz não temer ameaças de opositores ao isolamento social
BREILLER PIRES, El País
Com a bagagem de quem foi dirigente de futebolpor mais de uma década, desapegado de crenças e superstições, Alexandre Kalil (PSD) diz ter perdido a fé na humanidade. “O mundo piorou. Tá uma merda”, afirma, com o desprendimento habitual, em entrevista ao EL PAÍS, evitando romantizar o impacto da crise atual nas relações humanas. “Não vamos sair melhores dessa situação. Ninguém se comove em ver corpo jogado em vala. Quase 1.000 famílias perdendo gente por dia e ainda tem sujeito preocupado em abrir comércio.” Em que pese a visão pessimista, o prefeito de Belo Horizonte alimenta esperança de atravessar a pandemia de covid-19 sem que sua cidade repita as cenas dramáticas de países europeus. “O povo belo-horizontino entendeu o recado”, explica ao comemorar a média em torno de 60% de isolamento social nos principais bairros desde o início da quarentena.
Uma das primeiras a adotar medidas restritivas no país, a sede do Governo mineiro tem a terceira menor taxa de incidência de coronavírus (43 casos por 100.000 habitantes) entre as capitais, atrás somente de Curitiba e Porto Alegre. Embora experimente aumento no percentual de registros nos últimos dias, Belo Horizonte obteve mais êxito no esforço de achatar a curva de novas infecções que cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, que acumulam índices de contágio 3,7 e 4,9 vezes maiores, respectivamente. De acordo com Kalil, a resposta rápida à pandemia foi fundamental para frear a curva em março e abril, na esteira do fechamento do comércio.
Para fazer valer o decreto, a guarda municipal deixou a função de policiamento e agora cumpre expediente de fiscalização, em que expediu mais de 10.000 infrações contra estabelecimentos que relutavam em fechar as portas. Além da preparação dos hospitais e leitos de UTI, a prefeitura recorreu a infectologistas da UFMG ao constituir um comitê de enfrentamento, e também ao departamento de estatística da universidade, que elaborou um modelo matemático para projetar os picos de casos na cidade. “Quando Belo Horizonte foi devastada pelas chuvas no começo do ano, eu tomei a frente do negócio porque sou empreiteiro e entendo de obra urbana”, conta o prefeito. “Mas, na pandemia, a palavra final é dos cientistas. O que eles mandam fazer, eu faço. Como não sou médico nem infectologista, sigo a cartilha e apenas entrego o dinheiro para executarem a parte social e de saúde.”
Entre 1918 e 1919, BH já havia sido bem sucedida no enfrentamento ao surto de gripe espanhola, registrando uma das menores taxas de mortalidade do Brasil devido à aplicação de medidas restritivas. Kalil diz que, embora tenha se informado sobre o histórico da cidade, não buscou referência no passado ao traçar sua estratégia de combate à covid-19. “Fiquei surpreso ao saber como Belo Horizonte superou a gripe espanhola, mas não me inspiro em ninguém. Só na ciência.” Segundo o prefeito, o fato de ter montado um gabinete por critérios técnicos, e não políticos, agora se mostra um diferencial na gestão da crise, citando o secretário da Saúde, Jackson Machado Pinto, que chefiou por 25 anos a clínica de dermatologia da Santa Casa BH. “Eu assino os papéis, mas quem orienta e lidera os trabalhos é um médico.”
Ameaças por segurar reabertura do comércio
Para reforçar o isolamento social, a prefeitura de BH comprou dois milhões de máscaras, distribuídas à população por agentes de trânsito e da guarda civil. Quem sai de casa sem o equipamento de proteção pode ser multado em 80 reais. Desde abril, o uso de máscara é obrigatório. O executivo também distribui 243.000 cestas básicas por mês a pessoas em situação de vulnerabilidade social, a maioria delas destinadas a trabalhadores informais e famílias de estudantes matriculados nas escolas municipais. A fim de agilizar a entrega, a prefeitura firmou parceria com supermercados, onde os responsáveis de alunos só precisam apresentar a carteira de identidade para retirar a cesta.
A preocupação de Kalil no momento é a pressão que casos de coronavírus registrados na região metropolitana podem exercer no sistema de saúde da capital. Nova Lima, vizinha de BH, por exemplo, tem a quarta maior taxa de incidência do Estado (106 casos por 100.000 habitantes). O prefeito chegou a proibir a entrada de ônibus provenientes de cidades que afrouxaram medidas de isolamento, mas o decreto acabou derrubado pela Justiça. “Não adianta a prefeitura tomar precauções, fechar lojas e o escambau, e juiz depois mandar abrir. Precisam entender que não se trata da minha opinião. É ciência, porra”, esbraveja.
No fim de abril, integrantes de uma carreata a favor do presidente Jair Bolsonaro protestaram em frente à casa do prefeito, contrários às medidas restritivas na cidade. Alguns vizinhos reagiram atirando ovos em direção aos manifestantes. “Eu fui presidente do Atlético, tomei 6 a 1 do maior rival… Quem viveu a pressão do futebol, não tem medo de meia dúzia de buzinas”, brinca Kalil, que conta ter recebido ameaças de morte pela postura adotada durante a crise do coronavírus. Ele diz que, além de não se intimidar, evita tomar decisões visando as eleições municipais previstas para este ano. “Se uma família perder uma pessoa querida em BH porque eu pensei em mim ou em reeleição, não vou conseguir dormir nunca mais. Prefiro morrer com um tiro que de remorso por ter sido covarde.”
Em atrito com o Governo estadual, o prefeito afirma não ter recebido amparo financeiro nem suporte do governador Romeu Zema (Novo), que é aliado de Bolsonaro. “Zero apoio. O Estado está quebrado.” Em relação ao Governo federal, Kalil entende que as declarações do presidente, incentivando a quebra da quarentena, e as turbulências em Brasília, como as demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro, dificultam o trabalho de prefeitos e governadores. “A fala de um presidente é muito importante. Se tivéssemos uma liderança federal forte, o combate à pandemia seria bem melhor. Imagine se [João] Doria e Wilson [Witzel] não tivessem parado São Paulo e Rio? O Brasil já teria uns 50.000 mortos.”
Recentemente, Bolsonaro declarou que a culpa por mortes do coronavírus não é sua, mas sim de governadores e prefeitos. Kalil concorda. “Se morre gente em Belo Horizonte, a responsabilidade é minha. Ele [presidente] tem que mandar dinheiro para as prefeituras. Agora, muito ajuda quem pouco atrapalha. Não tem sido o caso dele.” O prefeito lamenta que os discursos do presidente contribuam para inflamar parte da população contra os gestores locais. “Politizou a coisa. Fica parecendo que quem não quer morrer é comunista. E quem quer morrer, mas protesta em caminhonete cabine dupla, é de direita. Enquanto isso, a gente vê cidade que não tem um respirador sequer abrindo o comércio”, diz Kalil, que foi chamado de “comunista” por bolsonaristas.
A prefeitura de BH montou um grupo técnico, que inclui os infectologistas, para estipular um plano de reabertura gradual da cidade. De acordo com o prefeito, caso os níveis de isolamento social e ocupação de UTIs sejam mantidos, a flexibilização pode começar a partir de 25 de maio. Entretanto, comerciantes, que queriam abrir lojas para o Dia das Mães, seguem insatisfeitos. Por meio de nota, a Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) defende que o afrouxamento das medidas restritivas deveria ser antecipado. “Eu tenho pedido paciência a eles [empresários]”, afirma Kalil. “Quando começar a reabrir, vou chamá-los pra mesa. Precisamos recuperar o comércio. Prefeitura não é banco, mas pretendemos recompensar o sacrifício que estão fazendo de alguma forma.”
Por orientação do filho, que é médico, o prefeito de 61 anos usa um oxímetro para monitorar constantemente a saturação do oxigênio nas células. Inserido no grupo de risco e ex-fumante, Kalil só vai à prefeitura para reuniões essenciais e não vê os netos há dois meses. “Eu estou em pânico, apavorado com esse vírus. Por isso, peço para as pessoas ficarem em casa. Cidadão que sai na rua à toa precisa saber que vai matar ou vai morrer.” Embora tenha sido cartola, ele descarta a volta dos jogos nos estádios da cidadeenquanto o coronavírus ainda representar uma ameaça à saúde pública. “Não tem cabimento botar aglomeração dentro de um campo de 105 metros. Quem fala em futebol agora só pode estar doido.”