Inspirada em modelo dos EUA, versão brasileira da conta Sleeping Giants alerta companhias sobre publicidade em páginas que ajudam a propagar a desinformação. Banco do Brasil, Dell, O Boticário, Submarino e Telecine retiram propaganda.
No El País, por BREILLER PIR
Com o intuito de minar a sustentação econômica de sites e canais ligados à extrema direita, o movimento Sleeping Giants, nascido há quatro anos, nos Estados Unidos, fincou bandeira em solo brasileiro no último domingo. Após ler uma reportagem do EL PAÍS sobre o perfil no Twitter que desidratou a publicidade online dos principais influenciadores ultraconservadores norte-americanos, um estudante que desenvolve pesquisas a respeito de fake news decidiu criar uma conta em portuguêspara difundir prática semelhante no Brasil: alertar empresas de que seus anúncios aparecem em conteúdos pouco confiáveis, associados a notícias falsas e desinformação, e alimentam o financiamento de páginas extremistas.
“Sempre pensei em formas de combater notícias falsas, mas nunca havia encontrado uma eficiente”, diz o administrador da versão brasileira, que, em apenas dois dias, ganhou mais de 20.000 seguidores. “Até que descobri essa maneira simples de aplicar usando a desmonetização.” Por questões de segurança, ele prefere não se identificar e celebra ter obtido aval dos precursores do Sleeping Giants para replicar a iniciativa. Seu fundador na matriz, o publicitário Matt Rivitz, recebeu ameaças de morte depois de um site conservador revelar sua identidade.
Enquanto a conta original norte-americana se define como “um movimento para tornar o fanatismo e o sexismo menos lucrativos”, o perfil adaptado ao contexto político brasileiro pretende “impedir que sites preconceituosos ou de fake news monetizem através da publicidade”. Em pouco tempo de atuação, o Sleeping Giants Brasil já conseguiu que pelo menos seis empresas se comprometessem a revisar políticas de anúncios via Google após serem alertadas de que suas marcas estampavam a página Jornal da Cidade Online. Em 2018, o site disseminou notícias falsas e informações distorcidas a favor da campanha de Jair Bolsonaro, como um artigo insinuando que, no segundo turno da eleição, Ciro Gomes teria se decidido pelo voto no candidato de extrema direita.
Agências de checagem como a Aos Fatos atribuem outras fake news à página, que atualmente tem se dedicado a atacar governadores que apoiam as medidas de isolamento social no enfrentamento à pandemia de coronavírus e, em sintonia com as redes bolsonaristas, utiliza dados imprecisos para defender a eficácia (não comprovada por estudos científicos) da hidroxicloroquina no tratamento da doença. O Jornal da Cidade Online exibe anúncios por meio do sistema de publicidade digital desenvolvido pelo Google.
Um dos anunciantes expostos no Sleeping Giants Brasil que aparecem no site é o Telecine, primeiro a manifestar publicamente a intenção de retirar sua propaganda da página alinhada à extrema direita. “Somos totalmente contra a disseminação de fake news e precisamos, juntos, combatê-la”, expressou o perfil do canal fechado ao assumir o compromisso de analisar todos os portais que veiculam seus anúncios. “Restringimos e estamos sempre atentos para não estarmos em sites questionáveis voltados à disseminação de fake news, difamação e linguagem grosseira, conteúdos sensacionalistas e chocantes e propagação de mensagens de ódio”, afirma o Telecine. “As restrições que incluímos diminuem drasticamente a probabilidade de termos nossas campanhas veiculadas em sites contrários às nossas políticas, e o trabalho dos nossos times é incansável para corrigir eventuais falhas que possam ocorrer com mídias automatizadas.”
A Dell, que também aparece em banners exibidos pelo Jornal da Cidade Online, atendeu à solicitação do Sleeping Giants Brasil. “Assim que recebemos essa informação, solicitamos a retirada dos anúncios automáticos. Repudiamos qualquer disseminação de notícias falsas.” Em nota enviada ao EL PAÍS, a empresa de computadores diz manter parceria com a DoubleVerify, serviço que mede a efetividade das entregas de anúncios, para monitorar suas campanhas publicitárias, além de possuir “uma extensa lista de negativação de sites de fake news e com conteúdo duvidoso, que é constantemente atualizada”.
Nesta quarta, o Submarino afirmou ter bloqueado anúncios no Jornal da Cidade Online e estar tomando providências para barrar sites semelhantes. “Caso vejam mais outro caso, podem me mandar, tá? Obrigado por avisarem!”, postou o perfil da empresa. O Banco do Brasil também comunicou a retirada de propagandas do site, repudiando a divulgação de fake news, o que gerou reação do vereador Carlos Bolsonaro. O filho do presidente criticou a decisão da entidade e saiu em defesa do Jornal da Cidade Online. “Marketing do Banco do Brasil pisoteia em mídia alternativa que traz verdades omitidas. Não falarei nada pois dirão que estou atrapalhando…”, comentou o vereador do Rio de Janeiro.
Outras grandes empresas e marcas como O Boticário e Samsung são citadas por seguidores do Sleeping Giants Brasil entre anunciantes do Jornal da Cidade Online, que tem o topo da página preenchido por um anúncio fixo do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul (TCE-MS). A reportagem do EL PAÍS ainda identificou anúncios da Polishop no site. Segundo o marketing da empresa, a propaganda exibida se baseia na ferramenta de display do Google, que rastreia sites recentemente visitados por usuários ao direcionar anúncios. O TCE-MS não respondeu aos questionamentos enviados ao órgão.
Em nota, a Samsung afirma aplicar o bloqueio padrão a sites que propagam desinformação e que revisa constantemente seus anúncios automáticos para aprimorar as inserções. “A Samsung reforça seu compromisso ético com a transparência e reitera que não compactua com a disseminação de notícias falsas”, escreve a empresa de tecnologia, que não especificou se o Jornal da Cidade Online se encaixa em seus parâmetros de páginas que deveriam ser bloqueada. Já O Boticário informou que incluiu o Jornal da Cidade Online em uma lista de sites vetados em campanhas online, identificados como páginas tendenciosas ou de conteúdos sensíveis a exemplo de álcool, drogas e violência. “Quando percebemos algo que passou despercebido, incluímos imediatamente na lista de bloqueios”, diz a marca de beleza. “Nossos parceiros são escolhidos de acordo com o perfil do nosso consumidor, somado às especificidades da mensagem que queremos passar. E grande parte da entrega do Google é pautada em mídia programática, pois foca nos usuários, e não no anunciante.”
Sistema permite vetar sites e canais específicos
Mídia programática é uma das maiores fontes de receita de sites e influenciadores de extrema direita. A ferramenta proporciona aos anunciantes a compra de espaços publicitários de acordo com dados de usuários da internet, enquanto produtores de conteúdo recebem por visualizações e cliques em anúncios exibidos em suas páginas. O serviço é oferecido por plataformas como Facebook e Google, desenvolvedor do Adsense, um dos meios de publicidade mais populares do mercado. Entre seus filtros de controle, as empresas podem evitar que anúncios sejam veiculados para determinados grupos de pessoas, em conteúdos peneirados por palavras-chave ou até mesmo em páginas específicas negativadas pelo anunciante.
“Entendemos que os anunciantes podem não desejar seus anúncios atrelados a determinados conteúdos, mesmo quando eles não violam nossas políticas”, afirma o porta-voz do Google. “Temos políticas contra conteúdo enganoso em nossas plataformas e trabalhamos para destacar conteúdo de fontes confiáveis. Agimos rapidamente quando identificamos ou recebemos denúncia de que um site ou vídeo viola nossas políticas.” De acordo com a empresa, somente em 2019, mais de 21 milhões de páginas tiveram anúncios retirados e 1,2 milhão de contas foram encerradas por desrespeitar as regras da plataforma.
Em seu perfil, o Sleeping Giants Brasil ressalta que, devido ao sistema de anúncios em larga escala, “a maioria das empresas não sabe que está financiando esse tipo de mídia [de extrema direita ou propagação de fake news], então buscamos conscientizá-las”, em vez de promover campanhas de boicote às marcas, para que retirem propagandas de conteúdos sensacionalistas e, consequentemente, os desmonetizem. No YouTube, que também é gerido pelo Google, a reportagem identificou mais ações de publicidade exibidas em canais ultraconservadores.
Uma campanha da Mastercard, estrelada chef de cozinha Alex Atala, precede o início de vídeos do canal O Giro de Notícias (GDN), com mais de 1 milhão de inscritos. Em publicações recentes, o apresentador bolsonarista Alberto Silva se concentra em incitar manifestações pelo fim do Congresso e do STF, além de minimizar o impacto da pandemia no país. No último dia 6 de maio, ele subiu um vídeo com o título “Urgente – Descoberta a cura do Covid-19”, em que repercute matéria do Estadão sobre uma pesquisa holandesa em torno de um anticorpo com potencial para neutralizar o coronavírus. Embora leia a parte da notícia que destaca a necessidade de mais testes antes de certificar a eficácia do anticorpo em seres humanos, Silva trata o estudo como “cura”, além de identificar a repórter que assina a matéria como cientista. Em 2017, a Justiça do Rio de Janeiro determinou que um site mantido pelo influenciador retirasse do ar uma notícia que atribuía afirmação falsa ao cantor Gilberto Gil.
No vídeo em que aparece o anúncio da Mastercard, o apresentador relata que o PT estaria “fazendo reunião na calada da noite” com “a turma do PSDB, Fernando Henrique Cardoso, entre outras pessoas, com o objetivo de pegar o presidente Bolsonaro”. Entretanto, ao longo da fala de 10 minutos, Silva não menciona quando nem onde teria acontecido a suposta reunião. “A mídia programática é uma parte importante de nossa estratégia e mix de marketing em geral”, escreve a Mastercard em comunicado enviado ao EL PAÍS. “Estamos monitorando continuamente essa abordagem, fazemos ajustes contínuos para que nosso conteúdo seja exibido apenas em canais adequados e comprometidos com altos padrões éticos de publicidade, não apoiando a disseminação de notícias falsas.”
O EL PAÍS ainda registrou anúncios de produtos, que direcionam para a loja online da Drogaria São Paulo, em vídeos do Folha Política. Com quase 2 milhões de inscritos, o canal é derivado de um site homônimo, que, em 2018, teve páginas derrubadas pelo Facebook por propagação de notícias falsas e uso de técnicas irregulares que criavam uma espécie de “fazenda de anúncios” em mídia programática. Apesar da Drogaria São Paulo divulgar em seu site vídeos do médico Drauzio Varella alertando sobre a necessidade de cumprimento das recomendações de isolamento social e a falta de comprovação científica da eficácia da hidroxicloroquina, seus anúncios surgem em vídeos do Folha Política que incentivam aglomerações em protestos a favor do presidente Jair Bolsonaro e fazem lobby pela liberação do medicamento para tratamento do coronavírus. A rede de farmácias não respondeu aos questionamentos da reportagem.