No El País – Defensores da “ucranização” do Brasil usam bandeira do grupo paramilitar de extrema direita do país europeu. Com redução da coalizão de apoio ao Planalto, radicalismo se sobressai.
Nas últimas semanas bandeiras ucranianas passaram a dividir espaço com as brasileiras em atos de apoio ao Governo do presidente Jair Bolsonaro. Carregadas nas costas ou penduradas em carros de som, uma delas chamou a atenção: não era o símbolo oficial do país do leste europeu, amarela e azul, mas sim uma variante vermelha e preta, com o tridente ao centro. É o brasão adotado pelo grupo paramilitar de extrema direita Pravyi Sektor (Setor Direito), criado em 2013 e que se tornou partido político na Ucrânia. O coronel Álvaro Batista Camilo, secretário-executivo da Polícia Militar de São Paulo confirmou na noite de domingo que o conflito ocorrido na avenida Paulista, que era palco de um símbolos: “Provavelmente, [o motivo da briga] seja o pessoal ligado ao neonazismo, que acabaram começando, levando a esse tumulto”. Mas o desejo de “ucranizar” o Brasil não começou na avenida Paulista.
A apropriação de símbolos ucranianos radicais por setores da política brasileira não é nova, e foi construída inclusive contando com o auxílio de aliados de Bolsonaro. “Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!”, escreveu Sara Winter, militante bolsonarista que lidera uma espécie de milícia armada chamada 300 do Brasil, e que foi alvo de operação da Polícia Federal contra a disseminação de fake news. O grupo de Winter fez uma manifestação com tochas diante do Supremo Tribunal Federal no sábado. “Está na hora de ucrânizar (sic) o Brasil! Quem sabe o que foi feito por lá entenderá”, postou no Twitter o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), no final de abril. O parlamentar, que ganhou fama ao quebrar uma placa em homenagem a Marielle Franco durante a campanha de 2018, fez referência na mensagem aos protestos nacionalistas conhecidos como Euromaidan, ocorridos em 2014 e que culminaram com a queda do então presidente Viktor Yanukovytch.
À época o mandatário ucraniano estava na orbita de influência do Governo da Rússia, e atendendo a pedidos de Vladimir Putin, se opôs à entrada de seu país na União Europeia. Milhares de manifestantes tomaram as ruas de Kiev e outras cidades exigindo sua renúncia. Grupos paramilitares, alguns de extrema direita, foram formados para enfrentar as tropas do Governo em verdadeiras batalhas urbanas que deixaram centenas de mortos. O Pravyi Sektor foi um destes grupos. Uma confederação de entidades milicianas que acredita seguir a tradição do Exército Insurgente Ucraniano (que utilizava a mesma bandeira rubro-negra), que se aliou ao Eixo e combateu a União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Uma das consequências da vitória dos manifestantes na Ucrânia foi a incorporação, na política e nas forças armadas regulares, de grupos neonazistas e ultra-nacionalistas em suas fileiras.
Um dos objetivos da “ucranização” do Brasil seria forçar espaços para grupos e pautas conservadoras e radicais no Governo, assim como ocorreu no país do leste da Europa após aos protestos de 2014. “Alguns bolsonaristas construiram uma agenda, que eles alegam ser a agenda do brasileiro, que é extremamente conservadora, armamentista e contra direitos LGBT, por exemplo. Mas essa agenda não encontra representatividade no Congresso, que é mais plural, nem no Supremo Tribunal Federal, que julgou algumas medidas do Executivo como inconstitucionais. Por isso os poderes Legislativo e Judiciário têm sido alvos deles”, explica David Nemer, professor e antropólogo na Universidade da Virginia. Assim como o movimento ultranacionalista ucraniano “refutou o establishment”, estes defensores da “ucranização” do país querem uma ruptura que “dê a Bolsonaro autoridade implementar um Governo que se alimenta de extremismo e que não precise respeitar os demais poderes”. O próprio presidente e seus ministros e familiares têm entrado em conflito com ministros do Supremo, e o mandatário chegou a dizer que não cumpriria decisão judicial que considerasse “absurda”.
Odilon Caldeira Neto, que leciona História Contemporânea na Universidade de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais e é pesquisador do Observatório de Extrema Direita, faz raciocínio semelhante ao de Nemer. Neto vê a intensificação das alas mais radicais dentro do bolsonarismo, que, explícitas nas ruas, demonstram estar ganhando capital político dentro do movimento, buscam aproveitar as brechas para se impor. “O bolsonarismo é um conglomerado muito maior e diversificado que inclui monarquistas, intervencionistas e os neofascistas, que já estavam presentes antes da eleição, mas precisavam disputar espaço com outras tendências. Agora, em um momento de radicalização, eles tomam as ruas e conseguem ficar mais nítidos, conseguem ser reconhecidos como legítimos”, observa o professor.
Embora não sejam movimentos, até o momento, com grande número de adeptos no Brasil, isso não torna os ultradireitistas de inspiração neofascista inofensivos, na visão do professor da Universidade de Juiz de Fora. “Historicamente no Brasil, não houve ruptura institucional sem a participação fascistas e integralistas: eles estiveram presentes nos golpes de 1937, no Estado Novo, e 1964 – e também nos processos de rupturas mais recentes – caso do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff”, conclui. “Porque não estão utilizando símbolos da Hungria ou da Polônia? Certamente os brasileiros não estão interessados nos valores nacionais da Ucrânia, mas sim no que esse país simboliza para a extrema direita. Não é apenas um caso de sucesso no campo da radicalização política. Os protestos foram uma janela de oportunidade para o movimento neofascista ucraniano chegar ao poder ou se inserir dentro dele”, afirma.
O caso brasileiro de reutilização e apropriação de estética e símbolos fascistas e neonazistas —jamais rechaçado pelo presidente ou por seus apoiadores mais próximos— tampouco é original. Assim como Jair Bolsonaro copiou Donald Trump ao usar uma frase popularizada pelo ditador Benito Mussolini (“É melhor um dia como leão do que 100 como ovelha”) em um vídeo do domingo, o movimento de “ucranização” de Sara Winter copia tochas usadas na Europa e nos EUA. “No imaginário social, coletivo, a primeira imagem que vem é a da Klux Klux Klan, mas a tocha tem sido um componente de grande profusão entre grupos identitários com inspiração neofascista em vários países da Europa. É um símbolo grego, que na releitura que a extrema direita faz é associado a uma nação europeia assentada nos mitos de origem. Agora, também retomado pela alt-right norte-americana”, observa Odilon Caldeira Neto. “O que caracteriza os neofascismos é um olhar para o passado que busca recriar a nacionalidade, uma purificação”, segue.
Anticomunismo e participação da embaixatriz ucraniana
Outro ponto da experiência ucraniana que seduz alguns bolsonaristas tem a ver com o repúdio às ideologias de esquerda. Este viés anticomunista, herança de décadas sob o regime soviético de Moscou, chamou a atenção do filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que elogiou a Ucrânia em 2018, e citou o país como exemplo a ser seguido por ter “criminalizado o comunismo”. Na verdade, em 2015 o Parlamento do país aprovou uma lei que proíbe o uso de símbolos nazistas ou comunistas. A bandeira do Pravyi Sektor não foi incluída no veto.
Circularam diversas imagens da bandeira do Pravyi Sektor, no ato bolsonarista de ontem na Av. Paulista, algo que não surpreende. Desde 2014, alguns setores da extrema direita brasileira se inspiram nos métodos e estética de guerra dos radicais na Ucrânia. pic.twitter.com/MoCemfQtIz— Odilon Caldeira Neto (@odiloncaldeira) May 25, 2020
Uma figura da diplomacia ucraniana também teve o papel de disseminar a experiência de seu país por aqui. A embaixatriz da Ucrânia no Brasil, Fabiana Tronenko, assumiu um papel de destaque em protestos contra a corrupção e a favor do Governo de Bolsonaro, disparando críticas contra a esquerda. Circula nas redes um vídeo dela de 2019 discursando em cima de um carro de som com camiseta em homenagem a Sergio Moro, então ministro da Justiça: “É muito fácil apoiar o comunismo sem ter vivido nele”, grita Fabiana para a multidão. Ela também já se reuniu com a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
O próprio Bolsonaro se encontrou com o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskiy no final de 2019. As duas nações estreitaram laços comerciais, e segundo o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, a Ucrânia teria interesse em comprar alguns aviões modelo Super Tucano, da Embraer. Bolsonaro e Zelensky têm algumas semelhanças: ambos foram eleitos com forte discurso antipolítico (o ucraniano era comediante), e os dois também têm uma relação de proximidade e certa subserviência com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
As acusações de que manifestantes brasileiros estavam exaltando um grupo neonazista ucraniano fizeram com que o embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, fizesse declarações para dissociar a bandeira rubro-negra de atividades neonazistas. Em entrevista à CNN ele afirmou que trata-se de “uma bandeira histórica que significa a terra fértil da Ucrânia, com a faixa negra, e [a vermelha] o sangue que ucranianos durante séculos derramaram na luta pela nossa soberania, liberdade e independência”. Em uma nota divulgada por ele em 28 de maio, Tronenko reforça o caráter anticomunista da bandeira: “Essa bandeira foi usada desde o século XVI pelos cossacos ucranianos nas lutas contra invasores estrangeiros (…) e virou o símbolo de luta dos ucranianos contra ocupação, chauvinismo e imperialismo russos”.