Após a Medida Provisória 910, conhecida como MP da Grilagem, ter caducado no dia 19 de maio, os setores do governo favoráveis à sua aprovação articularam uma estratégia para seu conteúdo não sair de pauta. A medida se transformou no Projeto de Lei 2633/2020 (PL), com autoria do deputado Zé Silva (Solidariedade/MG), e relatoria do deputado Marcelo Ramos (PL/AM). Mesmo com alterações em pontos críticos, para muitos atores ligados ao campo socioambiental, o texto continua sendo uma ameaça, principalmente, ao Cerrado e à Amazônia.
POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO ISPN
A novela sobre o desmatamento e a grilagem
O enredo das propostas que prometeram facilitar a regularização fundiária no Brasil foi desnudado em apurações feitas pelo site do De Olho nos Ruralistas que revelou favorecimento de aliados políticos e familiares associados aos principais atores envolvidos na composição dos textos apresentados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. As reportagens podem ser acessadas por meio dos links: Link 1 e link 2.
A diferença do texto do PL para a antiga MP está no marco temporal e no tamanho das propriedades que podem solicitar a regularização fundiária sem vistoria prévia para comprovar a ocupação. O PL 2366 ampliou esse processo simplificado para regularização de imóveis com até seis módulos fiscais, e manteve o marco temporal vigente hoje. No entanto, parlamentares ligados à bancada do agronegócio e à ala mais radical do Ministério da Agricultura pressionam para que sejam retomados os marcos propostos no texto original da MP 910, com regularização de áreas ocupadas irregularmente até 2014 e sem vistoria até 15 módulos fiscais. Ambas as alternativas ampliam o tamanho das áreas passíveis de regularização sem vistoria prévia em relação à lei em vigor, que já prevê o processo simplificado para quatro módulos fiscais.
“O princípio continua o mesmo. Nós estamos dando terra com um preço muito mais abaixo do mercado, para quem não cumpriu a legislação ambiental”
Diante do imbróglio, no último dia 17, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se posicionou dizendo que a votação do PL 2633 deve ficar para depois do enfrentamento à pandemia da COVID-19, caso não haja acordo entre os diferentes atores envolvidos no debate da proposta. Se de um lado a bancada do agronegócio exige a retomada do texto anterior, setores mais progressistas do governo, organizações da sociedade civil, agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais, pesquisadores, e instituições, como o Ministério Público Federal, pontuam que, mesmo com nova roupagem, o texto permanece silenciando medidas efetivas de combate à grilagem e ao desmatamento e dá, inclusive, espaço para que essas práticas sejam premiadas.
“O princípio [do projeto] continua o mesmo. Nós estamos dando terra com um preço muito mais abaixo do mercado, para quem não cumpriu a legislação ambiental. Ou seja, nós estamos estimulando o crime, estamos estimulando o desmatamento. Isso quando nós sabemos que o desmatamento é uma das fontes que pode, sem dúvidas, estimular novas pandemias”, comenta o professor do Departamento de Geografia e do programa de pós-graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP), Wagner Ribeiro em entrevista à Rede Brasil Atual.
Os pontos do PL 2633 citados pelo professor Wagner giram em torno de conceitos herdados da MP 910, que, em sua análise, resulta em:
– Aumenta o risco de titulação de áreas sob conflito e contraria uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) ao ampliar para imóveis de 6 módulos fiscais a isenção de vistoria prévia à titulação, sem reforçar as medidas de fiscalização remota a partir de dados já disponíveis. A lei atual prevê processo simplificado para regularização fundiária de áreas até 4 (quatro) módulos fiscais.
– Permite titular áreas desmatadas ilegalmente, pois aquelas que ainda não foram autuadas ou embargadas poderiam ser tituladas sem exigir assinatura prévia de instrumento de regularização de passivo ambiental.
– Fragiliza o cumprimento da lei ambiental após a titulação, pois abre brecha para que o titulado mantenha o imóvel, mesmo se praticar desmatamento ilegal em até dez anos após receber o título.
– Pode estimular a ocupação de novas áreas visando obtenção de terra via licitação facilitada.
– Traz inovações limitadas para suprir a baixa capacidade de recursos humanos do Incra.
– Não traz inovações no combate à grilagem, pois apenas replica leis já existentes.
Para a pescadora artesanal Josana Pinto, esse é um projeto que em nada vai beneficiar os povos ribeirinhos e outros povos e comunidades tradicionais, além de desviar o foco para o mais urgente: o enfrentamento à pandemia da COVID-19. “Esse projeto não traz benefícios para a população. Nossa urgência hoje é a crise sanitária que estamos passando, e não beneficiar grileiros que querem roubar nossas riquezas. Muitos povos e comunidades tradicionais estão sofrendo com a covid-19 e nada vem sendo feito”, comenta.
“Esse projeto não traz benefícios para a população. Nossa urgência hoje é a crise sanitária que estamos passando, e não beneficiar grileiros que querem roubar nossas riquezas”
A regularização fundiária justa deve acontecer em diálogo com o direito territorial dos povos do campo. Foto: povo indígena Krahô. Acervo ISPN/Peter Caton.
A Carta do II Seminário Terra e Território: Diversidade e Lutas, realizado em maio e de maneira on-line, traz posicionamento de diversas organizações do campo contra o PL da Grilagem, alertando sobre o perigo da proposta para o meio ambiente e os povos. “Projetos como esse alimentam a invasão de Unidades de Conservação e o aumento da violência e expulsão contra indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais, trabalhadores e trabalhadoras que fazem a luta pela terra. A consequência é o aumento do desmatamento, do efeito estufa, da poluição e das crises ambiental, social e econômica”, diz um dos trechos do documento.
Desmatamento e descaso com o meio ambiente continuam
Segundo relatório do MapBiomas, 99% do desmatamento praticado no Brasil ano passado teve origem ilegal. Foram 56 mil pontos de alerta em todo território nacional, mas o maior impacto foi no Cerrado e na Amazônia, biomas que também serão mais afetados caso o PL 2633 seja aprovado. O que o relatório ainda mostrou foi que dois terços das terras desmatadas ou tem registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou titulação, o que já possibilitaria identificar e punir os culpados. O que diversas organizações da sociedade civil (OSCs) questionam é: por que esperar um projeto de lei para identificar e punir os culpados? A regularização das terras desmatadas não seria premiar os grileiros?
Para as OSCs, o debate sobre a regularização fundiária no Brasil é antigo e complexo para ser resolvido às pressas e com votações de propostas em meio à uma crise sanitária e diante de um cenário controverso para o meio ambiente. As multas por desmatamento ilegal na Amazônia estão paralisadas desde outubro de 2019, por exemplo. Junto a pesquisadores, essas organizações com histórico de atuação no campo socioambiental defendem que, para resolver o problema do desmatamento e da grilagem no Brasil, é preciso investimento e compromisso do poder público, inclusive, fazer valer a legislação que já existe nesse campo.
Quais as soluções para a regularização fundiária no Brasil afinal?
Algumas soluções pensadas passam por temas poucos debatidos dentro do parlamento como a reforma agrária e a priorização da demarcação de terras indígenas, da titulação de territórios quilombolas e a viabilização da regularização dos territórios de outros povos e comunidades tradicionais. São esses grupos que, como sugerem seus modos de vida, cumprem importante papel para a proteção ambiental. Estudos científicos vêm comprovando que a destinação de florestas públicas para proteção é a forma mais rápida e eficiente de conservação. Outra estratégia versa sobre a devolução de terras públicas invadidas ilegalmente, nos casos em que os invasores não cumprem os requisitos de regularização, ou quando as áreas pleiteadas possuem outras prioridades legais de destinação.
“É necessário resolver os problemas fundiários de camponeses, agricultores familiares, indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, o que temos convicção que não passa pela proposta apresentada pelo PL de Zé Silva, mas passa pelo fortalecimento do INCRA e pela resolução dos conflitos assegurando os direitos dos povos”, salienta ainda o documento das organizações do campo.
Esses e outros caminhos existem para que uma regularização fundiária justa aconteça, mas seu debate precisa ser feito de forma ampla e democrática, como defende o assessor jurídico do ISPN, Guilherme Eidt. “A votação desse PL 2633 não pode acontecer na surdina, em meio à uma pandemia, e sem um debate transparente e democrático. Do jeito que está, o PL da Grilagem aprofundará ainda mais as irregularidades já apontadas pelo Tribunal de Contas da União nos atuais processos de regularização fundiária, e abrirá caminho para o aumento do desmatamento já observado no Cerrado e na Amazônia, apenas com a expectativa de direito gerada pela apresentação da MP 910”. Cabe agora ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, manter a palavra e esperar por um melhor momento para o debate. Ceder à pressão de setores que esquecem a importância de mantermos nossas florestas em pé é um desserviço contra o desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente responsável.