A grilagem que dá certo

A grilagem que dá certo

Na Amazônia Real, por Lúcio Flávio Pinto – A Amazônia foi um dos temas de maior importância ao longo dos 21 anos da ditadura militar. O regime induziu a aceleração e a ampliação da ocupação econômica da região, que ainda mantinha poucas ligações com o restante do país, recém-integrada ao país pelas estradas Brasília- Belém e Brasília-Acre, embora ocupasse dois terços do seu espaço territorial.

A diretriz dessa política era a doutrina de segurança nacional, que dava tanta importância às fronteiras externas quanto aos conflitos internos. A fonte dessa doutrina era o Conselho de Segurança Nacional, o principal órgão de assessoramento do presidente da república.

Por esta concepção geopolítica, a Amazônia Legal estava sob permanente cobiça estrangeira, por causa da sua abundância de recursos naturais, a maior do planeta, numa extensão equivalente a 60% dos Estados Unidos, a única potência mundial da época.

Era preciso dirigir para ela grandes fluxos migratórios nacionais, assentar esses colonos nos vastos “espaços vazios” regionais, dar-lhes sentido produtivo em escala comercial, conectar a nova fronteira aos mercados internos e externos e integrá-la ao Brasil para não entregá-la, um dos grandes lemas dos governo militares.

A Amazônia deveria ser o Éden fundiário. Em seus imensos “espaços vazios” poderiam ser assentados milhões de habitantes do campo, sem acesso a propriedade da terra, através de muitas formas de sujeição ao dono, na terra de origem, como o arrendamento e a parceria. No novo lar, ganhariam lotes médios de 100 hectares, para produzir e, com a renda obtida, atingirem o patamar de classe média rural.

Paradoxalmente, porém, o reino da paz acabaria se transformando no cenário dos maiores conflitos na disputa pelo domínio da terra, que acabou sendo apropriada pelos detentores de mais capital, influência e poder. 

Eles inicialmente se apossaram de glebas maiores (de 3 mil hectares, em média) nos loteamentos do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Instalados nos travessões mais distantes, foram engolindo terra, até chegar à beira das estradas, comprando lotes vizinhos dos colonos e ampliando suas propriedades por outros milhares de hectares. 

Depois, foram açambarcando novas áreas pela grilagem. Valiam-se dos cartórios de registro de imóveis do interior, mal estruturados ou corrompidos, para criar no papel propriedades implantadas ilegalmente sobre terras públicas ou devolutas. A confirmação do domínio era feita à força, recorrendo-se a capangas ou à polícia estatal.

A fronteira se fechou por dentro, como disseram os teóricos. O homem do campo chegava à Amazônia com a esperança de, finalmente, ter a sua própria terra, mas se reduzia a posseiro – ou seja, uma ocupação precária, que precisava defender das agressões dos grileiros.

Em 1976, o Conselho de Segurança Nacional recomendou ao presidente da república, o general Ernesto Geisel (o terceiro no cargo desde 1964), a intervir nesse conflito, cada vez maior, mais intenso e mais sangrento (tornou-se o maior em todo país). Para isso, expediu duas exposições de motivos.

A União assumira, cinco anos antes, num ato de força, o controle de dois terços das terras devolutas estaduais situadas numa faixa de 200 quilômetros de largura ao longo das estradas federais construídas, em construção ou simplesmente projetadas na região. A União era o maior latifundiário do planeta. Com a 006, poderia vender, sem licitação pública, áreas de até 3 mil hectares, a quem, com sua família, possuísse morada habitual e cultura efetiva por pelo menos 10 anos.

Raros posseiros poderiam atender esses requisitos, já que a maioria fora atraída, entre 1970 e 1971, pela colonização oficial dirigida às margens da Transamazônica. Mesmo entre eles, alguns não conseguiriam provar que sua presença no local fora sempre mansa e pacífica durante esse decênio. Por isso, a iniciativa ficou inócua.

Já a exposição de motivos 005 do CSN se destinava a regularizar a situação jurídica das grandes propriedades rurais, formadas com titulação irregular. Para limpar títulos de terras viciados, seu detentor teria que cancelar o registro em cartório do imóvel e transcrevê-lo em nome da União, que então promoveria a sub substituição do título por um documento legal, capaz de conferir domínio pleno sobre a terra. Mas os proprietários só aceitavam participar desse processo se recebessem o papel oficial no mesmo momento em o cancelamento do título grilado.

A dupla tentativa acabou não dando certo. Poderia dar certo agora, em plena democracia, pelo governo Bolsonaro. Ele se dispõe a confirmar as ocupações de grandes áreas de terras griladas na Amazônia pela simples declaração do beneficiado, sem as condições estabelecidas – nem as provas exigidas – quase meio século antes, sob a ditadura militar. Assim, a grilagem pode dar certo e a Amazônia, mais saqueada ainda, continuará a diminuir. 


A imagem que ilustra este artigo é uma ampliação fotográfica em preto e branco usada para o fechamento do jornal O Movimento na época da abertura de estradas e devastação da Amazônia em 12 de fevereiro de 1979, durante a ditadura militar. (Acervo do Jornal O Movimento/ Arquivo Público de São Paulo)

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