Desconstruindo a carta chorona e cheia de mentiras assinada por Bolsonaro

Desconstruindo a carta chorona e cheia de mentiras assinada por Bolsonaro

Reinaldo Azevedo – Passou a circular na noite desta terça um texto pateticamente engraçado, assinado por Jair Bolsonaro. É patético porque o chefe da nação se coloca como uma espécie de líder dos mártires da liberdade.

Vale dizer: resolveu assumir o lugar da vítima, o que é sempre uma posição perigosa porque, então, qualquer coisa que faça passa a ser considerada uma reação à suposta injustiça. E a coisa tem a sua graça porque o presidente não diz a razão do documento, embora todos saibamos que ele está furioso porque aliados seus estão sob investigação. E por que estão? Bem, as evidências de que cometeram crimes estão aos olhos de todos.

Segue o texto assinado pelo presidente:

– O histórico do meu governo prova que sempre estivemos ao lado da democracia e da Constituição brasileira. Não houve, até agora, nenhuma medida que demonstre qualquer tipo de apreço nosso ao autoritarismo, muito pelo contrário.
Não é verdade nem nos valores que vocaliza nem nos atos que pratica. Prestigia manifestações em defesa do fechamento do Congresso e do Supremo; ameaça a política com a intervenção das Forças Armadas; apoia grupos que discriminam minorias e incentivam a intolerância; deu início ao desmonte de políticas ambientais sensatas sob o pretexto de combater exageros, o que prejudica a economia brasileira; incentiva a invasão de terras indígenas; agride bens protegidos pela Constituição com uma política e um discurso verdadeiramente homicidas para enfrentar a pandemia; confessa que está facilitando o armamento da população com vistas à guerra civil. É o suficiente para começar a conversa?

– Em janeiro 2019, após vencermos nas urnas e colocarmos um fim ao ciclo PT-PSDB, iniciamos uma escalada do Brasil rumo à liberdade, trabalhando por reformas necessárias, adotando uma economia de mercado, ampliando o direito de defesa dos cidadãos.
Bem, inexiste tal ciclo. Isso é uma fantasia estúpida. As duas legendas propuseram soluções distintas para o país, opostas com frequência. Ao fazer essa afirmação, poderia estar recusando os defeitos de cada partido, mas, como se sabemos, recusa as respectivas qualidades de ambos. Isso quer dizer que ele repudia, por exemplo, o Plano Real dos tucanos e a ampliação das políticas sociais do petismo. Qual “direito do cidadão” o presidente ampliou, como diz? O de agredir o meio ambiente sem ser multado? O de barbarizar nas estradas sem temer o radar? O de andar com um trabuco na cinta? Mais uma vez, ele confunde direito com abuso de direito.

– Reduzimos também todos índices de criminalidade, eliminamos burocracias, nos distanciamos de ditaduras comunistas e firmamos alianças com países livres e democráticos. Tiramos o Estado das costas de quem produz e sempre nos posicionamos contra quaisquer violações de liberdades.
Os índices de criminalidade começaram a cair no governo de Michel Temer. Não houve uma só ação concreta em sua gestão que concorresse para tanto. Ao contrário: o incentivo ao armamento e o estímulo à violência policial — quando não, o apoio ao banditismo armado, como se viu no motim do Ceará — concorrem para mais mortes. Informe-se: a violência já tinha voltado a crescer. Deve estar mitigada, agora, pela pandemia. Desafio o presidente a informar quais alianças especiais fez o Brasil, como ele escreve, com “países livres e democráticos”. O antes possível futuro acordo Mercosul-União Europeia, por exemplo, corre risco em razão da barbárie ambiental. Distanciar-se de Cuba e da Venezuela trouxe qual benefício ao país até agora? É de uma irrelevância danada. Por ora, contamos com a tolerância — e interesses certamente — da China, potência oficialmente comunista, principal parceria comercial do Brasil e alvo preferencial de seus extremistas. Temos a política externa mais incompetente e burra da história.

– O que adversários apontam como “autoritarismo” do governo e de seus apoiadores não passam de posicionamentos alinhados aos valores do nosso povo, que é, em sua grande maioria, conservador. A tentativa de excluir esse pensamento do debate público é que, de fato, é autoritária.
Bem, seria preciso definir “conservadorismo”. O proselitismo contra a fantasiosa ideologia de gênero, por exemplo, tem servido à disseminação do preconceito e à violência. Ele acusa adversários imaginários de tentar banir tais valores. Que dê exemplos. É conversa mole.

– Vale lembrar que, há décadas, o conservadorismo foi abolido de nossa política, e as pessoas que se identificam com esses valores viviam sob governos socialistas que entregaram o país à violência e à corrupção, feriram nossa democracia e destruíram nossa identidade nacional.
É mesmo? Os evangélicos, que compõem a quase totalidade da massa conservadora, eram 9% da população em 1991; passaram para 15,4% em 2000 e para 22,2% em 2010 e se estima que sejam hoje 31,8%. Nos anos dos ditos governos socialistas do PSDB e do PT, mais do que triplicaram de tamanho. Os evangélicos na Câmara já correspondem a 38% dos parlamentares: 195 — com uma representação superior à sua presença na sociedade. Em que os governos passados atrapalharam essa ascensão? Como esquecer a então presidente Dilma Rousseff na condição de convidada de honra na inauguração do tal Templo de Salomão, de Edir Marcedo, agora bolsonarista convicto? Ah, para constar: nunca houve governo socialista no Brasil. Isso não é só estúpido. É mentiroso também;

Reduzir governos passados à corrupção e à violência é proselitismo mixuruca. Mas ainda que assim tivesse se dado, pergunta-se: a lei atuou ou não? Não vou entrar no mérito sobre a justeza dos processos porque não cabe aqui e todos sabem o que penso. Lembro que as acusações de corrupção derrubaram uma presidente da República e mandaram dois ex-presidentes para a cadeia — houve abusos nesses dois casos em vez de impunidade.

Bolsonaro aplaudiu os mesmos entes que concorreram para esse resultado: Ministério Público Federal e Poder Judiciário. E agora não pode suportar que seus amigos sejam investigados? 

– Suportamos a todos esses abusos sem desrespeitar nenhuma regra democrática, até mesmo quando um militante de esquerda, ex-membro de um partido da oposição, tentou me assassinar para impedir nossa vitória nas eleições, num atentado que foi assistido pelo mundo inteiro.
Quais abusos? A carta não cita! A sugerida conspiração de esquerda para matá-lo é pura fantasia. A facada ajudou a elegê-lo. É fato. A propósito: o que isso tudo tem a ver com bandidos que estão sendo investigados pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal?

– Do mesmo modo, os abusos presenciados por todos nas últimas semanas foram recebidos pelo governo com a mesma cautela de sempre, cobrando, com o simples poder da palavra, o respeito e a harmonia entre os poderes. Essa tem sido nossa postura, mesmo diante de ataques concretos.
Quais abusos? Quem comanda a investigação dos crimes cometidos por seus amigos é o Ministério Público Federal. O texto fala em “ataques concretos”. Os únicos havidos até agora foram perpetrados por aliados seus, que resolveram fazer um bombardeio simbólico do Supremo, sob o silêncio do mandatário.

– Queremos, acima de tudo, preservar a nossa democracia. E fingir naturalidade diante de tudo que está acontecendo só contribuiria para a sua completa destruição. Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo.
O que está acontecendo além do cumprimento da lei? Como se nota, a carta não diz. Quem atenta contra a liberdade? Bolsonaro certamente não se refere àqueles que pregam o fechamento do Congresso e do Supremo, certo? Estes, afinal, contam com o seu apoio.

– Só pode haver democracia onde o povo é respeitado, onde os governados escolhem quem irá governá-los e onde as liberdades fundamentais são protegidas. É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso sim é democracia.
Não vou comentar platitudes. A afirmação do presidente de que “é o povo que legitima as instituições, e não o contrário” é besteira que lhe foi soprada aos ouvidos pelos primitivos que o cercam. Esse é um princípio já consagrado no nosso ordenamento político e jurídico, materializado no processo constituinte. Usar o “povo” — na verdade, os extremistas da fatia que o apoia, que já é uma minoria — para assaltar a ordem legal em nome da vontade popular é coisa de fascistoide. E não vai acontecer. O senhor foi eleito para governar segundo a ordem constitucional que aí está. Se quer mudar a Carta, recorra aos instrumentos que ela oferece.

– Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas. Por isso, tomarei todas as medidas legais possíveis para proteger a Constituição e a liberdade do dos brasileiros.

Segundo o presidente da República, direitos estão sendo violados. Quais e por quem? Pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário? Ele aplaudia esses dois entes quando membros do PT e de outros partidos eram investigados, mas não suporta ver seus aliados submetidos ao mesmo escrutínio. E olhem que não haverá nenhum juiz que vai mandá-lo para a cadeia para depois servir a um adversário seu.

Aprovo apenas seis palavras da sua carta: “Tomarei todas as medidas legais possíveis”. De um presidente, espero que só tome “medidas legais”. Lembro que ele já praticou ilegalidades em penca. A sorte é contar com um procurador-geral da República camarada, para quem já acenou até com uma vaga no STF. E já incorreu em pelo menos 16 crimes de responsabilidade. Não por acaso, está distribuindo cargos ao Centrão: recorre ao bem público para se livrar do impeachment.

De toda sorte, indago de novo: do que ele está falando? 

BRASIL ACIMA DE TUDO; DEUS ACIMA DE TODOS!
E a Constituição acima de Deus no que respeita ao ordenamento institucional. Ou Deus participa do debate? Até porque, em seu preâmbulo, o texto constitucional diz estar “sob a proteção de Deus”. Respeite a Carta Magna, senhor presidente! Deus já estará contemplado.

Não caia na tentação de seguir a máxima dos totalitários: “Aos amigos tudo, menos a lei; aos inimigos, nada. Nem a lei”.

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