A pandemia da Covid-19 contaminou 9 pessoas da etnia e todos estão usando máscaras para evitar o contágio (Foto da Associação do Povo Karitiana)
Por Elizeu Braga, especial para Amazônia Real
Porto Velho (RO) – Duas chamas de memória se apagaram para o povo Karitiana. O líder Gumercindo Karitiana, de 66 anos, e sua mãe, a anciã Enedina Karitiana , de 86 anos, foram as primeiras vítimas da Covid-19 entre os povos indígenas de Rondônia.
No dia 20 de maio, Gumercindo foi internado na UTI do hospital Cemetron, na capital Porto Velho. Dois dias depois ele foi transferida para a UTI do hospital particular SAMAR. Faleceu no dia 25 de maio, aos 66 anos.
Oito dias depois, sua mãe Enedina foi internada na Upa da Zona Leste, onde passou cinco dias. O estado de saúde agravou e ela foi transferida para a UTI do hospital João Paulo II, onde faleceu no dia 4 de junho às 11 horas da manhã. Seu corpo também foi levado para a Aldeia Central Karitiana para ser sepultado ao lado do filho Gumercindo.
“Enedina já tinha problemas de saúde, por conta da idade, mas que foram agravados devido ao coronavírus”, relata a liderança Antenor Karitiana.
O líder Karitiana foi funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai). Participava ativamente de encontros e movimentos que buscavam escutar sua voz e de outros parentes.
“Gumercindo era uma enciclopédia de saber, contava histórias, muito habilidoso no trabalho com as mãos, era o nosso engenheiro e arquiteto. Ele num instante levantava uma casa, nem fazia anotações no papel. Se precisava abrir uma estrada, tomava a frente e liderava os mais jovens. Nosso povo está muito sentido com sua partida, abalou muito a gente. É como se uma árvore imensa que fazia sombra para muitos, tivesse sido cortada, e de uma hora pra outra ficamos no sol quente”, lamenta o sobrinho Elivar Karitiana, vice-presidente do Conselho de Saúde Indígena (Condisi) do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Porto Velho, órgão do Ministério da Saúde.
Os primeiros casos do novo coronavírus entre os povos indígenas de Rondônia foram registrados no dia 18 de maio. Três indígenas do povo Karitiana da aldeia Caracol foram infectados após irem à capital receber o auxílio emergencial do governo federal no banco.
Até 28 de maio já eram 09 casos confirmados de Covid-19 entre os indígenas Karitiana. Três pessoas retornaram para se recuperar na aldeia. Quatro ficaram internadas na cidade de Porto Velho.
Nas mãos os grãos de milho
Na busca de reduzir o impacto da pandemia em seu povo, Elivar Karitiana, vice-presidente do Condisi, solicitou apoio e atuação do Ministério Público Federal (MPF) para que o sepultamento de Gumercindo fosse realizado na terra Indígena da Aldeia Central Karitiana.
O MPF diz que na Constituição Federal são garantidos os direitos e valores às comunidades indígenas, com o intuito de preservar as suas tradições. Durante o sepultamos da mãe e filho Karitiana, o órgão solicitou que as recomendações sobre a prevenção da Covid-19 fossem cumpridas conforme a determinação de autoridades de saúde. Os caixões foram lacrados e não houve velório, para evitar aglomeração de pessoas. Parentes que são consideradas do grupo de risco, vulneráveis ao vírus, não participaram. Todos os presentes usaram máscara e álcool em gel.
No entanto, as medidas de restrições para evitar o contágio impediram que parte da tradição fosse concluída. Durante o enterro, a irmã de Enedina Karitiana tentou se aproximar da urna. Ela levava nas mãos alguns grãos de milho e pedaços de algodão.
Elivar Karitiana conta que foi muito difícil para ele conduzir a situação, que essa imagem não sai de sua cabeça. “Me doeu bastante, sentir como se estivesse ofendendo a memória do meu povo. Essa doença mata duas vezes a gente”, diz.
Para Antenor Karitiana, a morte de Enedina ainda não pode ser medida. Ele conta que pelo costume do seu povo os mais velhos não podem procurar os mais jovens para passar seu conhecimento, mas se uma pessoa jovem se interessa em aprender, o mais velho lhe ensina.
“Enedina guardava a sabedoria das plantas, ela tinha remédio que só ela conhecia, esse saber era muito importante, não sei se alguém buscou aprender”, diz Antenor Karitiana.
A pandemia em Porto Velho
Segundo ao último boletim emitido do Ministério da Saúde, em Rondônia, no dia 26 de junho, foram confirmados 19,271 casos de Covid-19 e 476 mortes. A capital Porto velho concentra 70% dos casos do estado. A situação está à beira de um colapso na capital do estado.
O governo anunciou que comprou o prédio da antiga maternidade Regina Pacis e a transformou no hospital de campanha, entregue após 48 dias, com 12 leitos de UTIs, que foram prontamente ocupados.
Na quarta-feira (24), a Prefeitura de Porto Velho acionou a Justiça, através da Procuradoria-Geral do Município, para que o governo de Rondônia fosse obrigado a decretar lockdown (o bloqueio total) da população dentro de casa e do fechamento dos serviços não essenciais por 14 dias na cidade.
O juiz Edenir Sebastião da Rosa determinou que seja realizada uma audiência virtual nesta segunda-feira (29) entre o governo, prefeitura de Porto Velho e os secretários de saúde antes de decidir sobre o pedido do município.
Já os Karitiana tomaram suas medidas de prevenção à doença Covid-19. As mortes do líder Gumercindo e de sua mãe Enedina trouxeram um sinal de alerta para os indígenas; muitos deixaram de circular na cidade e se isolaram na aldeia em busca do tratamento com a medicina ancestral.
Indígenas com coronavírus
O Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Porto Velho, ligado ao Ministério da Saúde, registrou até 26 junho, 106 casos confirmados de novo coronavírus entre indígenas e duas mortes dos Karitiana. Outros 42 indígenas estão com infecção ativa. “Que ainda não completou 14 dias em isolamento domiciliar, a contar da data de início dos sintomas, ou, em caso de internação hospitalar, que ainda não recebeu alta médica”, diz o boletim da Sesai.
Em uma live articulada da Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia (Agir), Elivar Karitiana contou que, antes da pandemia chegar em Porto Velho, o Condisi juntamente com o Dsei constituiu um plano de ação onde uma comissão foi formada para atuar diante de uma situação emergência. Porém, quando a realidade chegou e o povo Karitiana apresentou os primeiros casos do Covid-19, o plano de trabalho não foi executado. O mesmo acontece agora com povos indígenas de Guajará Mirim, diz.
“Então, muitos parentes são sabedores, que quando tivemos os primeiros casos confirmados entre os Karitiana na Aldeia Caracol. Eu entrei em desespero, pedir ajuda nos grupos. Em momento algum a equipe do Dsei se prontificou para ajudar”, disse Elivar.
“Apenas a equipe da Casai de Porto Velho que trabalhou com tudo que tinha para tentar conter a situação infelizmente essa equipe teve 80% de seus profissionais afastados por terem sido diagnosticado com Covid-19. Então, a realidade é essa, a equipe do Dsei Porto Velho não está preparada para atuar diante da pandemia”, afirma Elivar Karitiana, vice-presidente do Condisi.
Atualmente na Casai em Porto Velho tem apenas um enfermeiro e uma enfermeira se revezando, em um plantão de 48 horas, segundo ele.
“O Dsei Porto Velho está abandonado pela Sesai e concentra seus esforços apoiando as campanhas de arrecadações de alimentos e produtos de higiene, auxiliando com o transporte entre a cidade e as aldeias”, afirma Elivar Karitiana.
A agência Amazônia Real procurou a coordenação do Dsei Porto Velho, mas não localizou um representante para falar sobre a ação de combate a pandemia da Covid-19 aos indígenas Karitiana. No site, a Sesai informa que o distrito atende 13.407 pessoas de 65 etnias em 187 aldeias, que abrangem também o sul do Amazonas.
O povo Yjxa (nós)
O território Karitiana fica a aproximadamente 100 quilômetros da capital Porto Velho e tem uma área de 90 mil hectares. São seis comunidades: Aldeia Central Karitiana; Bom Samaritano; Juari Byjyty osop aky – Rio Candeias; Caracol e Beijarana.
Antenor Karitiana conta que o nome da etnia teve a sua origem devido ao contato com seringueiros, que invadiram o território indígena no final do século 19. O nome Karitiana é mantido até hoje como sobrenome.
O nome de origem é Yjxa que significa – “nós”, também traduzido como “gente” –, em oposição aos Opok, os “não-índios” e aos opok pita, os “outros índios”.
Os Karitiana são guardiões de muitos saberes, sua língua é a única remanescente da família linguística Arikém, do tronco Tupi.
A Gopatoma
Diante do que dizem “descaso da Sesai”, os Karitiana e outros povos Indígenas do estado de Rondônia, estão acendendo suas memórias, trocando seus saberes, e encontrando entre eles um caminho onde conseguem se proteger e se curar.
“Estamos descobrindo que o remédio tradicional é muito melhor do que da farmácia, estamos discutindo isso agora, de utilizar mais da nossa medicina” diz Antenor Karitiana.
O processo de prevenção à doença vem de uma mistura de plantas que recebe muitos nomes. Um deles é o Gopatoma.
“Gopatoma é para prevenir, tipo vacina, para não pegar doença. Tem que tomar banho, tem regra e tem vários tipos”, diz Antenor Karitiana.
Elivar Karitiana conta que não tinha muitas esperanças no começo, diante dos fatos e com o Dsei Porto Velho sem preparo. Ele temia pelo pior.
Um início do mundo
O cacique Gumercindo da Silva Karitiana deixou sua imagem eternizada na internet. No documentário Diários Visuais, disponível no Youtube, ele conta um pequeno trecho da história do nascimento do mundo para o povo Karitiana, que diz assim:
“O nome do Deus é Botyj̃ (Botãen).
Ele nasce de dentro da casa da cigarra. Num tem a cigarra? Um bichinho bem pequeno que canta? Ele sai dali, da casa da cigarra. Esse Deus, bem pequeno, ele vai crescendo, tinha muito poder, aí ele vai crescendo, crescendo, fica do tamanho de homem, dali vem também a mulher, e fica só os dois, olhando pra terra que num tinha nada, num tinha rio, num tinha mata, num tinha bicho, era nada. Eles se olharam e pensaram, pensaram. Então começaram a trabalhar para fazer o mundo, tudo que ainda não tinha, aí nosso mundo foi nascendo“. Esse é um pequeno trecho da história do nascimento do mundo para o povo Karitiana, contada pelo líder Gumercindo da Silva Karitiana no documentário Diários Visuais (disponível no YouTube).
*Essa reportagem contou com a colaboração de Laura Karitiana, estudante no curso de Licenciatura em Educação Básica Intercultural para Povos Indígenas do Estado de Rondônia, Márcia Mura, escritora e ativista do Coletivo Mura em Porto Velho e Iremar Antônio Ferreira, do Coletivo Mura de Porto Velho.