Proposta que abre espaço a privatização dos serviços de água e esgoto só depende de sanção de Bolsonaro para virar lei
Erick Gimenes, Brasil de Fato
O novo marco legal do saneamento básico, aprovado pelo Senado Federal na quarta-feira (24), não resolve os problemas que, de fato, existem no setor e ainda aprofunda a segregação social no acesso a água e ao esgoto, afirmam especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.
O projeto, que agora só depende de sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para virar lei, cria abertura para privatizações dos serviços prestados e extingue o modelo atual de contrato entre os municípios e as empresas estaduais de água e esgoto.
Para Marcos Montenegro, engenheiro e coordenador do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), os parlamentares utilizaram-se de mazelas reais – hoje, 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso a água tratada e quase metade não tem esgoto tratado – para beneficiar setores privados.
“A privatização é a cloroquina, o remédio errado, o remédio que pode matar o doente em vez de resolver os problemas. O projeto vem embalado por uma campanha que destaca as mazelas, mas não conseguiu fazer um diagnóstico das causas dos problemas que nós vivemos”, faz um paralelo com a medicação venerada Bolsonaro.
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Para Montenegro, é o presidente, inclusive, que impulsiona um “Estado privatizado”, que deixa de atender necessidades coletivas em troca de prestar serviços a interesses privados. Segundo ele, a alternativa neoliberal para solucionar os problemas tende a agravá-los.
“Nós já estamos em uma situação difícil, que vai se agravar com os problemas sociais que a pandemia está colocando, de modo emergencial. Vai aumentar a população pobre, vão aumentar as diferenças sociais, a concentração de renda vai aumentar. A solução apontada para isso é a transformação da água em mercadoria, trazer para o setor de saneamento o motor da extração do lucro.”
O especialista ressalta que a troca de investimento público por investimento privado no setor de saneamento básico tem como consequência prática e imediata o aumento das tarifas para a população. Ele cita o exemplo dos Estados Unidos, onde as empresas privadas do setor praticam taxas 58% mais caras do que as empresas públicas.
Montenegro também destaca o exemplo de Paris que fez a tentativa de entregar os serviços de água e esgoto nas mãos do capital privado e teve que voltar atrás – hoje, devolvido à gestão do município, o modelo da capital francesa é referência mundial.
“Estamos aqui na contramão da tendência em vários aspectos, porque nós estamos vivendo uma situação de pandemia e agravamento da crise econômica e, ao mesmo tempo, apostando em saídas neoliberais. É triste ver essa situação que estamos vivendo, mas, infelizmente, não podemos esperar nada de um governo como o governo Bolsonaro”, afirma o engenheiro.
Ele aponta que é bem possível que a tendência de aumento nas tarifas chegue acompanhada do desabastecimento das populações pobres. “Essa é uma tendência que se pode esperar: o aumento do custo das tarifas e o aumento, portanto, da exclusão social, fazendo com que a população pobre vá buscar, como alternativa a uma água que não pode pagar, uma água de qualidade duvidosa ou uma água de nenhuma qualidade, que vai ter impacto direto sobre sua saúde”, ressalta o coordenador do Ondas.
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Dalila Alves Calisto, da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), diz que o modelo de serviços privados transfere ao consumidor a responsabilidade de pagar por obras que possam aumentar o acesso, pois o objetivo passa a ser só o lucro.
“As obras que possam vir a ser feitas nas cidades, quem remunera isso é a tarifa. Nós é que vamos pagar por alguma obra, algum investimento, na água e no saneamento. Vai sair da sua própria conta”, avisa.
Ela explica ainda que, atualmente, os serviços de saneamento geram prejuízos em cidades pequenas – onde há mais dificuldade acesso. Segundo ela, esses lugares vão seguir deixados de lado.
“Hoje, o serviço de saneamento é deficitário [gera prejuízo]. As empresas privadas não vão ter interesse de ir para cidades de 3 ou 4 mil habitantes. O que vai acontecer? A companhia estatal vai ficar só com as cidades pequenas, que têm uma arrecadação muito baixa. O acesso à água vai ficar inviável, porque na medida em que o filé, os melhores locais, ficam com as empresas, os locais pequenos, as cidades pequenas, onde está a população mais pobre, vão ficar descobertos.”
Edição: Camila Maciel