Edison Veiga De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil – Aconteceu em 26 de janeiro de 1592 em Salvador aquele que é, por muitos, considerado o mais pungente caso de homofobia da história do Brasil: condenada pela Inquisição por ter se relacionado com seis mulheres, a portuguesa Felipa de Sousa foi açoitada publicamente, teve seus bens confiscados, foi obrigada a comparecer a auto de fé descalça e com vela acesa na mão, incumbiu-se de penitências espirituais e ainda precisou pagar as custas processuais.
Por fim, acabou sentenciada com o “degredo para sempre para fora da capitania da Baía de Todos os Santos”, conforme documento de 24 folhas manuscritas frente e verso — guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal —, em cuja capa se lê “Nº 1267: Processo de Felipa de Sousa cristã velha presa no cárcere do Sancto Officio”.
Primeiro padre visitador do Tribunal do Santo Ofício no Brasil, o português Heitor Furtado de Mendonça atuou no Nordeste brasileiro por quatro anos, de 1591 a 1595, conta o pesquisador Paulo Rezzutti. De acordo com os registros, Mendonça recebeu denúncias de 29 mulheres pelo mesmo “crime”: os relacionamentos lésbicos. Sete acabaram julgadas pela Inquisição e punidas. Nenhuma de forma tão contundente quando Felipa de Sousa.
“O caso da Felipa de Sousa é icônico porque ele é o primeiro registro de relacionamentos lésbicos ocorridos no Brasil, já que acabou documentado por meio do Tribunal do Santo Ofício. É simbólico”, diz Rezzutti à BBC News Brasil.
O caso 1267
Em seu livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada , há um capítulo dedicado a esse episódio e outras ocorrências correlatas. “Na maior parte dos casos, tudo não passava de experimentações sexuais em que as mulheres jovens acabavam por extravasar a sua energia sexual antes do casamento, sem perigo de romper com a sua virgindade, com amigas e escravas. Mas algumas mulheres casadas, ou não, preferiam efetivamente o contato com outras iguais”, escreve.
Foi numa dessas que o padre inquisidor soube da vida sexual de Felipa. Mulher de um homem influente da capitania, Paula de Siqueira andava comentando sobre relações entre duas mulheres para suas amigas e isso teria despertado o interesse do visitador. Ela confessou: estava tendo um caso com Felipa de Sousa. “Felipa mandou para Paula diversas cartas de teor amoroso, trocaram beijos e afagos lascivos por um ano, até que um dia finalmente houve a consumação do ato sexual entre elas”, diz Rezzutti, em seu livro.
Conforme o processo da Inquisição, Felipa tinha 35 anos, era casada com um pedreiro e ganhava a vida como costureira. “Paula não foi a primeira amante que arrumara”, conta Rezzutti. “Na verdade, Felipa não perdia uma oportunidade de seduzir outras mulheres, chegando a confessar ao inquisidor ter tido seis parceiras em oito anos. Heitor Furtado de Mendonça julgou-a culpada e condenou-a a receber açoites públicos.”
Assim, a costureira portuguesa foi levada até a igreja da Sé, em Salvador, para ouvir sua sentença. No tal auto de fé, ela vestia um camisolão comprido de linho cru áspero. Segurava uma vela nas mãos. “Seus pecados foram enumerados publicamente na igreja lotada”, narra o pesquisador. “Terminado o ato, foi levada ao Pelourinho, onde foi presa e açoitada diante de todos.”
Depois de seu degredo da capitania, nunca mais se soube notícias dela.
No livro “Lesbianismo no Brasil” o sociólogo e antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia e fundador da organização não-governamental Grupo Gay da Bahia, dá mais detalhes sobre a sorte de Felipa. Ele ressalta que, fosse na Europa daquela época, o destino da mesma teria sido a fogueira — mas na colônia, longe dos olhares do Vaticano, as penas podiam ser aliviadas.
De acordo com suas pesquisas, Paula de Siqueira, a denunciante de Felipa de Sousa, afirmou ao inquisidor que vinha há dois anos recebendo “cartas de amor” dela, “com a qual trocara alguns abraços e beijos, chegando a ter ‘ajuntamento carnal uma com outra, por diante, ajuntando seus vasos naturais, tendo deleitação'”.
Paula ainda revelou ao padre que Felipa se portava “sempre do modo como se ela fora homem, pondo-se em cima”. E confessou ela ainda que sabia não ter sido a primeira das mulheres seduzidas pela costureira.
Mott detalha ainda outro dos depoimentos acusatórios, o feito por Maria Lourenço, uma mulher casada de 40 anos. “Disse que, estando na roça, a dita Felipa de Sousa ‘se fechou em um quarto e lhe começou a falar muitos requebros e amores e palavras lascivas, melhor ainda do que se fora um rufião com sua amante”, narra. “E lhe deu muitos abraços e beijos, e enfim a lançou sobre sua cama (…), se deitou sobre ela de bruços com as fraldas ambas arregaçadas e assim com os seus vasos dianteiros ajuntados se estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa, que de cima estava, gozou’.”
Diante do padre inquisidor, Felipa não titubeou. Assumiu seus relacionamentos. Ao ouvir do padre o nome de suas amantes, enfatizou que “todas essas comunicações lhe causavam grande amor e afeição carnal”, conforme Mott transcreve dos documentos oficiais.
O antropólogo pontua que, condenada, ela foi conduzida descalça pelas ruas de Salvador, açoitada “certamente com todos os moradores espiando pelas janelas e sacadas das moradias: que servisse de lição às outras nefandistas pecadoras”.
“Como penas espirituais”, descreve, “foi obrigada a jejuar a pão e água 15 sextas-feiras e nove sábados em honra da pureza da Virgem Maria, e a rezar 33 vezes um salmo.”
Mott escreve ainda que, além “de vergonha e humilhação pública pelo degredo, Felipa de Sousa teve de pagar as custas do processo”, em montante equivalente a três meses de trabalho de um operário braçal, conforme pesquisas do autor.
Mott foi o primeiro pesquisador a resgatar a história de Felipa de Sousa, nos arquivos da Torre do Tombo, ainda nos anos 1980. “Descobri Felipa no meio de 60 mil processos da Inquisição, arquivados em Lisboa”, conta ele, à BBC News Brasil. “O processo e a história é particularmente interessante para o resgate da história da comunidade LGBT mundial na medida que é muito precoce, muito antes de qualquer documentação sobre lésbicas na América e com tantos detalhes.”
Legado
Uma vez descoberta a história, Felipa de Sousa acabou se tornando um ícone do movimento LGBT — cujo Dia do Orgulho é celebrado em 28 de junho. E não apenas em nível brasileiro, mas sim de forma mundial.
Desde 1994, seu nome é emprestado a um prêmio mundial, concedido pela organização OutRight Action International, a Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas, em reconhecimento à coragem daqueles que lutam pelos direitos dos homossexuais, bissexuais e transgêneros em todo o mundo. Luiz Mott foi agraciado com o prêmio em 1995. Na última edição realizada, em 2019, a premiada foi a ativista trans Rikki Nathanson, do Zimbábue.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a porta-voz da organização, Daina Ruduša, afirma que Felipa de Sousa foi escolhida para nomear o prêmio em virtude de sua coragem. “Ela era uma mulher que foi perseguida e sofreu brutalidades depois de declarar, orgulhosamente, sua intimidade com uma mulher”, diz Ruduša.
No Rio de Janeiro, uma organização pelos direitos lésbicos, focado principalmente na questão das mulheres negras, se chama Grupo de Mulheres Felipa de Sousa. A entidade existe desde 2001. “Recebeu este nome por conta de Felipa ter sido o primeiro caso de lesbofobia de que se tem notícias no Brasil”, explica à BBC News Brasil a diretora da organização, Rosangela Castro.
Para o pesquisador Rezzutti, o caso de Felipa é um lembrete de que “o preconceito é uma questão muito antiga na história do Brasil”. “Felipa foi demonizada por suas práticas sexuais, pela Igreja Católica daquela época. Mas hoje muitas religiões ainda praticam essa demonização, tentando promover uma ‘cura’ para essas pessoas. Isso é uma bobagem. Isso é preconceito arraigado”, comenta ele.
Mott ressalta que “a história das lésbicas é muito menos documentada do que a dos sodomitas masculinos”. “Por isso, a vida dela é uma pedra preciosa para o resgate da história clandestina dos amores femininos”, pontua.
“Felipa foi modelo de mulher corajosa”, acrescenta ele. “Ela teve todo um histórico de afirmação de sua homossexualidade, namorando e conquistando outras mulheres, escrevendo bilhetes, etc. E fez isso na capital da colônia, então um pequeno povoado em que as fofocas, as intrigas e os fuxicos eram muito fortes. As pessoas tinham muito medo da desonra. E ser afamada de namorar outras mulheres era um problema seríssimo de convivência social.”
Mott reservou um verbete a Felipa de Sousa em seu Dicionário Biográfico dos Homossexuais da Bahia (Séculos XVI-XIX ). Nele, define a costureira como “a mais ousada, persistente e castigada de todas as lésbicas das colônias da América, razão pela qual seu nome foi atribuído ao principal prêmio internacional de direitos humanos dos homossexuais”.