Levantamento mostra o que pensam esses eleitores sobre a democracia e o seu presidente
Reginaldo Prandi, na FSP
Professor emérito da USP e um dos criadores do método de pesquisas do DatafolhaSÃO PAULO
Em manifestações à porta dos palácios que habita ou em meio a pequenas aglomerações públicas mais propícias ao contágio do novo coronavírus ou ainda em declarações a veículos de imprensa que o apoiam, é marca do presidente Jair Bolsonaro se fazer acompanhar de um grupo barulhento de seguidores irrestritos, que demonstra especial predileção em desafiar as instituições democráticas.
Bolsonaro fala pouco e mal, geralmente criando clima de desafio e ameaça. Ele repete que fala e governa em nome do povo e da Constituição. De que povo fala Bolsonaro?
Com dados da pesquisa Datafolha de 23 e 24 de junho, é possível descrever algumas das posições de um grupo formado por eleitores e eleitoras que votaram em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais, que avaliam seu governo como ótimo ou bom e que acreditam sempre no que ele diz, e confrontá-las com o que pensam os restantes 85% da população.
Esse grupo de adeptos fiéis, entusiastas fanáticos, adoradores em qualquer situação, representa 15% da população adulta. É o chamado grupo heavy do presidente, um núcleo duro de apoiadores irrestritos, bolsonaristas radicais, que vai às ruas por seu presidente, que Bolsonaro confunde com o povo brasileiro.
Esses 15%, ainda que minoritários, formam uma base barulhenta, destemida e sempre se mostrando.
Suas opiniões contrastam muito com as dos demais 85% da população, uma maioria que também abriga bolsonaristas de outro perfil, gente que votou no presidente, mas que nem sempre leva a sério o que ele diz, pensa e faz, e que não prima por avaliações necessariamente favoráveis ao governo Bolsonaro.
Que inclui também quem votou em Bolsonaro para não votar no oponente, inclusive os arrependidos, e igualmente os que não votaram em nenhum dos dois, além dos eleitores do adversário derrotado.
O grupo adorador do presidente é formado hoje por uma maioria feminina de 60%. Atrai mais os brancos do que os negros e não difere muito dos restantes 85% em termos de escolaridade.
A renda familiar dos bolsonaristas irrestritos é, entretanto, significativamente maior (no grupo bolsonarista radical, 40% das famílias têm renda maior que três salários mínimos mensais, contrastando com os 26% dos demais).
Eleitores do Nordeste são menos atraídos pela devoção a Bolsonaro que os do Sudeste. Não deixa de ser curioso o fato de que no grupo radical do presidente 36% solicitaram o auxílio emergencial devido à pandemia, taxa menor que os 42% do grupo dos demais.
Difícil saber o que cada cabeça entende por democracia.
Nominalmente, 75% do país prefere a democracia a outro regime, taxa que atingiu o ápice no mês corrente. Os bolsonaristas fanáticos ficam um pouco abaixo: 70% declaram preferir a democracia, enquanto os demais, com 76%, estão próximos ao número para o Brasil como um todo.
Mas quando a palavra democracia é contraposta à ditadura, ditadura militar, os dois grupos têm respostas diferentes. O entrevistador introduz a questão: “Sobre o regime militar que durou de 1964 a 1985, o presidente Jair Bolsonaro já disse que não houve ditadura no Brasil. Pelo que você sabe ou imagina, houve ou não uma ditadura no Brasil durante o regime militar?”.
Sim, houve uma ditadura, respondem 47% dos bolsonaristas heavy, contra 83% dos demais.
Os bolsonaristas ferrenhos primam pelo negacionismo também da ditadura militar, o que é coerente com seu desejo político, expresso reiteradamente nas ruas, de uma intervenção militar supostamente consonante com a Constituição e princípios republicanos, com Bolsonaro na presidência, evidentemente.
Parece alentador que 37% dos adoradores de Jair Bolsonaro concordem que a ditadura deixou mais realizações negativas que positivas, mas o grupo dos demais os coloca lá embaixo com seus 66%.
Não se pejam esses 15% de concordar com o fechamento do Congresso Nacional (36% se dizem favoráveis) e do Supremo Tribunal Federal (com o apoio de 44%). É muito, considerando que as porcentagens respectivas dadas pelo grupo dos demais brasileiros foram 14% e 16%.
Em outros pontos da pesquisa, o desprezo do grupo bolsonarista pelos princípios e práticas democráticos vai se constituindo num edifício autoritário descarado.
Estão abaixo do grupo majoritário no que concerne à concepção de que direitos humanos se aplicam a todos (53% contra 68%) e concordam que o governo brasileiro deva ter o direito de censurar jornais, TV e rádio (36% versus 15%).
Sem Congresso, sem STF, sem imprensa livre, sem direitos humanos para todos, é esse o país idealizado e buscado com muito barulho, propaganda, mentira e artifícios jurídicos, por parte dos adoradores do santo Messias Bolsonaro.
Se o país assim vai se desenhando, o que pensa a minoria fiel de seu herói? Deles, 80% o creditam como democrático (contra 22% dos demais).
De um homem que abandonou o país à própria sorte, desmantelando instituições duramente construídas, e corroendo a autoestima de seus cidadãos, 97% dos seguidores fiéis consideram-no preparado (contra 28% dos demais).
Adiante, 99% dizem que é competente, apesar de apenas 34% dos demais pensarem assim. Por fim, 99% da minoria fiel qualificam-no como sincero, mais que o dobro (40%) dado pelo grupo majoritário.
Diante de 60 mil mortos pela pandemia, e nem chegamos a dobrar a curva, 85% dos fanáticos concordam que o desempenho de Bolsonaro em relação à pandemia tem sido ótimo ou bom, enquanto o grupo majoritário restringe essa resposta a 18%. Mais que isso, é a visão de 93% dos adoradores que, nesse aspecto, o presidente mais ajuda que atrapalha, ficando em 24% essa avaliação por parte dos demais.
Com o país entregue à morte no atacado, a economia descarrilhada, ministérios transformados em máquinas do nada, o presidente e seus seguidores se autoenobrecem pela suposta ausência de corrupção no governo e entornos.
Mas há vultos a serem escondidos, envolvendo ministérios, tribunais superiores, polícia, redes sociais. Dois escândalos são emblemáticos: o sumiço de Fabrício Queiroz e o processo das “rachadinhas”, que se transformaram em explosivos nacionais.
Pois bem, 22% dos seguidores cegos de Bolsonaro admitem que o presidente sabia onde Queiroz estava, porcentagem que se apaga perto dos 71% daqueles que não fazem parte do grupo dos adoradores. E apenas 2% dos devotos acham que Bolsonaro não está envolvido no escândalo das “rachadinhas”, contrariando os outros, que formam 44%.
Essa minoria que adora Bolsonaro é o povo brasileiro que Bolsonaro vê.