Sem estudos que mostrem eficácia, ela é usada até como prevenção, mas pode desestimular isolamento
Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Um antiparasitário, usado há quatro décadas contra infestações por vermes e outros parasitas, está desaparecendo das prateleiras de farmácias brasileiras por causa da informação falsa de que a substância atua na prevenção da covid-19. A ivermectina é administrada também por veterinários, para combate de pulgas e carrapatos em animais de estimação.
Após a divulgação de um estudo da Monash Univeristy, na Austrália, em que doses altíssimas da substância tiveram sucesso em eliminar o novo coronavírus em laboratório, a procura pelo remédio chegou a níveis alarmantes no Brasil. Outros países da América Latina também registram uma corrida pelo medicamento e há até mesmo casos de contrabando na fronteira do Brasil com a Bolívia.
O problema é que a pesquisa demonstrou ação do remédio contra o corona in vitro, ou seja, não houve testes no corpo humano. A professora doutora, Wanda Pereira Almeida, livre docente em Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de Campinas (Unicamp), afirma que propagar o uso de um remédio apenas a partir de pesquisas in vitro desconsidera protocolos históricos e as consequências podem ser muito danosas.
“O efeito adverso da ivermectina é relativamente baixo, mas as pessoas não podem, por conta disso, achar que podem tomar. O efeito da ivermectina sobre o vírus foi observado in vitro, ou seja, utilizando células que foram infectadas pelo vírus. O segundo ponto é que uma pessoa não pode utilizar um medicamento que não tem indicação terapêutica confirmada porque o efeito não depende só do medicamento, mas também do organismo da pessoa.”
Um outro problema levantado pelo uso indiscriminado da ivermectina é a falsa sensação de proteção contra o vírus. Não há nenhum estudo que indique a substância como efetiva para prevenção da covid-19. Nem mesmo in vitro. Nenhum grupo de pesquisa do mundo se debruça sobre essa possibilidade.
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Wanda Pereira Almeida, que também faz parte do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas, alerta que a noção errada e baseada em notícias falsas pode levar às pessoas a reforçar um dos comportamentos que mais trazem risco de infecção pelo novo coronavírus: a proximidade social. É consenso na comunidade científica que o isolamento, junto com testagem em massa, é a forma mais efetiva de controle. Com a percepção de que um medicamento milagroso poderia proteger o corpo, a população pode abrir mão dessa prática.
“O mais absurdo é que algumas pessoas estão utilizando ivermectina como profilaxia, o que é pior ainda. Se tiver qualquer outro tipo de infestação ou infecção, a pessoa vai se tornar resistente. Então isso é uma besteira. Isso não se faz. Não se usa medicamento se não for por indicação terapêutica confirmada, comprovada.”
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Em outro estudo sobre a ivermectina, pesquisadores perceberam que, para chegar a quantidade usada nos testes em laboratório, uma pessoa teria que consumir até 100 vezes mais que a dose recomendada na bula. O medicamento age no sistema neurológico das pragas que combate. Simplificando, ela mata piolhos, vermes, pulgas e carrapatos a partir do cérebro.
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Não existe segurança de que doses muito altas usadas em humanos são seguras e não causam danos cerebrais. Em algumas raças de cães, por exemplo, ela não pode ser prescrita justamente por esse motivo. Além disso, um dos efeitos colaterais da ivermectina é a chamada rabdomiólis, uma síndrome que destrói os músculos e que causa dores no corpo. O sintoma pode ser confundido com um dos sinais da covid-19.
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Mas se não há nenhuma comprovação de que a ivermectina traz benefícios contra o coronavírus no corpo humano, por que até mesmo médicos, secretários de saúde e outras autoridades estão colocando a substância na lista de medicamentos para tratamento da covid?
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Há relatos falsos de que em países do continente africano a doença tem causado menos mortes por causa do antiparasitário. No entanto, as nações apontadas, como a Etiópia, são justamente as que se apressaram em fechar fronteiras antes mesmo da chegada do vírus. A população jovem e o fato de os governos dessas regiões terem experiência em lidar com epidemias também contam para o resultado.
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A reportagem do Brasil de Fato pesquisou os protocolos de tratamento da covid nesses locais e não encontrou sinais de que a ivermectina esteja em uso. No entanto, pela internet se espalham até mesmo notícias de que houve sucesso em dois dias de uso e áudios indicando que o medicamento estava sendo estudado contra o novo coronavírus em 2016, antes de a covid-19 sequer existir.
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A microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, afirma que os relatos de resultados em dois dias curiosamente batem com as 48 horas que os pesquisadores australianos notaram ação da substância in vitro. Ela ressalta que a leitura equivocada da pesquisa pode estar enviesando as ações e lembra que boa parte dos casos de covid é de pacientes com sintomas leves e que se recuperam. O resultado creditado à ivermectina, pode representar apenas o trabalho do próprio sistema imunológico do paciente.
“O paciente já ia se curar sozinho, o que aconteceu é que, além de se curar, ele ficou também sem piolho e sem lombriga. 90% dos casos se resolvem sozinhos. A pessoa vai ter vida normal, ficou doente e passou. Tem um monte de doenças que são assim, porque a gente tem um sistema imune que responde e que elimina aquele vírus. O problema são os casos que precisam de internação e que acabam evoluindo para um caso grave. Mesmo esses se recuperam com tratamento hospitalar de suporte: oxigênio quando precisa, ventilação mecânica, hidratação. Ou seja, você dá o suporte para dar o tempo do sistema imunológico responder. A gente não tem medicamento específico, mas isso não quer dizer que não tem tratamento.”
Natália afirma que banalizar o uso de uma substância sem comprovação é perigosíssimo para o pensamento científico.
“Cria um precedente para um pensamento mágico de como encarar a ciência, de como encarar testes de medicamentos. Se a gente abre esse precedente sem falar nada, daqui cinco anos vai ter uma cura milagrosa para o câncer e as pessoas vão deixar de fazer quimioterapia porque a gente não ensinou essas pessoas a entender como o medicamento funciona. A gente vai abrindo precedentes para que essas coisas entrem no Sistema Único de Saúde. Você vai puxando uma cordinha que é muito perigosa, que pode desviar as pessoas de tratamentos seguros e eficazes.”
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É importante ressaltar que não existem medicamento para tratar a covid-19. Todos os remédios usados são destinados ao controle de sintomas e a efetividade depende da fase da doença e das condições de cada paciente. Nesta semana, a Sociedade Brasileira de Infectologia(SBI) divulgou posicionamento sobre os medicamentos usados no Brasil para tratamento de infectados pelo coronavírus. O documento destaca que não há comprovação de eficácia da ivermectina em humanos e alerta “Só estudos clínicos permitirão definir seu benefício e segurança contra a covid-19”.
Edição: Rodrigo Durão Coelho