Sem esperança em mineração, índios da maior jazida do minério do mundo sonham com turismo e reclamam de estrada.
Fabiano MaisonnaveLalo de Almeida, na FSP
TERRA INDÍGENA BALAIO (AM)
No mapa, São Gabriel da Cachoeira (AM), a 2h20 de voo de Manaus, é um ponto verde na floresta amazônica. Para quem vive na região, trata-se do epicentro de um município de tamanho comparável à Inglaterra, onde habitam 23 povos indígenas. A algumas dezenas de quilômetros da cidade, está o maior depósito mundial de nióbio, o mineral que se tornou uma obsessão para o presidente Jair Bolsonaro e para a extrema direita brasileira.
São 2,9 bilhões de toneladas no subsolo, nunca explorados. Sobre a jazida, montanhas, formações rochosas de diversos formatos, orquídeas e lagoas de diferentes cores formam uma das regiões mais singulares da Amazônia, distante da infinita planície verde associada à região.
Antes do início da pandemia do novo coronavírus, a reportagem da Folha visitou o local, conhecido como Seis Lagos, guiada por moradores da Terra Indígena (TI) Balaio. As comunidades ali debatem se a região tem mais vocação para o turismo ou para a mineração, embora estejam mais preocupados com seu quase isolamento devido ao péssimo estado de conservação da BR-307, a rodovia de acesso.
“Uns têm os olhos pra trabalhar no minério, mas, se for ver bem, é muito complexo de trabalhar. Outros veem com potencial de trabalhar com etnoturismo e ecoturismo”, diz o agente de saúde indígena André Veloso, 32, que acompanhou a reportagem, sobre a opinião dos 350 moradores da TI, de diversos povos.
De novo, o mapa pode ser enganoso. A distância de São Gabriel até a comunidade Ya-Mirim, que dá acesso a Seis Lagos, conta apenas 85 km, via BR-307, cruzando a linha do Equador. Na prática, a rodovia federal é um corredor de lama, por onde só passam Toyotas Bandeirantes. A reportagem percorreu o trecho em 4h30, numa velocidade de 19km/h. O preço: R$ 2.000, ida e volta.
Após chegar à comunidade e passar a noite ali, foi preciso subir o igarapé com o mesmo nome por cerca de 2h. Depois, a parte mais exaustiva: 4h de caminhada montanha acima. No caminho, a altura das árvores diminui à medida que a altitude sobe e o terreno fica mais pedregoso. A primeira lagoa, de águas verdes, aparece no caminho, no fundo de um vale.
A reportagem acampou por uma noite à beira do lago do Dragão, cercado por rochas pontiagudas de cor terrosa e uma floresta de média estatura e arbustos, alguns com flores. A neblina é comum e, quando chega, cobre tudo num piscar de olhos.
A exploração do nióbio em Seis Lagos tem dois obstáculos quase intransponíveis. Pela legislação atual, Seis Lagos está fora do alcance da mineração. O local está incluído em três áreas protegidas e sobrepostas: além da TI Balaio, a área pertence ao Parque Nacional Serra da Neblina e à Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, esta do governo estadual do Amazonas. Nenhuma dessas categorias permite a atividade.
Outro impeditivo à exploração do nióbio amazônico está na demanda. As projeções são unânimes em afirmar que as reservas atuais em exploração têm capacidade para atender ao mercado mundial durante várias décadas.
O Brasil já é o principal produtor mundial, com 88% do total, segundo o Serviço Geológico dos EUA. A maior parte do nióbio vem da CBMM (Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração), sob controle da família sócia do Itaú Unibanco, localizada em Araxá (MG). A empresa estima ter reservas para produzir por pelo menos mais dois séculos.
“Não existe interesse de mineradoras no Morro de Seis Lagos”, afirma o geólogo Tadeu Veiga. Atualmente, professor voluntário da UnB (Universidade de Brasília), ele esteve na região em 1997, representando uma empresa de mineração. À época, a CPRM (Serviço Geológico do Brasil) tinha a intenção de licitar os direitos minerários, mas os planos nunca foram adiante.
Apesar da falta de mercado para um eventual aumento da produção, Bolsonaro costuma usar o nióbio como justifica para abrir a mineração em terras indígenas –a atividade está permitida pela Constituição, desde que regulamentada e após consulta prévia aos povos afetados.
Em 2016, quando se preparava para a campanha presidencial, Bolsonaro produziu um vídeo sobre o nióbio, gravado em Araxá. Com um pedaço de mineral nas mãos, disse: “Isto pode nos dar independência econômica.” Em outro trecho, menciona a demarcação de terras indígenas como uma barreira à exploração mineral.
A declaração mais recente foi em junho de 2019. Do Japão, onde participava a reunião do G20, Bolsonaro exibiu uma bijuteria com nióbio durante transmissão pelo Facebook. Disse que o cordão valia R$ 4.000, mais caro do que ouro.
A informação está errada. Um grama de ouro (R$ 293 no final de maio) é mais caro do que um quilo de ferronióbio (cerca de R$ 215), o produto mais caro da CBMM.
A falsa noção de que o nióbio é a panaceia para a economia brasileira tem origem no líder ultranacionalista Enéas Carneiro, cujas ideias influenciam o bolsonarismo. “Só o nióbio permitir-nos-ia ter uma moeda própria, lastreada nele”, disse, em uma entrevista em 2006, um ano antes de morrer.
Em fevereiro, Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto de lei sobre a abertura de terras indígenas para mineração. A proposta, criticada pela maior parte do movimento indígena, prevê que os povos afetados terão poder de veto em caso de garimpos, mas não de grandes projetos mineradores.
Ao justificar o projeto à época, Bolsonaro disse que “[o indígena] tem coração, tem sentimento, tem alma, tem necessidade e tem desejos e é tão brasileiro quanto nós”.
A promessa de legalização tem estimulado a invasão de garimpeiros, aliada à orientação de Bolsonaro para frear operações do Ibama. Em abril, dois coordenadores de fiscalização do órgão ambiental foram demitidos em represália ao fechamento de garimpos em terras indígenas localizadas na região do Médio Xingu, no Pará.
Impulsionados também com a alta de preço do ouro, os garimpos ilegais crescem nas TIs Raposa/Serra do Sol (RR), Yanomami (RR/AM) e Munduruku (PA), entre outras.
A TI Balaio não tem garimpo, mas é rota de garimpeiros rumo a explorações ilegais de ouro na TI Yanomami e na Venezuela. Para isso, contam com a vista grossa da barreira do Exército na estrada, que não os barra.
Quando a reportagem passou ali, os militares parecem apenas preocupados em identificar estrangeiros –depois de algumas perguntas para confirmar a nacionalidade, reportagem nem sequer precisou mostrar documentos. Na comunidade Ya-Mirim, ao menos três garimpeiros aguardavam transporte.
As condições precárias da rodovia são um martírio tanto para os indígenas da TI Balaio quanto para os ianomâmis da comunidade Maturacá, onde vivem 2.100 pessoas. Usando o igarapé Ya-Mirim, que atravessa a comunidade, eles ainda têm de viajar por cerca de um dia até chegar a casa, a bordo de canoas movidas a rabeta, o motor mais econômico.
Os indígenas costumam ir com frequência a São Gabriel da Cachoeira receber o Bolsa Família e outros benefícios, e não raro gastam todo o dinheiro do programa com transporte.
Por causa do preço alto, o frete da Toyota costuma ser dividido entre famílias. Muitos viajam na carroceira, incluindo criança e idosos. Problemas mecânicos e carros atolados são mais regra do que a exceção, e não é raro pernoitar na estrada até outro “toyoteiro” fazer o resgate.
“É muito triste, o povo aqui sofre muito”, afirma Tiago Fernandes Sampaio, 49, tucano, presidente da associação da TI Balaio. “Antes, eram 2h de viagem. Agora, não. Às vezes, sai na madrugada e chega de madrugada do dia seguinte, as peças da Toyota quebram no meio. Quando tem resgate de pessoas com doença grave, às vezes morre no meio da estrada.”
Além de moradores e garimpeiros, essa também é a rota para turistas dispostos a subir o Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, acessível via Maturacá. A montanha está dentro tanto do parque nacional com o mesmo nome quanto do território ianomâmi. Antes, precisam viajar até São Gabriel a partir de Manaus –até a suspensão devido à pandemia da Covid-19, havia três voos comerciais por semana.
O projeto de visitação, autorizado pela Funai e pelo ICMBio, seria uma fonte de renda para os ianomâmis de Maturacá e teria início em março, mas a pandemia da Covid-19 adiou a abertura indefinidamente.
A experiência dos ianomâmis recepcionando visitantes tem sido acompanhada com atenção na TI Balaio. “O mais viável no momento seria o turismo”, afirma o cacique Veloso, do povo desana, ao comparar com a mineração. “Tem vários lugares bonitos, a comunidade, cachoeira, igarapés pra tomar banho. Falta só organização e estrutura.”
“A junção do ecoturismo com a vivência étnica junto às populações indígenas, que receberão os visitantes, trará um tempero especial ao destino”, diz o empresário de turismo Kleber Bechara, ex-chefe da Rebio Seis Lagos.
Para o empresário, há potencial para o turismo de expedição. “É uma região remota, de difícil acesso. Com a infraestrutura adequada, pode se tornar um atrativo a mais para um nicho específico de público, que procura por essas experiências, com segurança.”
Via email, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que está realizando obras de recuperação e conservação por meio de duas operações, a um custo de R$ 19,2 milhões, para manter a trafegabilidade até a TI Balaio. A previsão para a conclusão das obras é novembro deste ano.
Sobre a política sobre a passagem de garimpeiros pela barreira, a resposta foi de que “não há nenhum tipo de bloqueio realizado pelo Exército Brasileiro na referida BR”. A reportagem mantém a informação de que existe, sim, uma barreira, havendo inclusive um portão.
Com ou sem exploração de nióbio, a mineração tem sido um dos temas mais discutidos entre os indígenas desde pelo menos a década de 1970, quando garimpeiros e mineradores invadiram a região.
Para expulsá-los, os indígenas se organizaram por meio da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). Fundada em 1987, pressionou pela demarcação das terras indígenas. Hoje, reúne 90 associações, que representam 700 comunidades e cerca de 50 mil pessoas, espalhados entre 23 povos.
“Invadiram o nosso território e estávamos sem segurança. Houve matança entre indígenas e os garimpeiros”, afirma o diretor da Foirn Adão Henrique, do povo baré. “Com a força do movimento e da Funai, houve a retirada”.
Contrária à proposta de Bolsonaro, a Foirn nunca foi procurada para discutir mineração pelo governo federal, segundo Henrique. O dirigente assegura que a entidade está aberta a conversar sobre o tema.
“Queremos desenvolvimento, mas uma discussão participativa. Tem de ser passo a passo, cumprir a legislação, tanto internacional quanto brasileira”, afirma. “O movimento vai continuar firme contra esse pensamento do governo atual, para não deixar que os povos indígenas do rio Negro sejam prejudicados ou iludidos com projetos que não darão certo.”
Politicamente distante da Foirn, o prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Clóvis Saldanha (PT), o Corubão, do povo tariano, se elegeu prometendo regularizar garimpeiros indígenas _atividade que ele mesmo já exerceu. Ao assumir, em 2018, criou o Departamento de Pequena Mineração Responsável, com o objetivo de fomentar a atividade sem grandes empresas.
Na assessoria do departamento, está Cisneia Menezes Basilio. Do povo desana, é a primeira geóloga indígena do país, após se formar pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Basilio afirma que a região tem uma grande diversidade geológica, mas ainda pouco estudada. Cita ocorrências de tantalita (usado na indústria tecnológica) e ouro, além de pedras como ametista, quartzo, turmalina e água-marinha. Assim como outros especialistas, ela não vê viabilidade na exploração de nióbio em Seis Lagos.
Na prefeitura, a geóloga diz que o objetivo é estimular a incipiente produção de biojoias por meio da capacitação de artesãos e levar informação sobre exploração mineral e legislação às comunidades.
“Quando as comunidades souberam da existência do departamento e que tinha uma geóloga, eles começaram a vir com as suas amostras para tentar identificar o que era, querendo saber de preço, achando que aquele cascalho de quartzo, de ametista ou aqueles farelinhos de tântalo poderiam mudar as suas vidas”, diz, em entrevista no seu escritório, onde guarda várias dessas amostras.
“O povo de São Gabriel não está carente de liberação ou de mineração, mas de informação. O que está tramitando no Congresso é mineração em grande escala, e muitas vezes o nosso povo lá da base entende que é algo que eles vão trabalhar, algo que irá beneficiá-los diretamente. A gente sabe que não é verdade”, afirma.
“A gente não os ilude, pelo contrário. O papel do departamento é esclarecer essa população sobre os seus direitos previstos na Constituição de 1988 e ver as possibilidades de atividades em que o indígena possa ser protagonista no usufruto dos seus recursos naturais.”