Sociedades médicas brasileiras alertam para riscos de publicações que incentivam uso de determinados medicamentos contra novo coronavírus.
No G1
“Bom dia! Estão recomendando tomar esse remédio. Há alguma contraindicação no meu caso?”, perguntou um paciente para o infectologista Alexandre Naime, por meio de um aplicativo de mensagens.
O paciente, sem qualquer sintoma, manifestou interesse em consumir o antiparasitário ivermectina para, segundo ele, evitar uma possível infecção pelo novo coronavírus. O homem disse que havia assistido a um vídeo no qual a médica Lucy Kerr compartilhou um “protocolo para a ivermectina contra a Covid-19”. Na publicação, ela orienta sobre o modo como os pacientes devem consumir o remédio para obter bons resultados.
Em resposta ao paciente, Naime informou que não há qualquer comprovação científica sobre o medicamento para combater a Covid-19. O médico também alertou que até o momento não há nenhum remédio comprovadamente eficaz para prevenir o novo coronavírus ou evitar que casos leves se agravem.
Naime classifica como “show de horrores” as constantes publicações sobre indicações de tratamentos para a Covid-19 nas redes sociais. Para ele, a situação dificulta ainda mais as ações de prevenção e combate ao novo coronavírus, que já infectou quase 2 milhões de pessoas e deixou mais de 70 mil mortos no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde.
Assim como Naime, outros médicos também relatam que vídeos e textos, que afirmam que alguns remédios podem curar ou prevenir a Covid-19, têm gerado dúvidas entre os pacientes sobre o tratamento para a doença causada pelo novo coronavírus.
Os médicos que compartilham tratamentos precoces ou profilaxia para a Covid-19 nas redes sociais defendem que há alguns estudos e casos de regiões que obtiveram bons resultados com determinada medicação. Em razão disso, afirmam que é importante que esses remédios sejam adotados no tratamento da doença e, por isso, compartilham relatos positivos sobre esses medicamentos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras entidades de saúde internacionais frisam que não há, ao menos por enquanto, comprovação científica de que uma medicação que possa prevenir a Covid-19 ou evitar, se usada no início dos sintomas, o agravamento do quadro de um paciente.
Em todo o mundo, há diversos estudos com possíveis medicamentos para combater a covid-19. No entanto, ainda não há tempo hábil para a conclusão de qualquer investigação aprofundada sobre o tema. Isso porque são necessários diversos níveis de testes para chegar a um possível medicamento que possa trazer benefícios aos pacientes.
Desta forma, a principal orientação de organizações médicas é que os tratamentos sejam feitos de forma individualizada, conforme as respostas de cada paciente.
Entidades médicas se preocupam com esses vídeos que defendem determinadas medicações contra a Covid-19, pois consideram que eles propagam tratamentos que não têm evidência científica.
Vídeos sobre a Covid-19
Os vídeos de médicos defendendo tratamentos sem comprovação costumam citar remédios como a cloroquina e a hidroxicloroquina, a ivermectina e o antibiótico azitromicina. Essas medicações costumam ser as mais citadas entre aqueles que defendem o suposto tratamento preventivo contra o novo coronavírus — mesmo sem respaldo científico.
Nos vídeos, médicos defendem situações como o uso desses remédios logo nos primeiros sintomas da doença, para, segundo eles, evitar que o quadro de saúde do paciente se agrave. Há ainda conteúdos que aconselham que essas medicações sejam usadas de modo profilático, para impedir que o paciente seja infectado pelo Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus.
No fim de junho, por exemplo, a live “Tratamento precoce salva vidas” reuniu médicos que afirmam que existe um tratamento que pode evitar que pacientes desenvolvam quadros graves da Covid-19. No vídeo, os profissionais defendem o uso de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, o antibiótico azitromicina e os antiparasitários nitazoxanida e ivermectina.
Os profissionais de saúde que participam da live afirmam que o paciente pode evitar que seu quadro de saúde se agrave se, logo nos primeiros sintomas, começar a tomar um dos remédios citados. Segundo eles, essa é a única forma de evitar mortes pela Covid-19 neste momento. Sem respaldo científico, dizem que tiveram bons resultados em seus locais de trabalho ao adotar protocolos que envolvem os medicamentos que defendem.
Na live, que durou mais de duas horas, os especialistas afirmam que não há nenhum viés político por trás das informações, apesar de adotarem discurso semelhante ao do presidente Jair Bolsonaro sobre o tratamento da Covid-19. Todo o vídeo é conduzido pelo jornalista Alexandre Garcia, grande apoiador do presidente. No Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) compartilhou a live, que atualmente tem mais de 1,8 milhão de visualizações no YouTube, e a classificou como “esclarecedora”.
Assim como os médicos, Bolsonaro também defende o uso de medicamentos mesmo sem comprovação científica. Meses atrás, o presidente exigiu que o Ministério da Saúde criasse um protocolo de tratamento contra a Covid-19 no qual recomenda o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina para todos os casos, dos mais leves aos mais graves. Ele também já se mostrou favorável ao uso de ivermectina em tratamento precoce contra o novo coronavírus.
Outro ponto abordado sobre o tratamento da Covid-19 na live “Tratamento precoce salva vidas” é o uso de medicamentos como forma de profilaxia, para impedir que uma pessoa seja infectada pelo vírus. No vídeo, os profissionais de saúde citam a ivermectina para essa finalidade. No entanto, não há qualquer comprovação científica de medicamento que possa impedir que alguém seja infectado pelo Sars-Cov-2.
Há, entre os inúmeros vídeos de médicos defendendo determinados tratamentos para a covid-19, publicações nas quais são dadas orientações sobre o modo como a pessoa deve consumir os remédios. Nos comentários desses vídeos, muitos discutem, sem qualquer orientação médica, como tomar as medicações para ter um melhor resultado, para prevenir ou tratar o Sars-Cov-2.
Uma das publicações mais famosas na internet sobre a ivermectina é da médica Lucy Kerr, especializada na área de ultrassonografia. Em um vídeo do YouTube, com mais de 1 milhão de visualizações, a médica defende o uso do medicamento e orienta como utilizá-lo de modo profilático ou nas fases iniciais da covid-19.
Lucy diz que os vídeos são fundamentais, pois, segundo ela, “a grande mídia não fala sobre a ivermectina”. A médica afirma que teve bons resultados ao tratar pacientes com o medicamento. “Há um monte de trabalho comprovando a eficácia da ivermectina. Na República Dominicana, por exemplo, foram tratadas 1,3 mil pessoas com a covid-19 e isso mostrou que há 99% de chances de cura com a ivermectina”, diz à BBC News Brasil.
Apesar das afirmações da médica, os estudos com a ivermectina estão em fase inicial em todo o mundo. Portanto, não é possível atestar a eficácia do medicamento, nem os efeitos colaterais que ele pode ter no tratamento do novo coronavírus. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não reconhece o medicamento, ou qualquer outro, como indicado para a Covid-19, por não haver, até o momento, estudos conclusivos sobre o tema.
Críticas a vídeos
Os vídeos compartilhados por profissionais de saúde que defendem tratamentos precoces ou profilaxia contra a covid-19 são duramente criticados por sociedades médicas.
No fim de junho, a Sociedade Brasileira e Pneumologia e Tisiologia (SBPT) lançou uma nota, logo após a live “Tratamento precoce salva vidas”. No comunicado, a entidade afirmou que há quantidade enorme de informações falsas “sobre o tratamento da covid-19 circulando nas mídias sociais, as quais, não raro, envolvem médicos que alegam ser pneumologistas”.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também se manifestou após a live. “Nos últimos dias, muito tem se divulgado nas redes sociais a respeito do uso de medicamentos para a covid-19. Várias destas divulgações que circulam nas mídias sociais são inadequadas, sem evidência científica e desinformam o público”, disse nota da entidade.
A SBI ressaltou ainda que o país vive “uma séria crise de saúde pública” e afirmou que o compartilhamento de informações de tratamento sem evidência científica coloca em risco a saúde da população brasileira. “A avaliação do uso de qualquer medicamento fora de sua indicação aprovada (off-label) deve ser uma decisão individual do médico, analisando caso a caso e compartilhando os possíveis benefícios e riscos com o paciente, porém é vedado a publicidade sobre tal conduta.”, afirmou a SBI.
Assim como a SBI e a SBPT, outras sociedades brasileiras da área da saúde — como a de bioética, a de cardiologia, a de imunologia e a de Medicina da família — também criticam a divulgação de conteúdos sem respaldo científico.
Membro da SBI, o infectologista Alexandre Naime, chefe de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu (SP), explica por que os médicos não devem tornar público tratamentos sem comprovação científica.
“O médico pode prescrever uma medicação que não esteja sólida na ciência, mas deve fazer isso no ato médico em particular, durante uma consulta. Isso se chama prescrição. Mas ele não pode fazer apologia ou indicar em redes sociais. Ao falar sobre isso em lives ou vídeos, eles estão divulgando abertamente tratamentos sem benefícios comprovados e incentivando as pessoas a recorrerem a esses remédios, que podem ter efeitos colaterais”, diz Naime à BBC News Brasil.
O temor de entidades médicas é que publicações como os vídeos que defendem tratamentos não comprovados cientificamente possam culminar em automedicação, induzir alguns médicos a receitarem determinado medicamento mesmo sem respaldo científico e trazer a falsa sensação de segurança àqueles que adotam determinadas medicações de modo profilático.
Em relação aos medicamentos mais citados nos vídeos dos médicos, a SBI ressalta que grandes estudos com a cloroquina e a hidroxicloroquina não trouxeram bons resultados no combate à covid-19 e ainda apontaram para riscos de saúde, principalmente para o coração. Muitos testes com o medicamento pelo mundo foram suspensos.
Sobre a azitromicina, a SBI ressalta que até o momento não foi comprovado o benefício do medicamento em pacientes com a Covid-19.
Em relação aos antiparasitários ivermectina e nitazoxanida (comercializada como o vermífugo Annita), estudos in vitro (em laboratório) apontaram que os medicamentos podem ter atividade contra o Sars-Cov-2. No entanto, essa é apenas a primeira fase das pesquisas Ainda são necessárias outras inúmeras avaliações até chegar aos testes em humanos. Por isso, entidades de saúde consideram que é altamente arriscado que pacientes consumam a medicação por conta própria, se baseando em vídeos da internet.
Já os estudos com o corticoide dexametasona apontaram que ele pode ser eficaz em casos graves, para pacientes que necessitam de oxigênio suplementar ou ventilação mecânica. Sobre casos leves de Covid-19, não há qualquer evidência científica de que a medicação possa ajudar.
Especialistas apontam que muitas pessoas podem sentir melhoras depois de usar determinada medicação, mas ainda não é possível ter certeza, ao menos por ora, se isso se deve ao remédio ou ao curso natural da Covid-19. Isso porque a taxa de letalidade da doença mostra que a imensa maioria dos infectados vai sobreviver — estudos mostram que somente 5% deles desenvolvem quadro grave, que pode levar à morte.
Posicionamento do CFM
O Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina (CFM), afirma que é proibido que médicos divulguem, fora do meio científico, “processo de tratamento ou descoberta cujo valor não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.
A reportagem procurou o CFM para saber o posicionamento do conselho sobre as diversas lives e outros vídeos compartilhados por médicos que usam as redes sociais para defender medicações sem comprovação científica. A entidade não respondeu especificamente sobre o tema, mas encaminhou um texto com perguntas e respostas sobre a conduta dos profissionais de saúde nas redes.
O texto encaminhado pelo CFM recomenda que os médicos usem, nas redes sociais, informações validadas cientificamente, no intuito de “promover a adoção de comportamentos e hábitos saudáveis”. Ainda segundo o texto do CFM, “não é recomendável aos médicos e a qualquer outra pessoa distribuir informações sem que as fontes sejam confiáveis”.
“Os médicos devem agir de acordo com o que é preconizado pelo Código de Ética Médica, ou seja, sem utilizar de artifícios que estimulam o sensacionalismo ou o pânico, por exemplo. Por isso, devem buscar abrigo na ciência, em métodos, técnicas e procedimentos que são reconhecimentos pela comunidade médica e científica”, diz o texto do conselho.
Segundo o CFM, se uma pessoa identificar que um médico infringiu o Código de Ética, pode denunciar ao Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado em que o profissional trabalha. “Com base nisso, o CRM que vai apurar o assunto e tomar as medidas cabíveis”, diz.
De acordo com a entidade, a denúncia faz com que o CRM abra uma sindicância para apurar os fatos. Caso as irregularidades sejam confirmadas, é aberto um processo ético-profissional, “no qual são asseguradas às partes direito à ampla de defesa e contraditório”.
“Em caso de condenação, o acusado pode receber penalidades que vão da advertência confidencial até a cassação do seu CRM. Esse processo corre no âmbito do CRM. Após a decisão, caso esteja insatisfeito com o resultado, qualquer uma dos envolvidos – denunciado ou denunciante – pode recorrer ao CFM, que funciona em grau de recurso”, explica trecho do texto do Conselho Federal de Medicina.
O CFM não informou se há apuração em algum estado referente a possível denúncia de médicos que compartilham tratamentos para a Covid-19 sem respaldo científico.
Nesta semana, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Estado em que atuam muitos dos médicos que divulgam vídeos sobre remédios para a covid-19, emitiu um alerta sobre o tema. A entidade afirmou que a divulgação e “prescrição de medicamentos/protocolos informais e sem comprovação científica relevante, no contexto da covid-19, por meio de canais públicos, como redes sociais e imprensa, pode configurar infração ao Código de Ética Médica”.
“Pela falta de evidências, o profissional não pode divulgar o tratamento com tais medicamentos como eficaz”, diz o comunicado do Cremesp.
Nas redes, os médicos que compartilham vídeos nos quais defendem tratamentos contra a covid-19 negam que estejam cometendo qualquer irregularidade. Isso porque alegam que falar sobre o assunto é fundamental para informar a população sobre o tema, pois, segundo eles, os benefícios das medicações que defendem comprovam que há cura para a covid-19.
O impacto dos vídeos e publicações na rede
Médicos ouvidos pela reportagem relatam que esses vídeos de profissionais da saúde que defendem tratamentos sem comprovação científica têm mudado a rotina em consultórios. Isso porque eles consideram que essas publicações influenciam na opinião do paciente sobre os tratamentos contra a covid-19.
De acordo com uma pesquisa online da Associação Paulista de Medicina (APM), 48,9% dos médicos que estão na linha de frente contra a covid-19 afirmam que têm sido pressionados por pacientes ou familiares a prescreverem tratamentos sem comprovação científica.
Ainda segundo o levantamento, 69,2% dos médicos disseram que as fake news, informações sensacionalistas ou sem comprovação técnica interferem negativamente no combate ao novo coronavírus, pois podem incentivar as pessoas a minimizar ou negar o vírus, deixar de seguir recomendações de isolamento social ou não procurar serviços de saúde.
A pesquisa da APM, divulgada na semana passada, foi feita por meio de um questionário respondido por 1.984 profissionais que estão na linha de frente contra a covid-19 em todo o país.
Apesar das críticas de sociedades médicas, as lives e os outros vídeos que divulgam tratamentos para a Covid-19 sem comprovação científica continuam se multiplicando pela internet.
A reportagem entrou em contato com representantes das redes sociais, que afirmam que estão atentos aos conteúdos propagados em meio à pandemia do novo coronavírus.
Não há um posicionamento oficial das redes sociais sobre os vídeos dos médicos que defendem tratamentos para a covid-19 com medicamentos que não têm, ao menos por enquanto, comprovação científica. Enquanto outros tipos de publicações recebem alertas nas redes ou até são apagadas por propagar notícias falsas ou duvidosas sobre o novo coronavírus, os compartilhamentos sobre tratamentos sem comprovações científicas se propagam sem qualquer interferência.