O respeito pelos mortos e o valor da responsabilidade em dois livros sobre o apocalipse ocorrido no Japão há 75 anos
FLÁVIO RICARDO VASSOLER, Revista Piauí
Na manhã do dia 6 de agosto de 1945, o bombardeiro B-29, pilotado pelo oficial Paul Tibbets Jr., da Força Aérea dos Estados Unidos, aproximou-se de Hiroshima, cidade com cerca de 350 mil habitantes ao Sul do Japão. Às 8h15 (horário local), o piloto aprumou a mira do avião e lançou sobre a cidade a bomba atômica chamada Little Boy (Menininho), a primeira da história a ser utilizada numa guerra. Pesando 4,4 toneladas, com 63 kg de urânio enriquecido acoplado em seu focinho e um potencial explosivo equivalente a 15 mil toneladas de TNT, o tubarão nuclear vaporizou, num piscar de olhos, 80 mil pessoas (calcula-se que o total de mortos chegaria a cerca de 120 mil).
A despeito do sofrimento excruciante dos habitantes de Hiroshima, o imperador Hirohito rechaçou os termos da capitulação incondicional impostos pelos Estados Unidos. Com isso, em 9 de agosto, às 11h02, o avião B-29, pilotado por Charles Sweeney, lançou sobre Nagasaki, cidade com cerca de 260 mil habitantes, uma bomba atômica de 4,8 toneladas, batizada de Fat Man (Gordo). A arma de plutônio-239 tinha potencial explosivo – equivalente a 21 mil toneladas de TNT – superior à bomba anterior, mas sua eficácia foi menor: os morros de Nagasaki formaram providenciais barricadas contra a avalanche de calor e a torrente de ventos causadas pela explosão. Ainda assim, 40 mil pessoas viraram pó cinza e púrpura (o saldo total de mortes é de aproximadamente 80 mil).
A intensidade da hecatombe e o sofrimento das vítimas na primeira cidade foram descritos numa das mais extraordinárias reportagens já feitas, Hiroshima, do jornalista norte-americano John Hersey, que ocupou de maneira inédita todas as páginas editoriais da revista The New Yorker em 31 de agosto de 1946. Dois meses depois, a reportagem foi lançada em livro. Os Estados Unidos ainda comemoravam a vitória na Segunda Guerra, mas Hersey não poupou palavras para conduzir os leitores norte-americanos ao epicentro da agonia, por meio das histórias de seis sobreviventes.
Menos citadas, duas outras obras não ficcionais destacam-se na volumosa bibliografia sobre Hiroshima. Nos 75 anos da tragédia japonesa, elas chamam a atenção por suas reflexões sobre o respeito aos mortos e a responsabilidade moral que irradiam até a atualidade: Diário de Hiroshima, escrito entre o dia da explosão da bomba e 30 de setembro pelo médico e sobrevivente Michihiko Hachiya (que só viria a morrer em 1980, aos 77 anos), e Off Limits für das Gewissen (Fora dos limites da consciência, 1961),[1] livro que compila a correspondência do filósofo alemão (nascido na Polônia) Günther Anders com o oficial norte-americano Claude Robert Eatherly, piloto do avião de reconhecimento climático para o ataque a Hiroshima.
O doutor Michihiko Hachiya tinha 42 anos quando a bomba atômica foi lançada sobre Hiroshima. Era diretor e médico de um hospital que atendia, principalmente, os funcionários dos correios, rádio e telégrafo. Ele conta que, no momento da explosão, estava à janela de sua casa, contemplando o “agradável contraste” entre as sombras do seu jardim e o brilho das folhagens. De repente, “um brilho intenso” o trouxe “de volta à realidade”. O teto de sua casa começou a oscilar, e ele tentou fugir, mas uma chuva de vigas e escombros travou o seu caminho. Finalmente, o médico alcançou o jardim. Foi quando percebeu que estava completamente nu. “Ora, mas o que aconteceu com meu pijama?”, perguntou-se.
A roupa do médico havia sido arrancada pelo vendaval de 1,2 mil km/h provocado pela explosão. O lado direito de seu corpo estava coberto de pequenos cortes e feridas que expeliam sangue. Tomado pela adrenalina da sobrevivência, Hachiya retirou, com temerária naturalidade, uma grande lasca de vidro incrustada em seu pescoço, como se se tratasse de um pelo encravado. Foi então que ele se pôs a gritar por sua mulher: “Yaeko-san! Yaeko-san!” Ela apareceu entre as ruínas da casa, ensanguentada e com as roupas em farrapos. Juntos, os dois seguiram para o Hospital das Comunicações de Hiroshima, onde Hachiya trabalhava. “Eu estava nu, mas não sentia vergonha, e sim constrangimento, ao notar minha falta de pudor”, ele ressalta.
O casal transitou por ruas repletas de cadáveres e escombros – mais de 67% dos edifícios de Hiroshima foram destruídos ou severamente danificados num átimo. Rostos simplesmente se desfaziam; não poucas vezes, apenas alguns dentes brancos e sobressalentes logravam denunciar que ali houvera uma face. As pessoas moviam-se sem fazer qualquer ruído, como se tudo se passasse num filme mudo. Súbito, Hachiya rompeu o silêncio para pedir a alguém algumas peças de roupa. “Por que estavam todos tão calados?”, se pergunta Hachiya. Como testemunhas do absurdo, os sobreviventes talvez pressentissem que suas palavras já não pertenciam àquele mundo pós-apocaliptíco.
Ao chegar ao hospital, Hachiya logo foi posto em uma maca. Quartos e corredores estavam abarrotados e convulsionados. Assim que pôde se recuperar, o médico juntou-se à sua equipe para cuidar das centenas de feridos. Em 15 de agosto de 1945, Hirohito anunciou a capitulação do Japão pelo rádio. Era a primeira vez que os súditos ouviam a voz do imperador, e Hachiya revela que uma mescla de espanto, descrença e revolta tomou conta de médicos e pacientes. Ao estupor com o ataque, seguiu-se o sentimento de humilhação com a derrota. Mas a preocupação de Hachiya permaneceu voltada para a tentativa de aplacar a dor, como se a medicina fosse a última vereda a lhe oferecer uma trégua (e uma esperança) entre as ruínas.
Diário de Hiroshima é talvez o testemunho mais impressionante de um sobrevivente da explosão atômica. É também um notável documento sobre os esforços de um grupo de médicos para salvar pessoas e tentar entender, metodicamente, os efeitos do que ocorrera. As consequências devastadoras da bomba sobre o ser humano eram até então desconhecidas – mesmo pelos cientistas norte-americanos que a criaram –, com sua gama de dores e doenças totalmente novas. “Após a bomba, pensamos que, com o tratamento correto, o queimado e ferido logo se recuperaria”, escreve o médico, em 19 de agosto. “Mas agora não havia dúvida de que não seria assim. Aqueles que se recuperavam sem intercorrências acabavam apresentando outros sintomas que levavam ao resultado fatal. O fato de tantos pacientes morrerem sem que pudéssemos explicar a causa dessas mortes era desesperador.”
A contumácia da morte, entretanto, não fez com que Hachiya colocasse de lado o respeito pelos mortos: era como se o luto reverencial fosse seu último liame entre a tradição vaporizada e o presente em mutação. O escritor búlgaro Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura em 1981, chama a atenção para isso no prólogo da edição espanhola de Diário de Hiroshima: “Não temos a impressão de que, para ele, os mortos se amalgamam em uma massa na qual já nenhum indivíduo conta. […] Cada pessoa tem importância ante seus olhos, cada pessoa tal como realmente era e como ele a conserva em sua memória.”
Em que pese a excepcionalidade da tragédia de Hiroshima e Nagasaki, trata-se de uma lição perene, e tanto mais relevante quando o desdém pelos mortos e sua memória se faz política de governo, como aqui e agora.
O primeiro teste nuclear dos Estados Unidos foi realizado num deserto do estado do Novo México apenas três semanas antes do apocalipse no Japão. Dias depois do experimento, o físico norte-americano Julius Robert Oppenheimer, diretor do programa de armas atômicas, o Projeto Manhattan, declarou sobre o momento em que ele e sua equipe depararam com a colossal explosão: “Nós sabíamos que o mundo jamais seria o mesmo. […] Eu me recordei de um verso da escritura hindu, o Bhagavad-Gītā, em que Vishnu está tentando persuadir o príncipe a cumprir o seu dever e, para impressioná-lo, assume sua forma com múltiplos braços e diz: ‘Agora eu sou a Morte, a destruidora de mundos.’ Acho que todos pensamos nisso, de uma maneira ou de outra.”
Em seguida ao ataque de Hiroshima e Nagasaki, Oppenheimer encontrou-se com o presidente Harry Truman, que ordenara as explosões. Na reunião, disse, sem meias palavras: “Eu tenho sangue nas mãos.” Mas o presidente não se deixou abalar pelo remorso do físico e, com a frieza de quem pisa no pescoço da própria consciência com coturnos, ordenou à secretária que jamais voltasse a agendar um encontro com Oppenheimer. Em uma entrevista dada em 2018, o neto do presidente, Clifton Truman Daniel, justificou assim a atitude de Truman: “Provavelmente, do ponto de vista de meu avô, eles estavam travando uma guerra e, em uma guerra, você usa o que precisa para vencê-la.”
O piloto Paul Tibbets Jr., então general de brigada, recorreu a um argumento correlato e mais explícito, em uma entrevista concedida em 1989: “Devo dizer que nós não podemos olhar para os aspectos sombrios do que fizemos, porque não há moralidade na guerra, então eu não fico remoendo as questões morais.” Tibbets batizou com o nome de sua mãe, Enola Gay, o avião B-29 que assassinou numerosas mães e seus filhos, além de condenar incontáveis mulheres à esterilidade. Questionado se tinha arrependimentos, o piloto afirmou: “Garanto-lhe que nunca perdi uma noite de sono com isso.”
Também Truman declarou não ter remorsos sobre o que ocorreu. O filósofo Günther Anders conta, em Off Limits für das Gewissen, que o presidente, durante a festa de seu 75º aniversário, em 1959, citou um único arrependimento: não ter se casado antes dos 30 anos. A anedota aparece na primeira carta que Anders escreveu, em 3 de junho de 1959, a Claude Robert Eatherly, o piloto do avião de reconhecimento climático. E reaparece na que o filósofo enviou ao presidente John Kennedy, em 13 de janeiro de 1961, acrescida do seguinte comentário: “Não passou pela cabeça dele [Truman] falar de Hiroshima; possivelmente esse evento era grande demais para entrar numa mente tão pequena.”
Com Eatherly foi diferente. Hiroshima nunca mais saiu da mente do piloto. Aclamado como herói quando de seu retorno aos Estados Unidos, o major de 26 anos até tentou voltar à vida cotidiana. Fez faculdade, saiu das Forças Armadas e passou a trabalhar como representante comercial. Depois, começou a cometer delitos, como pequenos roubos e estelionatos, para que a Justiça, enfim, o livrasse de sua inocência dolosa.
Cinco anos depois dos ataques, Truman anunciou o desenvolvimento de uma arma atômica ainda mais apocalíptica, a bomba de hidrogênio. Eatherly, então, tentou se matar, tomando um sem-número de pílulas para dormir. Quando o herói culpado resolveu levar a público a dor que nem de longe era apenas sua, uma junta psiquiátrica o internou num hospital militar para veteranos traumatizados.
Foi ali que recebeu a primeira mensagem de Anders, que vivia na Áustria. A troca de cartas duraria pouco mais de dois anos, até o ponto de se tornarem amigos, apesar da diferença de dezesseis anos de idade entre eles e das suas histórias de vida tão díspares.
Günther Anders era primo distante de Walter Benjamin e havia sido aluno de Edmund Husserl, seu orientador de doutorado, e Martin Heidegger. Tentou a carreira universitária, sem sucesso, e passou a se dedicar ao jornalismo. Em 1929, casou-se com Hannah Arendt. O casamento durou até 1937, quando se divorciaram por procuração. No ano anterior, Anders havia imigrado para os Estados Unidos; Arendt faria o mesmo em 1941.
O filósofo só retornou à Europa em 1950, onde deu continuidade às suas reflexões sobre o desenvolvimento tecnológico e suas implicações para a humanidade, como no livro Die Antiquiertheit des Menschen (A obsolescência do ser humano, em dois volumes, publicados em 1956 e 1980). Como corolário de suas ideias, Anders se voltou nas últimas décadas de sua vida (ele morreu em 1992, com 90 anos) para os impasses da responsabilidade ética dos indivíduos na era atômica, quando o sonho de onipotência do homem materializado pela técnica abria a possibilidade de extinção da própria vida humana.
O remorso do ex-piloto chamou a atenção do filósofo, já que Eatherly não apenas se encontrava entre os primeiros a ver e a vivenciar o horror nuclear, mas também se reconhecia como parte de um grupo minoritário de pessoas que aceitavam sua responsabilidade na hecatombe. Para Anders, a dor moral provocada pela empatia às vítimas humanizava Eatherly e se contrapunha à alienação dos “culpados” na cadeia de destruição, que, por ser constituída do trabalho fragmentado de uns e outros, isentava cada indivíduo de responsabilidade final na destruição maciça. “Só os anormais não se comportam de forma anormal em situações que não são normais”, escreveu, em 18 de outubro de 1959, o filósofo, que fez o que pôde para tirar o piloto do hospital psiquiátrico.
Eatherly entende bem o seu papel. Em 12 de junho de 1959, ele escreve a Anders: “No passado, foi possível aos homens levar a vida sem que tivessem que postular tantas questões sobre a forma como eles estavam acostumados a pensar e a agir – mas agora está razoavelmente claro que em nossa época já não é assim. A meu ver, estamos nos aproximando rapidamente de uma situação em que nos sentiremos compelidos a reexaminar nossa disposição em delegar a responsabilidade por nossos pensamentos e ações a algumas instituições sociais, tais como partidos políticos, sindicatos, igrejas e o Estado.”
A responsabilidade moral de Claude Eatherly e a dignidade de Michihiko Hachiya em face da memória de vivos e mortos são, ainda hoje, poderosas barricadas contra a banalização da dor e do assassínio.
[1] A correspondência entre Anders e Eatherly foi publicada no mesmo ano na Inglaterra e em 1962 nos Estados Unidos, com o título Burning Conscience (Consciência em chamas), edição que serviu de referência a este texto. O diário de Hachiya foi lançado em livro em 1955 nos Estados Unidos, com o título Hiroshima Diary: The Journal of a Japanese Physician. No Brasil, a EdiPUCRS publicou uma tradução em 2009, que se encontra esgotada. Aqui, nos valemos da tradução em espanhol lançada em 2006 pelo Circulo de Lectores, de Barcelona.
FLÁVIO RICARDO VASSOLER
É escritor, doutor em letras pela USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University