Carta Maior – Mais um grande passo foi dado para efetivar o objetivo de silenciar a polifonia de vozes nas universidades públicas e de criar um ambiente de medo, insegurança e de desmoronamento de todo arcabouço da autonomia universitária que, afinal, objetiva a assegurar o que Jürgen Habermas denominou, apropriadamente, um ambiente de liberdade ilimitada. Inexiste liberdade de cátedra sem autonomia universitária.
Conforme antecipado pelo deputado bolsonarista Bibo Nunes (PSL-RS), a nomeação do novo reitor da UFRGS, o terceiro colocado da lista tríplice em detrimento do inequívoco escolhido pela comunidade, o Prof. Rui Oppermann, reafirma a existência de uma política governamental deliberada para introduzir, no sistema das instituições federais, dirigentes que possam estar afinados com o projeto governamental para a área. No colégio eleitoral da UFRGS Rui Oppermann obteve 45 votos, o nomeado, ínfimos 3 votos[1]. O caso da UFRGS é muito emblemático e relevante. A exemplo dos demais reitores e reitoras preteridos, os escolhidos eram candidatos reconhecidamente qualificados, com vivo engajamento na vida acadêmica e no espaço público em prol dos valores democráticos, dos direitos humanos, do uso autônomo e crítico da razão. E o mais importante: foram os candidatos que suas comunidades escolheram como os melhores representantes dos anseios por ela compartilhados.
A nomeação do novo dirigente da UFRGS era aguardada não apenas pelo fato de ser uma universidade de grande porte, de elevado reconhecimento acadêmico. O que efetivamente estava atraindo a atenção de toda comunidade universitária brasileira, e não apenas do país, seria a atuação do novo ministro da Educação: se, de fato, seria um ministro “técnico”, voltado para a educação e os valores acadêmicos ou se, alternativamente, seria um soldado da “guerra cultural”[2]. A nomeação do novo reitor foi o début do novo ministro. Se alguém tinha dúvidas é certo que estas foram dissipadas.
A UFRGS não é uma situação isolada[3]. Evidencia um movimento com metas, focos, propósitos. A MP 914/2019[4] e a MP 979/2020 objetivaram ampliar a influência do governo Federal no governo das instituições: o fato de terem encontrado resistência no Congresso não eclipsa o intento político. Os fatos são claros. Desde que Bolsonaro assumiu a presidência da República, em 2019, recebeu 38 listas tríplices. Destas, apenas 26 resultaram em nomeação de um novo dirigente, sendo que dez (38,5%) não foram os indicados por suas comunidades e um sequer estava na lista. Preocupa o fato de que 12 aguardam decisão do presidente e, ainda, que parte relevante dos pro-tempore, a rigor é de mal disfarçados reitores nomeados à revelia do princípio da gestão democrática. Se acrescentarmos o processo de nomeação dos reitores dos IFET que possuem legislação específica estabelecendo que a eleição é direta e o vencedor deve ser nomeado (Lei 11.892/2008[5]), o quadro torna-se ainda mais difícil, como é possível depreender pela nomeação dos dirigentes do CEFET-RJ, IFSC e IFRN.
Nomeação de reitores/as das universidades federais 2019-2020 (17-09)
Fonte[6]
É necessário ressaltar que entre os nomeados que não venceram a lista tríplice, dois dirigentes compunham a chapa vencedora (UFES, UFRB); entretanto, a grande maioria é de candidatos que perderam a consulta e, sob o ponto de vista formal, a eleição nos colegiados superiores. Tratam-se, por conseguinte, de dirigentes desprovidos de real legitimidade junto às suas comunidades.
A autocracia é um projeto de longa duração e de perigosas ambições, como a história permite constatar. Em artigo anterior sobre o tema[7] destaquei que o ambiente de “guerra cultural” confere outro sentido às ações governamentais contra a autonomia universitária. De fato, instalou apreensão, temor e “pragmatismo” político nos processos sucessórios das Federais. No lugar da reflexão sobre os desafios acadêmicos, institucionais, organizacionais e sobre a função social e a pertinência da instituição com os problemas dos povos, seria desastroso a prevalência de cálculos sobre que tipo de candidato poderia ser palatável ideologicamente ao bolsonarismo. O problema é que, na doutrina da “guerra cultural”, todos os candidatos que não sejam militantes ou simpatizantes do ideário da extrema direita são, a priori, inimigos a serem batidos. Parte da comunidade acadêmica já se deu conta do significado de estar no teatro de operações da referida estratégia da extrema direita.
O problema da ruptura do princípio da legitimidade é complexo. Uma óbvia dificuldade é que parcialmente as nomeações responderam aos preceitos da Lei 9.192/1995. É igualmente evidente que essa lei é uma herança nefasta da ditadura e que, no período dos governos democráticos deveria ter sido revogada, em harmonia com o teor da Constituição Federal. A exortação sábia de Florestan Fernandes que seria preciso remover a herança da ditadura nos domínios da educação e da ciência e tecnologia infelizmente não foi levada adiante, nem por seu antigo assistente na Cátedra de Sociologia, nem no governo de seu partido. Está evidente que as escolhas atuais nada têm a ver com a qualificação dos dirigentes ao cargo: é uma decisão politicamente motivada e esse é o problema de fundo.
Muitos dos que não foram escolhidos como legítimos por suas comunidades buscaram apoio justamente em representantes e prepostos do bolsonarismo. Mesmo candidatos que foram eleitos por suas comunidades beijaram a mão do bolsonarismo, precedentes gravíssimos, pois naturalizam que cabe ao governo escolher o candidato conveniente. Desse modo, a condição para ser reitor/a deixa de ser o debate público e esclarecido de suas comunidades. Qual é a fonte da suposta legitimidade dos nomeados que foram derrotados nos processos de consulta? Essencialmente, ser ungido por uma autoridade vinculada ao governo. O corolário provável desse movimento é que existe uma relação de subordinação do reitor/a em relação aos anseios governamentais, justo o que o estatuto da autonomia tenta impedir.
Tal como na ditadura, a guerra cultural é também uma oportunidade para os novos mandarins se livrarem de seus desafetos, em geral docentes que possuem carreira acadêmica reconhecida e que, na percepção dos dirigentes ilegítimos, eclipsam suas próprias carreiras e vida acadêmica. O ressentimento é um elemento central da guerra cultural.
Desde logo, é preciso afastar a crença de que o confronto ideológico está circunscrito ao terreno do imaginário. Como nos mostra Gramsci – aliás, um dos autores mais atacados pela referida guerra cultural – a ideologia tem materialidade. Vamos pensar na seguinte sequência de situações:
O governo interrompe concursos no RJU, abrindo caminho para os contratos sem estabilidade.
Encaminha uma reforma administrativa que suprime a estabilidade dos servidores.
“Uma das metas para tirarmos o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino” (Jair Bolsonaro)
A CGU[8] difunde nota técnica que permite punição ao servidor que “realizar manifestações críticas ao órgão ao qual pertença” em suas redes sociais.
O Ministério da Justiça elabora listas de professores antifascistas, a serem observados e monitorados de perto.
Nomeia reitores que não foram vitoriosos em suas comunidades e que estabelecem laços de lealdade com determinado projeto de governo.
Não é necessário muito esforço para compor o quadro de autocracia que se aprofunda no país. Os Processos Administrativos Disciplinares – PAD (sem prévia sindicância) para apurar ‘prática de insubordinação’ e ‘descumprimento de deveres funcionais’, passíveis de demissão de docentes da UFC[9], motivados pelo fato de que os docentes efetivos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Professores Doutores Beatriz Rego Xavier, Cynara Monteiro Mariano (Vice-Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito), Felipe Braga Albuquerque, Gustavo César Machado Cabral (Coordenador do Programa de Pós graduação em Direito) e Newton de Menezes Albuquerque expressaram divergência sobre a política institucional, por seu pertencimento ao campo crítico do Direito e pelo fato de que discordaram de ato administrativo de sua unidade em desacordo com uma Resolução do Consuni, são um perigoso precedente para a liberdade de cátedra. O atual reitor da instituição, escolhido pelo Presidente da República, obteve menos de 5% dos votos da comunidade da UFC. Não é exagero identificar nesse processo o prenúncio de situações que nos remetem ao AI-5/1968, medida desejada e festejada pelo Ministro Guedes. A liberdade de cátedra pode estar sendo concebida como uma ameaça à segurança nacional.
A defesa da autonomia universitária e da liberdade de cátedra exigem ações coordenadas de todas as universidades públicas do país. Em conformidade com o posicionamento do STF sobre o tema, o Congresso Nacional deve aprovar imediatamente uma lei que estabeleça o autogoverno das universidades: a/o vencedor/a do processo de deliberação estabelecido pelo Estatuto da instituição deve ser homologado como o reitor ou reitora. Os setores políticos que afirmam a condição de liberais desvinculados da escalada autocrática têm o dever de garantir uma das mais básicas prerrogativas do Artigo 207 da Constituição.
No âmbito interno, os Conselhos Universitários estão desafiados a assumir plenamente suas prerrogativas. A consulta à comunidade, por hora, é desvinculada da eleição da lista tríplice. É preciso garantir, por um acordo nacional, que a famigerada lista, enquanto existir, é composta pelos que possuem a legitimidade de suas comunidades.
Enquanto persistir o desrespeito à autonomia universitária – expresso por afrontas de dirigentes à liberdade de cátedra – os Conselhos Superiores devem rejeitar, liminarmente, todo intento de romper com a essência da autonomia – a irrestrita liberdade de cátedra e de expressão.
“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
“No caminho com Maiakóvski” (1968)
Por
Eduardo Alves da Costa
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 20
Roberto Leher
Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ
***