Resposta à ameaças e trabalho de fomento político levam indígenas a deixarem de ser a raça menos representada nas eleições. Criação de partido próprio ainda não é consenso.
El País, JOANA OLIVEIRA
O aumento do desmatamento, das invasões de garimpeiros ilegais em seus territórios, a paralisação das demarcações sob o Governo Bolsonaro e o avanço da covid-19 nas comunidades originárias são o pano de fundo de um boom de candidaturas indígenas no Brasil nas eleições municipais deste ano. O número de candidaturas dos que se declaram indígenas cresceu 28% em relação ao pleito de 2016. Na ocasião, foram 1715. Hoje, são 2.194, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com esses números, os indígenas ultrapassam os candidatos que se declaram amarelos (1.959, ou 0,35% do total) e deixam assim de ser a raça menos representada na disputa por cargos eletivos.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) atribui parte desse resultado ao trabalho feito nos últimos anos para fomentar a formação política nas aldeias. Em 2017, a organização publicou a carta-manifesto Por um parlamento cada vez mais indígena e, em 2018, o movimento dos povos originários conseguiu eleger a deputada federal Joênia Wapichana (Rede – RR), a primeira mulher indígena a conquistar uma vaga no Congresso Nacional.
“A retirada de direitos fundamentais dos nossos povos acontece a partir de articulações no Congresso, então é importante que estejamos nesses lugares. Mas se quisermos chegar lá ou mesmo à Presidência, temos que aumentar a base na esfera municipal”, afirma Sônia Guajajara, presidente da Apib, que concorreu à vice-presidência em 2018, ao lado de Guilherme Boulos (PSOL). Em 2016, 167 indígenas foram eleitos vereadores. Para Sônia, “é muito pouco”. Este ano, dos 545.437 candidatos registrados no TSE, 0,40% são indígenas, uma quantidade percentualmente próxima ao tamanho demográfico de povos originários no Brasil: eles são
pelo menos 900 mil, cerca de 0,43% de uma população de 209 milhões.
“Nossa estratégia é diminuir o número de candidatos para concentrar os votos, porque a verdade é que não podemos contar com os votos dos não-indígenas. E também não somos prioridade dentro dos partidos. Nenhum partido, por mais alinhado que esteja com nossas pautas, compreende bem nossas demandas”, diz Sônia.
Por isso, o cacique Ramón Tupinambá, de 35 anos, que concorre a vereador na cidade de Ilhéus, no extremo sul baiano, pelo PSOL, diz que o ideal seria ter um partido indígena a nível nacional. “Aí poderíamos trazer para o jogo nossa visão de governo participativo, algo comum na gestão de nossas aldeias, por exemplo”, diz ele, que já disputou o pleito municipal em 2016 e concorreu como deputado estadual em 2018, sem êxito em ambas ocasiões.
Descendente dos primeiros povos a enfrentar a violência da colonização no Brasil, Ramón pretende atuar na esfera municipal pela demarcação dos territórios tupinambá na região de Ilhéus, autorizada desde 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas barrada pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, que em janeiro deste ano devolveu à Funai (Fundação Nacional do Índio) 17 processos de demarcação. “Vivemos um constante enfrentamento com grandes imobiliárias, que constroem resorts e condomínios perto nas nossas aldeias”, lamenta Ramón.
Apesar de concordar com ele que os partidos existentes não dão conta das reivindicações dos povos originários, Sônia Guajajara tem dúvidas sobre a criação de uma legenda nacional indígena. “Não tenho convicção de que isso resolveria. Afinal, somos 305 povos diferentes em todo o Brasil, então é possível que acabasse caindo na lógica dos partidos tradicionais”, argumenta.
Mais mulheres
O pleito municipal de 2020 também terá um recorde de mulheres candidatas entre os indígenas: elas passaram de 27,5%, em 2016, para 32,4% do total, de acordo com os dados do TSE. Uma delas é Kandara Pataxó, de 39 anos, candidata a vereadora em Santa Cruz Cabrália (BA), pelo PSD. Filha de duas lideranças indígenas —sua mãe foi a primeira mulher chefe de sua aldeia—, Kandara atua na comunidade desde os 16 anos como defensora dos direitos das mulheres, reivindicando que mais delas ocupem espaços de decisão nas tribos. Apesar dessa trajetória, diz que o convite para candidatar-se foi inesperado.
“Venho buscando políticas públicas, mas não venho de uma vida pública. Hesitei quando me propuseram a candidatura. Pensei: Vão mandar me matar. Não quero ser mais uma Marielle”, conta Kandara, que, depois de perceber o apoio de seu povo, decidiu aceitar o desafio. “A maioria de nós não entende muito de partido. Nossa luta não é partidária, é por espaço. Sempre fomos usados de volume nos partidos para apoiar candidatos não-indígenas que prometem defender nossas pautas, mas, chegando lá, somos os primeiros a ser esquecidos”, acrescenta.
Foi essa disputa por espaço que motivou Ariene Susui, membro do povo wapichana, de apenas 23 anos, a candidatar-se a vereadora em Boa Vista (RR) pela Rede. A cidade, apesar de contar com cerca de 20.000 indígenas, nunca teve representação dos povos originários em sua Assembleia. Ariene conta que sua comunidade começou a fazer reuniões para discutir política partidária em 2017, na época em que o povo wapichana preparava a candidatura da deputada Joênia. “Depois que ela foi eleita, não paramos mais. Foi uma chama necessária”.
Ariene diz que a política partidária nunca foi uma prioridade dos povos indígenas, porque eles sempre tiveram que lutar pelo mais primordial, seus territórios. O retrocesso nos direitos desses povos nos últimos anos, no entanto, motivaram-na a entrar para a política. “Para mim, o estopim foi ver que garimpeiros e madeireiros não têm mais medo e invadem cada vez mais nossos territórios, justamente porque se sentem arroupados pelo discurso do Governo Federal”, afirma.
Para Val Eloy, de 39 anos, que milita pelo povo Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue (MS), desde os 11 anos, apresentar-se nas eleições é uma forma de participar de um plano de governo em uma das capitais onde a bancada ruralista é mais forte. Ela é candidata a co-prefeita de Campo Grande pelo PSOL, ao lado de Cris Duarte. “Aqui, os políticos não se intimidam e não se envergonham em afirmar que não gostam mesmo dos povos indígenas”, diz.
De uma linhagem política —seus avós fundaram sua aldeia e seu irmão, o advogado Eloy Terena, que conseguiu no STF a decisão que obrigou o Governo Bolsonaro a adotar medidas de proteção dos povos indígenas contra a covid-19—, Val não hesitou em abraçar a candidatura. Na sua região, ela foi uma das lideranças que coordenaram a construção de barreiras sanitárias nas aldeias, diante da falta de assistência governamental. “Perdemos muitas vidas, mas se pensaram que isso nos faria abaixar a cabeça, só nos incentivou a mostrar que não esperaremos mais por uma política branca que fale por nós”, declara.