Não fosse a divulgação dos detalhes do julgamento do caso Mariana Ferrer pela imprensa e a repercussão perante a opinião pública, a vítima seria mais uma vez responsabilizada pela própria desgraça
Os Divergentes, por Edna Lima
Para quem acompanha política o assunto do dia é, com certeza, a eleição presidencial nos Estados Unidos, mas peço licença aos leitores d’Os Divergentes para tratar aqui de um fato que me deixou perplexa e indignada, não apenas como mulher, mas como cidadã. Quero escrever sobre o caso Mariana Ferrer, que nesta terça-feira (3) voltou à tona após reportagem do site The Intercept Brasil, revelando detalhes do julgamento do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a influencer durante uma festa ocorrida em 2018, na cidade de Florianópolis.
De acordo com a reportagem, o processo foi marcado por troca de delegados e promotores, sumiço de imagens e mudança de versão do acusado e de posicionamento do próprio Ministério Público. Ao final, o réu foi inocentado sob a alegação de ter cometido o que foi classificado como “estupro culposo”, quando o agressor não tem “intenção” de estuprar a vítima.
Em sua alegação final, o promotor Thiago Carriço de Oliveira, desconsiderou todo trabalho realizado pelo colega Alexandre Piazza, que cuidou do caso no início do processo e denunciou André de Camargo Aranha por estupro de vulnerável. Para o novo promotor, não foi possível comprovar que Mariana não tinha capacidade para consentir com o ato sexual, desqualificando assim o crime de estupro de vulnerável descrito na denúncia anterior.
O julgamento que inocentou Aranha ocorreu em setembro deste ano. Na época a hashtag #justiçapormariferrer alcançou aos trend topics do Twitter. Nesta terça-feira, o assunto voltou a tomar conta da mesma rede social com hashtags bem mais agressivas, mostrando toda revolta dos internautas com o caso, uma delas foi #vaisefuder.
Além da esdrúxula tese de “estupro culposo”, a atuação do advogado de defesa do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, foi um caso à parte. Gastão protagonizou um show de machismo e desrespeito, humilhando a vítima e tentando reverter à situação em favor do seu cliente.
No vídeo, publicado pela reportagem, a defesa tenta desqualificar Mariana exibindo cópias de fotos sensuais produzidas pela jovem enquanto modelo profissional, mas que nada tinham a ver com o caso em julgamento. Definiu as imagens como “ginecológicas” e repreendeu a vítima quando ela começou a chorar se sentindo constrangida, acusando-a de “dissimulada”.
O discurso do Dr. Gastão durante o julgamento é nauseante. Na falta de argumentos, é comum advogados recorrem à velha tática de culpar a vítima para salvar seus clientes que não conseguiram conter seus ímpetos animalescos.
No julgamento ficou claro que para esse tipo de gente não basta à impunidade, é preciso humilhar e destruir a vítima. Talvez para servir de exemplo a outras mulheres que ousem denunciar abusos, especialmente cometidos por homens poderosos.
Ainda que Mariana estivesse nua durante a festa não daria o direito a homem nenhum abusar do seu corpo sem o seu consentimento. O discurso do advogado de defesa do réu, como ocorre em tantas outras ocasiões, mostra o quanto ainda somos uma sociedade machista.
Graças à publicação dos vídeos e dos detalhes do processo, o caso voltou a repercutir, desta vez ganhando o apoio de personalidades de peso como a cantora Ivete Sangalo, a atriz Cláudia Raia e o Padre Fábio de Melo, apenas para citar alguns.
O Congresso também resolveu entrar na briga e nesta terça-feira, o Senado aprovou voto de repúdio “ao advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, ao Juiz Rudson Marcos e ao Promotor de Justiça Thiago Carriço de Oliveira, por distorcerem fatos de um crime de estupro, expondo a vítima a sofrimento e humilhação”, apresentado pelo senador Fabiano Contarato.
No requerimento, Contarato cobrou do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público que apurem a responsabilidade dos agentes envolvidos.
Louvo a iniciativa do parlamentar, mas lamento que não tenha sido tomada por nenhuma senadora ou deputada com assento em uma das duas casas do Congresso, sobretudo das que se dizem feministas.
A Corregedoria Nacional de Justiça também se manifestou diante da imensa repercussão do caso e decidiu abrir processo disciplinar para apurar a conduta do juiz, por ter permitido que o advogado do réu agisse de forma agressiva contra a vítima.
O caso revela a importância do papel da imprensa, tão aviltada ultimamente, na garantia dos direitos e da própria democracia. Se o caso não tivesse sido divulgado, certamente Mariana seria apenas mais uma vítima, como tantas outras, que se tornam culpadas pela própria desgraça.