Em 20 de janeiro de 2020, pouco se sabia sobre o Sars-Cov-2. As informações oficiais indicavam que apenas duas pessoas haviam morrido de uma doença respiratória ainda misteriosa, causada por um novo coronavírus surgido em um mercado de animais em Wuhan, na China. Apesar disso, o geneticista Sharon Moalem parecia saber o que estava por vir. Naquele dia, em sua conta no Twitter, ele publicou: “Por que mais homens vão sucumbir à recém-descoberta Síndrome Respiratória Aguda de Wuhan?”
Por Leonardo Pujol – De Porto Alegre para a BBC News Brasil
Moalem é um canadense de 43 anos radicado em Nova York. Dono de uma fala confiante e uma carreira de duas décadas dedicada ao estudo de condições genéticas raras, ele presumia com relativa certeza que a doença decorrente do vírus causaria uma letalidade desproporcional entre homens e mulheres. Ele estava certo.
Embora a falta de testes, de informações padronizadas e a preocupação com a subnotificação de mortes impeçam uma dimensão real sobre como o sexo está se saindo como um fator de risco para a covid-19, informações coletadas até 2 de novembro pela plataforma Global Health 50/50, um banco de dados internacional voltado à igualdade de gênero na saúde, mostram que 57,2% dos 36.805 que morreram pela covid-19 na Itália eram do sexo masculino. No Equador, eles eram 66,4% dos 12.181 óbitos. No México, 64% dos 89.171 mortos.
E há países onde mais que o dobro de homens morreu em consequência da doença. É o caso do Peru, onde 69,4% dos 34.187 que morreram eram homens.
Mesmo onde os dados de gênero e sexo são parciais, como no Brasil, a incidência de morte em razão do vírus era maior em homens – 57,8%. Os dados da Global Health 50/50, no entanto, sugerem taxas de infecção semelhantes em pessoas de ambos os sexos. Então por que uma proporção significativamente maior de homens não resiste à doença?
“Eu diria que esse é o velho normal”, opinou o demógrafo e pesquisador José Eustáquio Alves. “As mulheres sempre demonstraram uma maior taxa de sobrevivência a longo prazo. A covid-19 só reforça isso”, acrescentou ele, que desde abril mantém um diário na internet sobre tendências e números da pandemia.
Cabe lembrar: em média, no mundo, nascem cerca de 105 homens para cada 100 mulheres. O sexo feminino, no entanto, é mais propenso a completar o primeiro aniversário e os anos seguintes. Ou seja, morrem mais meninos do que meninas nos primeiros anos de vida. Não há uma razão clara para o fenômeno, segundo a OMS.
A partir do início da idade adulta, as mulheres começam a ser maioria na sociedade e passam a viver mais do que os homens em praticamente qualquer lugar do mundo. A expectativa de vida para elas é, em média, de seis a oito anos maior. Além disso, para cada homem com um século de vida, há quatro mulheres. E das pessoas que chegam aos 110 anos de idade, mais de 95% são do sexo feminino.
Os cientistas também constataram que as mulheres têm um sistema imunológico mais forte do que os homens, veem o mundo com maior variedade de cores e correm menos risco de desenvolver determinados tipos de câncer. E, caso tenham a doença, suas chances de responder positivamente ao tratamento são maiores. Um levantamento do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH, na sigla em inglês) mostrou que homens brancos, negros, hispânicos, asiáticos, indígenas — todo grupo masculino tende a ser mais vulnerável ao câncer quando comparado aos pares femininos.
Outras evidências sugerem, ainda, que mulheres são mais resistentes a desenvolver doenças cardiovasculares, deficiências e certas infecções virais.
Por exemplo: estudos mostram que os homens foram desproporcionalmente afetados tanto na Gripe Espanhola de 1918 quanto no surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2003. Uma análise realizada na região de Hong Kong apontou que a maioria (57%) das 299 pessoas que sucumbiram à Sars eram homens, não mulheres.
À semelhança da atual pandemia, a Sars também era causada por um coronavírus (Sars-Cov) surgido em um mercado de animais na China. A epidemia, no entanto, durou aproximadamente seis meses, alcançou 29 países e, ao todo, matou quase 800 das cerca de oito mil pessoas que contraíram a doença. Já a pandemia do Sars-Cov-2, que tem produzido uma nova onda de infectados, atingiu praticamente todos os países. Pelo menos 55 milhões de pessoas foram infectadas ao redor do mundo. Destas, 1,3 milhão morreram.
Os alvos preferidos do Sars-Cov-2
À medida que os números cresciam, desde o início da pandemia, evidências mostravam que alguns grupos eram mais vulneráveis à covid-19. Idosos, por exemplo, correm em média um risco cinco vezes maior de desenvolverem quadros graves e morrerem devido à covid-19. Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em maio, mostrou que pessoas acima de 60 anos representaram 80% das mortes na China e 95% das que morreram na Europa. No Brasil, pessoas com mais de 60 anos representavam 69% dos óbitos.
Fatores biológicos provavelmente colaboram para isso.
Alterações no sistema imunológico, naturais da idade, fazem com que idosos tenham pulmões e mucosas mais fracas. Além disso, as vacinas tomadas na juventude já não surtem os efeitos de outrora. Portanto, há menos anticorpos no organismo.
Acrescente esse contexto aos fatores sociais: como se engasgam e aspiram mais, eles levam a mão à boca com mais frequência, correndo mais risco de contágio. E ainda vão a hospitais e unidades de saúde com mais regularidade — especialistas afirmam que consultas médicas não urgentes, mas necessárias, colocam os idosos em risco desnecessário.
Doenças pré-existentes também são um fator de risco à covid-19. Obesidade, pressão alta, diabetes e doenças cardiovasculares são comuns em idosos, mas também atingem uma parcela significativa de adultos de meia-idade.
Essas condições, porém, não afetam todos igualmente. Entre pobres e ricos com comorbidades, a balança da morte tende a pender para os desvalidos — pois os ricos, em tese, desfrutam de uma série de vantagens como melhores dietas, condições de moradia, de trabalho e de acesso aos serviços de saúde. Presume-se que a disparidade se repita nas comunidades negras — no Brasil, três em cada quatro pessoas que constituem os 10% mais pobres são negros, segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada pelo IBGE em 2019.
É difícil encontrar dados confiáveis sobre a demografia racial do vírus. Mas uma nota técnica assinada por 14 pesquisadores da PUC-RJ, no começo de junho, indicou que mais da metade dos negros (54,8%) que se internaram em hospitais no Brasil para tratar casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), com confirmação de covid-19, morreran. Entre brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%. O estudo foi feito com base em 29.933 casos encerrados de covid-19 (com óbito ou recuperação), a partir dos dados divulgados pelo Ministério da Saúde.
Nos Estados Unidos, algumas estatísticas apontam que até 23% das mortes relatadas por covid-19 são de pessoas negras, embora elas representem aproximadamente 13% da população. Outro levantamento afirma que a taxa de morte de negros é 2,4 vezes superior à dos brancos, embora haja comunidades americanas onde até sete negros morrem para cada pessoa de pele branca.
E quanto à taxa de letalidade maior entre homens?
Isso provavelmente reflete uma combinação de diversos fatores.
Ganha força, contudo, a ideia de uma suposta fragilidade biológica do sexo masculino. Um dos principais defensores dessa teoria é Sharon Maolem, o geneticista que previu o fenômeno em janeiro. A afirmação vem na esteira do lançamento de The Better Half: On the Genetic Superiority of Women (A melhor metade: sobre a superioridade genética das mulheres). Trata-se do quinto livro do autor, lançado em abril, cuja versão em português será publicada no Brasil em 2021 pela editora Cultrix.
A obra é resultado de uma extensa pesquisa encerrada no ano passado. Nela, Moalem apresenta evidências de que as características biológicas são determinantes à notável resiliência feminina – adicionando um importante ingrediente à teoria clássica, que costuma atribuir o prodígio a fatores sociais, como comportamento, costumes e hábitos de vida.
Em geral, mulheres vão com mais regularidade ao médico, fumam menos e lavam as mãos com mais frequência. Em contrataste, os homens tratam menos das comorbidades crônicas, têm um comportamento mais arriscado e são menos caprichosos. Observando assim, a conduta, de fato, torna o homem mais propenso a desenvolver uma síndrome respiratória. E a morrer mais cedo.
Mas Sharon Moalem vai além. Para ele, a dependência excessiva de explicações comportamentais cegou a medicina para outra importante realidade: a diferença genética entre os sexos.
Em um artigo de opinião no The New York Times, intitulado “Por que tantos homens morrem de coronavírus?”, o geneticista admite que algumas explicações comportamentais “são quase certamente válidas”. No entanto, também afirma que a maior taxa de mortes entre homens por Covid-19 “pode ser uma demonstração oportuna e de alto perfil” da genética feminina.
O poderio do cromossomo X
Para compreender a diferença biológica entre homens e mulheres é preciso considerar que o DNA humano é um conjunto de instruções genéticas, situado no núcleo celular e cercado por 46 cromossomos. Esses cromossomos são organizados em 22 pares que recombinam tanto o DNA do pai quanto o da mãe. Eles compartilham 99% da disposição genética hereditária, mas com milhares de pequenas diferenças que explicam a variação entre as características das pessoas.
Há ainda o par 23, dos cromossomos sexuais. Na maioria das circunstâncias, a fêmea humana tem dois cromossomos X — um do pai e outro, da mãe. Já o homem tem apenas um cromossomo X, herdado da mãe, emparelhado com um cromossomo Y, de seu pai.
O cromossomo X é estruturalmente maior e mais complexo do que o cromossomo Y. O primeiro é dotado de aproximadamente 1.150 genes, longas sequências do DNA que produzem proteínas essenciais ao funcionamento das células.
O cromossomo Y, por sua vez, tem entre 60 e 70 genes. Significa que os cromossomos sexuais masculinos têm praticamente a metade da diversidade genética das mulheres, com seus dois X.
Essa população genética em dobro poderia permitir que as mulheres produzissem duas vezes mais proteínas relacionadas a esses genes do que os homens. Mas não é o que acontece. Para o ciclo da vida, as células femininas selecionam apenas um cromossomo X. O segundo é aleatoriamente desligado ou desativado, um processo conhecido como inativação do X.
Os primeiros indícios sobre a inativação do cromossomo X remontam à década de 1950.
Umaa importante descoberta foi que a inativação se dava no estágio de blastocisto, quando o embrião alcança a parede do útero — e as células começam a ganhar funções específicas na formação do organismo do feto.
Ocorre que essas evidências provinham unicamente de experimentos com camundongos.
“Conhecemos bastante sobre a inativação do cromossomo X em roedores por causa da relativa facilidade de se estudar os embriões e da capacidade de modificar o genoma deles”, explicou a geneticista Lygia da Veiga Pereira, professora titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). “Mas em seres humanos o conhecimento é mais limitado.”
Nos últimos anos, porém, a descoberta de células-tronco embrionárias e o surgimento de uma técnica de mapeamento de DNA capaz de sequenciar com precisão e integralmente o genoma de uma única célula permitiu identificar o momento em que determinados genes se tornam ativos. Foi o que Pereira e mais duas colegas analisaram a partir de 2013.
Elas examinaram o material de pesquisadores da China e da Suécia — sequências de RNA, material genético mais flexível do que o DNA, de células isoladas de embriões humanos. E descobriram algo inesperado. “Verificamos que a inativação do cromossomo X se dava no início da embriogênese humana, antes de o embrião se fixar à parede do útero, em um estágio anterior ao dos embriões de camundongos”, afirmou.
Isso revela que o processo de desativação do X começa cinco ou seis dias após o espermatozoide (feminino, por assim dizer) fecundar o óvulo. O resultado do estudo foi publicado em 2017 no periódico Scientific Reports.
Além de oferecer uma nova tese ao início da inativação do X, a pesquisa brasileira reforçou um entendimento de longa data — que o mecanismo de seleção do cromossomo sexual ocorre de forma aleatória em cada célula.
Isso é vantajoso às mulheres. Afinal, o organismo feminino pode escolher entre dois cromossomos X, de maneira a compensar uma célula defeituosa. Nos homens, não há esse tipo compensação, pois não há alternativa.
A fuga de inativação do X
No mesmo ano em que as cientistas da USP identificaram o momento de inativação do X, pesquisadores do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Helsinque, na Finlândia, publicaram na revista Nature um estudo que reforça outra teoria crescente: a de que o cromossomo silenciado nas mulheres, na verdade, não está totalmente adormecido.
A ciência começou a suspeitar disso entre as décadas de 1970 e 1980, quando algumas pesquisas indicaram a expressão de alguns genes supostamente inativos. Presumia-se, porém, que essa expressão causava um efeito mínimo na biologia da mulher. Foi só nos últimos 15 anos que esse entendimento mudou, à medida que os pesquisadores identificavam e catalogavam os genes “fugitivos”.
O que o estudo finlandês concluiu é que cerca de 23% da variedade de genes do cromossomo sexual silenciado não só estavam ativas como acessíveis às células femininas. São genes que raramente atingem 100% dos níveis de expressão, como no cromossomo ativo; a média fica em torno de 10%. Mas o processo de expressão, chamado pelos pesquisadores de “fuga de inativação do X”, é suficiente para fazer uma diferença biológica — inclusive porque parte desses genes está relacionado à resposta imunológica.
Em outras palavras, é como se o cromossomo inativo atuasse como uma espécie backup: uma cópia de segurança, com centenas de genes à disposição do organismo para enfrentar situações estressantes como o câncer, a fome ou a infecção por um vírus mortal.
A bióloga computacional Taru Tukiainen, que liderou o estudo, acredita que há ainda mais genes fugitivos para encontrar — em diferentes tipos de células, tecidos, indivíduos e pessoas de diferentes idades. “Estamos apenas dando o primeiro passo para realmente entender toda a complexidade desse fenômeno”, disse Tukiainen à revista The Scientist.
Para o geneticista Sharon Maolem, entretanto, a descoberta é suficiente para dar um novo sentido à maneira como entendemos a reação do organismo humano. Falando sobre os genes que escapavam da inativação, ele comentou em um e-mail à BBC News Brasil: “Isso significa uma boa potência genética dentro de cada uma das células da mulher”.
Moalem afirma que o estudo dá significado às evidências históricas, que demonstram que as mulheres sempre viveram mais, mas também às próprias experiências — especialmente as de quando ele dava expediente em uma UTI neonatal, dez anos atrás.
Cabe dizer: existem muitas razões para recém-nascidos passarem dias dentro de uma incubadora translúcida, cheios de fios conectados ao corpo e sob o escrutínio de médicos e enfermeiros.
A prematuridade é a principal delas. Um bebê que nasce com menos de 37 semanas de gestação ainda não tem o cérebro e os pulmões totalmente desenvolvidos. Minúscula e indefesa, a criança permanece na UTI até atingir a completa estatura do organismo — uma enorme luta estando longe da proteção do útero materno, exposto ao frio e a trilhões de micróbios.
O que Moalem identificou de forma empírica, à época, é que meninos eram mais suscetíveis a infecções — e à morte, em virtude de doenças correlatas. “Observar a vantagem de sobrevivência feminina ocorrendo em uma idade tão jovem foi muito impactante”, diz Sharon Moalem. Ele só não sabia exatamente por que aquilo acontecia. A partir da conclusão dos pesquisadores da Universidade de Helsinque, Moalem passou a considerar que o fenômeno estivesse ligado ao fato de as meninas terem dois cromossomos X. O que permitiria, desde muito cedo, acessarem mais versões dos mesmos genes para resolver quaisquer desafios e traumas biológicos.
Estudos mais objetivos, contudo, sugerem que o amadurecimento do pulmão fetal ocorre mais precocemente no sexo feminino. Isso reduz as chances das recém-nascidas desenvolverem problemas respiratórios — que estão entre as principais causas de morte no período neonatal.
Estima-se que, entre os bebês prematuros que nascem antes das 32 semanas de gestação, o risco de morrer é de 9% para meninos e de 6% para as meninas. Outras pesquisas mostram que a tendência se repete em crianças de praticamente todas as faixas de peso ao nascer, e independentemente da idade gestacional.
O Brasil não dispõe de dados oficiais sobre o tema, segundo a vice-diretora da Associação Brasileira da Pais, Familiares, Amigos e Cuidadores de Bebês Prematuros (Prematuridade). Aline Hennemann, porém, disse à BBC News Brasil que “como enfermeira neonatal e com a minha experiência beira-leito, esses estudos recentes se confirmam: as meninas têm uma incidência menor de mortalidade ao nascer do que os meninos”.
Hormônios e enzimas
Apesar de sedutora, a narrativa do cromossomo X, sozinha, não explica por completo a resistência feminina. “A genética desempenha um papel importante, mas outros fatores externos certamente contribuem”, diz Zoe Xirocostas, uma jovem cientista de 24 anos que faz pós-doutorado na Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália.
Em março, Xirocostas e os colegas publicaram na revista Biology Letters o resultado de uma análise sobre a vida útil no reino animal. O conjunto de dados incluiu toda sorte de informações sobre a longevidade de humanos, outros mamíferos e aves, como também de répteis, peixes, anfíbios, aracnídeos, baratas, gafanhotos, besouros, borboletas e mariposas.
“Ao analisar essa ampla gama de espécies, descobrimos que o sexo heterogamético (os homens, no caso dos humanos) tende a morrer 17,6% mais cedo que o sexo homogamético (as mulheres, no caso dos humanos)”, diz a pesquisadora.
As diferenças hormonais também podem fazer diferença, segundo Xirocostas. Pesquisas apontam que níveis mais altos de testosterona, o hormônio sexual masculino, estimulam comportamentos de risco. Além disso, a testosterona pode ativar um grupo de genes presentes nas células de defesa que enfraquecem a resposta do sistema imunológico. Por isso um agente estranho, como o Sars-Cov-2, tem facilidade para abrir terreno no organismo masculino.
Já o estrogênio, o hormônio feminino, contém propriedades anti-inflamatórias. Ele ajuda no reparo dos telômeros, as tampas que protegem as extremidades dos cromossomos. Os telômeros estão diretamente ligados ao envelhecimento. Quando eles se desgastam, as células param de se reproduzir. Essa, portanto, pode ser outra justificativa para a longevidade feminina.
O estrogênio ainda estimula uma resposta imunológica mais vigorosa.
Isso ficou evidente na pandemia do novo coronavírus. Em grande parte, gestantes infectadas pelo Sars-Cov-2 tiveram sintomas leves da doença — embora façam parte do grupo de risco. Isso pode estar atrelado ao fato de as grávidas terem, naturalmente, níveis de estrogênio e de progesterona mais altos durantes a gravidez.
Se for assim, contudo, a explicação não funciona para as mulheres idosas — que continuam tendo um desempenho melhor do que os homens idosos no combate à covid-19, apesar dos níveis de hormônio nas mulheres despencarem após a menopausa. De toda a forma, a ciência vem investigando o potencial do hormônio feminino no combate à doença — tratando, inclusive, pacientes masculinos com estrogênio e progesterona.
Uma outra explicação biológica para o coronavírus matar mais homens do que mulheres pode envolver uma proteína conhecida como enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2, na sigla em inglês).
Essencial à regulação da pressão arterial, a ACE2 também age como uma das portas de entrada do novo coronavírus nas células humanas. É como se ela fosse uma fechadura. O vírus é uma chave que se encaixa nela e, a partir dali, ganha acesso ao núcleo da célula.
Acontece que essa enzima tem dois lados. Ao mesmo tempo que facilita a ação do vírus, ela também possui um grande componente anti-inflamatório. E a ACE2 se expressa pelo cromossomo X. Assim, as mulheres tendem a apresentar uma quantidade duplicada dessa enzima. Elas seriam mais suscetíveis aos ataques do coronavírus, mas as altas barreiras anti-inflamatórias impediriam o desenvolvimento de manifestações graves da doença. Ou seja, o vírus pode entrar, mas não consegue esculhambar tanto com o organismo delas.
Por outro lado, a teoria da ACE2 ainda carece de mais estudos. Uma pesquisa da Sociedade Europeia de Cardiologia encontrou um maior índice de ACE2 no plasma sanguíneo dos homens. E os especialistas especulam que essa possa ser a razão da maior mortalidade causada pelo coronavírus entre o público masculino. A missão, ao que parece, é entender qual das duas faces da enzima é mais atuante no intrincado mecanismo de letalidade da covid-19.
Mas, afinal, sexo é fator de risco?
Desde que os primeiros casos surgiram, no fim do ano passado, a doença causada pelo novo coronavírus demonstrou ser bem mais do que respiratória. Descobriu-se que a covid-19 pode afetar não apenas os pulmões como também o sistema circulatório, o coração, os rins e até mesmo os sentidos, como o olfato e o paladar. A razão para boa parte desses efeitos é um enigma.
Muito mais se descobrirá a respeito da covid-19 — só neste ano, mais de 73 mil artigos científicos citaram a doença, segundo o banco de dados Pubmed. Inclusive sobre como diferenças biológicas acontecem ao longo da doença.
O que há, por ora, são correlações e possibilidades. Para determinar se o sexo é um fator de risco seria necessário um estudo amplo, começando pelo sequenciamento do genoma de pessoas que desenvolveram quadro leve da doença e de indivíduos que tiveram quadro grave. Os cientistas, então, tentariam encontrar variantes genéticas que pudessem influenciar a gravidade da doença.
Além disso, seria preciso considerar outros fatores não-genéticos — variáveis como idade, condições de saúde pré-existentes, hábitos de vida, condição socioeconômica. Os dados precisariam vir de fontes confiáveis e legítimas, como registros hospitalares ou do governo, e englobar um longo período de tempo e países diferentes. É um esforço tão árduo, custoso e demorado, que beira a utopia.
Mesmo que a hipótese genética fosse confirmada, seria impossível ignorar a teoria clássica — atrelada aos fatores comportamentais. O demógrafo José Eustáquio Alves ressalta que os homens, em geral, seguem mais expostos aos riscos de contágio e tratam menos das comorbidades crônicas. O que o leva a crer que as diferenças de reações ao vírus (e a outras mazelas) provavelmente refletem uma combinação de diversos fatores.
“Explicar a letalidade do vírus só pela biologia seria interessante, mas limitada”, comentou Alves. “Quando se trata de mortalidade, os fatores biológicos explicam menos do que os fatores sociais.”