A pandemia e o agronegócio no Brasil

A pandemia e o agronegócio no Brasil

A entropia interna ao sistema agropecuário global deve ser entendida como uma ameaça existencial para toda a humanidade. O admirável mundo novo das pandemias rebaixou os limites para a existência humana: agora estamos presos debaixo do teto de zinco das granjas de abate de animais em massa, cada uma delas uma fábrica em potencial da próxima bomba microbiológica 

Le Monde Diplomatique, por Allan Rodrigo de Campos Silva

A estratégia diversionista praticada pelo governo Bolsonaro de tola não tem nada. Suas peças se orientam por táticas de contrainteligência. A confusão dirige e antecipa a imagem do inimigo da vez, enquanto qualquer responsabilidade é dirimida em um malabarismo macabro, nascido do obscurantismo e do desejo de morte. Foi assim nos episódios do derramamento de petróleo no litoral brasileiro e nas queimadas da Amazônia, no já distante ano de 2019. Diante da pandemia de Covid-19 no Brasil, esse governo não agiu diferente: comandou um esforço coordenado para blindar o agronegócio diante de sua responsabilidade na emergência e no contágio por doenças infecciosas emergentes. O Ministério da Saúde chegou a desviar parte de sua verba para peças publicitárias para o agronegócio, num ato de derradeira capitulação. Em 2020, a saúde não foi pop. 

A fumaça da pandemia

Ao longo do ano, a pandemia se alastrou pelo território brasileiro como uma linha de pólvora estendida no chão. Fez seu curso através das grandes cidades, depois encontrou seu caminho de interiorização no país nas instalações do próprio agronegócio. Em junho, no Rio Grande do Sul, 25% dos infectados trabalhavam em frigoríficos de aves de porcos. Logo a doença também alcançou os territórios indígenas. As primeiras contaminações entre guaranis de Mato Grosso do Sul aconteceram nos frigoríficos da JBS. O ambiente de ventilação controlada, o trabalho ombro a ombro e a negligência das empresas diante de funcionários com sintomas da Covid-19 fez dos frigoríficos focos para o superespalhamento da doença. 

Logo a pandemia aterrissou também nas pistas de pouso do garimpo ilegal invasor das terras Yanomami e Ye’kwana. De acordo com um estudo conduzido pela Rede Pró–Yanomami e Ye’kwana, em novembro de 2020, um em cada três desses indígenas já havia sido exposto ao novo coronavírus. Mas da floresta também se erguem vozes que guardam uma longa memória sobre as doenças trazidas pela colonização. O xamã Davi Kopenawa nos lembra que entre os Yanomami sempre se falou da xawara, a fumaça que emana do metal arrancado pelo homem branco das entranhas da terra. A xawara, a fumaça da epidemia, é uma fecunda alegoria da produção de doenças pela modernização capitalista e a destruição da natureza. 

Admirável mundo novo da pecuária industrial

O papel da pecuária industrial na produção de doenças infecciosas não compõe exatamente uma novidade para os pesquisadores especializados. No entanto, desde a epidemia de gripe aviária que matou cem pessoas na China em apenas uma semana, diversas pesquisas apontam a causa da emergência de novas doenças infecciosas na microbiologia viral bastante particular da pecuária industrial globalizada. O modelo de criação animal intensiva remonta aos Estados Unidos dos anos 1940 e surgiu sob os auspícios das sociedades de eugenia humana que popularizaram a noção de melhoramento genético como forma de incremento da dominação humana sobre a natureza. No entanto, ainda que compartilhe esse assoalho comum com a eugenia humana, o melhoramento genético de plantas e animais decantou na ideologia da modernização capitalista como se tratasse de uma conquista civilizatória biossegura que nos afastaria da insegurança alimentar crônica. 

Um olhar mais atento às dinâmicas epidemiológicas do setor pode revelar o contrário. De acordo com o biólogo evolucionista Rob Wallace (Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, Editora Elefante e Igrá Kniga, 2020), as instalações de criação e engorda da pecuária industrial ofereceriam condições ideais para patógenos – vírus e bactérias – testarem caminhos evolutivos que permitiriam o aumento de sua virulência e patogenicidade. Até a chamada revolução agropecuária do século XX, a criação humana de animais para consumo sempre esteve ligada à reprodução dos animais in loco. Essa prática milenar está na base de uma pecuária que amplifica a diversidade genética e imunológica dos bandos de aves, porcos, cordeiros, caprinos e bovinos em todo o planeta. A consolidação dos complexos agroindustriais trouxe à baila a prática execrável do monocultivo genético, uma bomba–relógio microbiológica em crescente tensão. 

O enfileiramento de milhares de animais geneticamente similares nos galpões do agronegócio também funciona como uma plataforma de testes para o transbordamento de doenças zoonóticas para as populações humanas. A qualquer momento uma cepa recém–emergente de um coronavírus ou influenza pode assumir um rearranjo genético capaz de infectar humanos – geralmente um trabalhador do agronegócio –, e pronto: está aberta a longa rampa de mais uma epidemia mortal. O paradigma da biossegurança oferece níveis adicionais de pressão para a evolução viral no interior da pecuária industrial. Animais reproduzidos in loco e criados ao ar livre recebem uma espécie de vacina natural, por conviverem com cepas de baixa patogenicidade prevalentes nos animais selvagens. A diversidade genética e imunológica do bando atua como uma barreira epidemiológica para o surgimento de um surto. Já na pecuária industrial, a vacina pode amplificar o problema: o pesquisador Kenneth Shortridge identificou uma linhagem do vírus da influenza altamente patogênica que evoluiu ao longo de anos debaixo das coberturas vacinais oferecidas pelo governo em um frigorífico de Hong Kong. 

O vírus Sars-CoV-2, que causa a doença Covid-19, ainda não teve sua origem completamente desvelada pelos pesquisadores. No entanto, fortalecem-se as evidências de que se trataria de um vírus zoonótico que percorreu uma série de transbordamentos entre espécies de animais até encontrar seu caminho de infecção em humanos. Ao menos um hospedeiro intermediário, o pangolim, tem presença nessa cadeia de contágios subsequentes por causa da indústria de carnes exóticas em franco processo de modernização na China. 

De acordo com Rob Wallace, estaríamos já diante de uma enxurrada de novos coronavírus. Em apenas dezessete anos já passamos por três fenômenos de transbordamento de coronavírus que causam doenças em humanos: Sars-1, Mers e Sars-2. Em outubro de 2020, uma pesquisa despertou a atenção de epidemiologistas ao constatar que outro coronavírus, o Sads-CoV, se revelou capaz de infectar células humanas. O Sads-CoV é conhecido por provocar uma síndrome digestiva grave em porcos de criação nos Estados Unidos. As mensagens de alerta não param de chegar: 17 milhões de visons foram sacrificados para interromper um surto na Dinamarca. Caso as fazendas de visons houvessem produzido um novo rearranjo genético do vírus Sars-Cov-2, o esforço global de produção de vacinas poderia ter sido seriamente comprometido. Uma futura pandemia que fosse capaz, logo de saída, de infectar humanos e animais de criação seria exponencialmente mais difícil de controlar. O Global Virome Project estima que existam mais de 1 milhão de vírus desconhecidos circulando em animais selvagens, dos quais metade tem potencial para causar zoonoses. 

A entropia interna ao sistema agropecuário global deve ser entendida como uma ameaça existencial para toda a humanidade. Se nos anos da Guerra Fria a humanidade viveu debaixo do teto de aço da ameaça nuclear, o admirável mundo novo das pandemias rebaixou os limites para a existência humana: agora estamos presos debaixo do teto de zinco das granjas de abate de animais em massa, cada uma delas uma fábrica em potencial da próxima bomba microbiológica. 

Jair Bolsonaro é homenageado em Sinop (MT) em ato do agronegócio, em outubro de 2020. (Alan Santos/PR)
Ecologias protopandêmicas

A cadeia de contágio de todas as doenças infecciosas emergentes começa com a destruição da natureza. Um caso exemplar para a nova geografia global das doenças emergentes está no Delta do Rio das Pérolas, na baía onde estão Hong Kong, Macau e as províncias de Guangzhou e Shenzhen, moradia de 22 milhões de pessoas. Com a abertura da Zonas Econômicas Especiais ao capital internacional nos anos 1980, a ecologia do delta foi radicalmente transformada: terraplanagem, drenagem de áreas úmidas, urbanização extensiva, industrialização e consolidação de complexos agroindustriais.  

Em todo o planeta, as áreas úmidas como pântanos, turfas e charcos atuam como zonas de pousio e invernada para bandos de aves migratórias que são reservatórios para diversas cepas de vírus da influenza. Contudo, diante de sua alta variabilidade genética, nesses bandos de aves selvagens prevalecem vírus de baixa patogenicidade, já que os de alta patogenicidade em geral infectam alguns indivíduos sem conseguir estabelecer uma cadeia de contágio. 

À medida que a produção agropecuária avança sobre as áreas úmidas, drenadas para a formação de campos de cultivo, esses bandos de aves perdem suas áreas de pousio e passam a forragear em meio aos restos das produções de grãos das fazendas. Essa pressão aumenta a interface entre aves migratórias selvagens e aves de criação. Quando os vírus das aves selvagens infectam, por exemplo, um celeiro de frangos de corte, encontram uma via livre para testar caminhos de evolução para sua patogenicidade e virulência, sem, contudo, contar com os mecanismos de interrupção de doenças com que as florestas e os bandos de animais selvagens possuem em razão de sua biodiversidade. 

A modernização agropecuária da China, que encarna esse roteiro, eclodiu na epidemia de gripe aviária de 2003. O Pantanal brasileiro, uma das maiores planícies alagáveis do planeta, área de pousio para mais de seiscentas espécies de aves, encaixa-se de maneira perfeita e terrível nesse mesmo arranjo ecológico-econômico. No Pantanal, a criação de aves, a pecuária bovina e a produção intensiva de soja, milho e cana-de-açúcar avançam pari passu com a drenagem das áreas úmidas. A região pan–amazônica é o outro bioma sob profunda ameaça sanitária, já que se trata, com toda a probabilidade, do maior repositório de coronavírus do planeta. A ecologia da Amazônia, profundamente complexa, contém cascatas de controle epidemiológico que os cientistas com muito esforço começaram a desvendar. Vale lembrar que a destruição das florestas tropicais africanas e a pressão do agronegócio do óleo de palma produziu a maior epidemia de ebola da história, que levou 11 mil pessoas à morte entre 2013 e 2015. 

Definitivamente, as mensagens de alerta não param de chegar. Aos poucos a comunidade científica e a sociedade civil tomam conhecimento da poluição epidemiológica inerente ao sistema industrial de criação de animais e à produção de alimentos do agronegócio capitalista. Um mundo onde a criação de animais não esteja sujeita aos ditames autodestrutivos tanto para a biodiversidade como para a própria humanidade pode ser um ponto de partida para o enfrentamento mais amplo do sistema capitalista como um todo. Todavia, o imperativo por transformação já não é mais uma admoestação proselitista, mas uma terrível atualização dos limites para a existência humana sobre o planeta. Falta muito pouco para o “tarde demais”. 

*Allan Rodrigo de Campos Silva é geógrafo e doutor em Geografia Humana pela USP. Traduziu o livro Pandemia e agronegócio, de Rob Wallace (Elefante e Igrá Kniga, 2020) e é membro do Fórum Popular da Natureza. 

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