País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise
El País
O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírusrespiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de anoenquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.
Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.
Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.
Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.
Pandemia interiorizada
Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.
Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.
Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.
“A gente lamenta, mas a vida continua”
Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.
Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua…”