Cis-hétero-bolsonarismo

Cis-hétero-bolsonarismo

Eis o cis-hétero-bolsonarismo: contradições funcionais, configurações ditatoriais e uma boa pitada de ressentimento, que serve como mobilizador dos afetos da “classe média”.

Le Monde Diplomatique, por Rick Afonso-Rocha

Há algum tempo, fui instigado pelas provocações da amiga Leila Raposo a pensar a respeito das singularidades sexuais e de gênero do governo Bolsonaro. Hoje, tento apresentar alguns pontos dessa reflexão, ainda provisória. Com a formulação “cis-hétero-bolsonarismo”, pretendo, portanto, refletir sobre o lugar das políticas sexo-gendradas nas configurações autoritárias da extrema direita, metonimizada naquilo que, de repente, começou-se a chamar bolsonarismo. Primeiro, devo delimitar o que entendo por esse “fenômeno”.

O cis-hétero-bolsonarismo corresponde a uma nebulosa político-ideológica de imagens afetantes, o que resulta em sua difícil caracterização, a exemplo dos debates sobre as (im)possibilidades de adjetivá-lo como um movimento nazifascista ou, pelo menos, como movimento com inclinações autoritárias. Há quem afirme categoricamente: “o bolsonarismo é fascista”. Contudo, como bem sabemos, há aqueles que, considerando-se mais “cuidadosos”, alertam-nos para as impertinências dessas aproximações feitas, supostamente, no calor do momento.

Existem elementos centrais no cis-hétero-bolsonarismo que o aproximam do nazismo, do fascismo, do integralismo e de tantos outros fenômenos autoritários e populistas, como também há elementos que o distanciam, inclusive por serem contraditórios, pelo menos, numa leitura mais tradicional. Todavia, isso não é aleatório ou circunstancial. Nesse sentido, não devemos olhar com desconfiança para as análises que apontam que o cis-hétero-bolsonarismo constitui, em certo sentido, uma re-emergência, preservando suas singularidades, do integralismo[1] ou do cesarismo regressivo.[2]

Em parte, esse fenômeno implica tudo isso. Porém, não constitui apenas isso. Há outras imagens. Diria que o cis-hétero-bolsonarismo traduz-se num mosaico de paisagens nazifascistas, uma corporalidade singular. É uma bricolagem contraditoriamente picotada. Não estranhemos suas mãos coladas na cabeça ou sua boca nas costas. Seu funcionamento sócio-político, portanto, se faz pela recursividade estrutural ao fascismo, em seu sentido mais amplo.

Eis o cis-hétero-bolsonarismo: contradições funcionais, configurações ditatoriais e uma boa pitada de ressentimento, que serve como mobilizador dos afetos da “classe média” (aporofobia). Isso acaba desencadeando um fenômeno que alguns analistas estão associando ao anti-intelectualismo, chave de leitura proposta por Jason Stanley em sua análise sobre o fascismo.[3] Esse anti-intelectualismo teria como objetivo minar o conhecimento crítico, fato que, supostamente, facilitaria a “manipulação” das ditas massas, como parece defender Márcia Tiburi.[4]

Há aí uma armadilha que esconde o elogio ao tecnicismo academicista, bem como pressupõe que as massas, essa ficção burguesa e afeita ao projeto nacionalista, sejam um objeto inanimado, flutuando conforme o desejo dos seus “líderes”. Veja que esse funcionamento produz a “intelectualidade” como a única esperança contra o autoritarismo, visto que só ela gozaria do aparato técnico-científico capaz de compreendê-lo. Esquecem-se que a resistência simplesmente acontece, para além da sua dimensão teoricista. Não que essa seja secundária ou seja desimportante, mas não podemos permitir, mais uma vez, que nossas histórias subterrâneas de resistências sejam amputadas pelo academicismo burguês que ainda majoritariamente teima em não reconhecer os saberes ditos subalternos.

Sem mencionar que essa lógica, ao trabalhar com “manipulação”, deixa de lado ou acaba atribuindo um peso menor ao desejo social pelo autoritarismo. Como disseram Deleuze e Guattari, o desejo nunca é enganado: “Daí o grito de Reich: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo, e é isso que é preciso explicar… Acontece desejar-se contra seu interesse: o capitalismo se aproveita disso.” (2010, p. 47).[5] À vista disso, prefiro falar em condução das condutas ou, no neologismo foucaultiano, governamentalidade, uma vez que esse conceito não deixa de lado o fato de que a sociedade pode gozar com e na censura.

Nesse suposto pilar do cis-hétero-bolsonarismo, vejo reverberar um pouco do intelectualismo branco-burguês de orientação (quase) de esquerda, tentando mostrar como essa “classe” estaria “ameaçada”. Parece-me que buscam ser, ainda que imaginariamente, o alvo privilegiado do cis-hétero-bolsonarismo. Para eles, esse fenômeno da extrema direita reacionária “representaria” um risco extra aos ditos intelectuais, normalmente para aqueles do Sul e do Sudeste, cujas críticas ao governo circulam com mais facilidade. Diante disso, pergunto-me: o que cabe nessa intelectualidade que não precisa dizer seu nome?

Não podemos esquecer que, para uma grande parcela dessa intelectualidade, há “escolhas”. Diferente da maior parte dos sujeitos inimigalizados pelo cis-hétero-bolsonarismo, podem autoexilar-se. Inacreditavelmente, o exílio pode denunciar privilégios. Sempre existirá uma universidade europeia ou norte-americana a oferecer-lhes uma cadeira. Para os corpos sem importância, o que resta? E quando a resistência não é “escolha” (corajosa, é preciso destacar), mas confunde-se com a própria sobrevivência/existência? Por conta disso, não sustento a pertinência desse anti-intelectualismo sem espessuras como característica homogênea do cis-hétero-bolsonarismo.

É evidente que essa nebulosa neofascista nega o conhecimento e a investigação científica, direcionando ódio aos setores ligados àquilo que poderíamos chamar de “produção crítica letrada oficial”.  Com isso, não podemos desconsiderar que há uma cruzada moral contra as universidades públicas, personificada no ex-ministro da Educação Weintraub que, sistematicamente, atacou professores, estudantes e as instituições de ensino superior. Muito menos, desprezar a insistência dos intelectuais bolsonaristas, a exemplo de Olavo de Carvalho em negar evidências científicas, fatos históricos e reflexões filosóficas consolidadas. Cruzada moral essa que instiga uma fábrica de ameaça contra aqueles que ousam questionar e criticar o cis-hétero-bolsonarismo. Aí reside a singularidade do “anti-intelectualismo”. Os intelectuais influencers tornam-se alvos de violência digital. Frise-se: há um negacionismo ideológico com consequências genocidas no âmbito das ciências, da filosofia e da história.

Contudo, não devemos permitir que a “intelectualidade” seja reduzida ao tecnicismo-acadêmico e sua divulgação, uma vez que tais circuitos são condicionados a reproduzirem os ideais ne(cr)oliberais, intensificando a sua reprodutibilidade estética, epistemológica, ética e política. Não é apenas contra a intelectualidade branca, universitária, urbana, cisgênera e heterossexual (pleonasmo?) ou contra a esfera do conhecimento científico que o cis-hétero-bolsonarismo se irrompe. É também, e principalmente, contra as práticas, saberes, corporalidades e gnoses negras, indígenas, LGBT+, quilombolas, feministas, do campo, das comunidades tradicionais, ribeirinhas, periféricas. O cis-hétero-bolsonarismo se irrompe contra os saberes do Sul metafórico. Logo, não podemos reproduzir, sem consequências, esse gozo da branquitude cisgênera e heterossexual em querer-ser a “vítima privilegiada” do cis-hétero-bolsonarismo. Quando, em verdade, gozam de proteção e de importância que dificultaria sua exposição radical às violências e à possibilidade da morte. Diria, portanto, que o cis-hétero-bolsonarismo põe em jogo um anti-gnosiologismo.[6]

Em outro sentido, não desprezo que o cis-hétero-bolsonarismo se traduza como a doutrina contra “tudo isso daí”. Longe de ser a expressão de sua “ignorância”, coloca em jogo um generalismo estratégico: sendo contra tudo, o cis-hétero-bolsonarismo se projeta como única saída e única chance de vitória na guerra imaginária que ele reatualiza. Nessa confluência polimorfa e aberta, o assim chamado inimigo torna-se uma indistinção: nem homem e nem besta, nem humano e nem animal, nem morto e nem vivo. A consequência desse funcionamento é que a sua figura pode ser facilmente deslocada conforme os interesses ordinários das classes e grupos hegemônicos: hoje, os imigrantes; amanhã, os negros ou as bichas ou ambos. Isso não significa que o inimigo seja qualquer um. Há corporalidades mais fáceis de serem marcadas como alvos, visto que já habitam zonas de abjeção.

O cis-hétero-bolsonarismo, como leio, não se confunde com o sujeito empírico que ocupa a presidência. Esse funcionamento deimopolítico[7] comparece antes e, certamente, permanecerá para além de Bolsonaro. Pode até Bolsonaro deixar de ser bolsonarista, ainda assim o cis-hétero-bolsonarismo existirá como nebulosa político-ideológica. O sujeito empírico que ocupa a presidência serve como ponto de ancoragem do movimento autoritário. Antes dele, ensaiaram pontos subjetivos outros, a exemplo de Marcus Feliciano, Magno Malta, Silas Malafaia. Contudo, foi com Bolsonaro que teve condições de emergência e de hegemonia. Se não fosse ele, certamente, seria outro. Poderíamos estar falando de algo como “felicianismo”.

É a partir do “sequestro” da imagem de um político do baixo clero –  conservador, ligado às crescentes forças neopentecostais, trazendo a reboque a ideologia militarista, sem deixar de lado os interesses do agronegócio, do capital internacional e da classe média – que as configurações autoritárias se condensam e personificam, isto é, ganham corpo e podem se fazer ouvir e ver. Bolsonaro serve como voz, corpo e imagem do cis-hétero-bolsonarismo. Por ele, o fascismo e o liberalismo mortífero, aquele sem maquiagem, conseguem se fazer presentes. Com isso, não pretendo, sob hipótese alguma, desresponsabilizar Bolsonaro e sua familícia. Contudo, é preciso observar, para além do ponto de ancoragem, os nós pelos quais essa nebulosa se sustenta e pelos quais consegue se expandir.

Com cis-hétero-bolsonarismo, busco sinalizar para uma transmutação daquilo que designei como cis-hétero-militarismo: formação histórica de significação da dissidência sexual e de gênero, mais ou menos delimitada a partir de 1930, com a confluência das ideias conservadoras à formação discursiva do anticomunismo no integralismo, resultando na produção sinonímica comunista = devasso moral. Tal formação histórica teria rompido o limiar político, estabelecendo-se hegemonicamente como homogeneidade imaginária, a partir da década de 1960, com sua reatualização pelo gozo-gore milico-autoritário. Já na virada da década de 1980 para 1990, o cis-hétero-militarismo escamoteou-se no corpo social em micro-funcionamentos difusos.

Não que tenha desaparecido. Penso que ocorreu uma contra-sequestração.[8] Ou seja, esse conjunto heterogêneo e polivalente de estratégias migrou para as relações locais. Existindo de modo subterrâneo nos pontos microfísicos das relações de poder. Até que conseguiu reestruturar suas condições de (re)emergência, se consolidando a partir de 2018. Conseguiu, em verdade, transmutar-se em outro fenômeno, com demarcadas singularidades: o cis-hétero-bolsonarismo. Isso porque uma formação histórica pode retornar, inclusive com dominância. Contudo, nunca retorna da mesma maneira. Carrega suas singularidades de re-emergência (aquilo que Foucault chamou de raridade).

Arrisco dizer que o combate a assim denominada ideologia de gênero é o operador central do cis-hétero-bolsonarismo. Embora muitos afirmem que essa centralidade se traduziria no anticomunismo ou no antipetismo, compreendo que o fantasma do inimigo sexo-gendrado é responsável, nesse funcionamento deimopolítico, por reatualizar tanto o anticomunismo quanto o antipetismo. Comunistas e petistas, que na gramática bolsonarista são sinônimos, atuariam pela dita ideologia de gênero.

No fundo, o que o cis-hétero-bolsonarismo faz ver é que não existe “comunista” que não seja “depravado moral”. E aqui opera uma plasticidade semântica, pois, na lógica bolsonarista,[9] qualquer um não-aliado que seja lido como ameaçador é narrado como comunista ou petralha. A ameaça comunista não é significada pela revolução armada, como foi em 1964 ou, antes disso, em 1935, mas pela revolução moral. Não são de estranhar as polêmicas envolvendo a aprovação do Plano Nacional de Educação entre 2015 e 2017, com forte mobilização conservadora contra a “ideologia de gênero” nas escolas. O cis-hétero-bolsonarismo emerge num contexto mais amplo de tensões entre religiosos e os governos de esquerda latino-americanos. De certo modo, a luta contra o comunismo cede espaço para a luta contra a ideologia de gênero. Nesse sentido, o cis-hétero-bolsonarismo constitui reação paranoica a uma suposta emasculação social, visto que, nessa lógica, os movimentos progressistas estariam, simbolicamente, amputando o pênis do varão. Fenômeno que evoca a assunção de uma posição de combatente, um chamado à batalha, afinal a guerra santa seria uma realidade.

Muito mais importante do que datar uma suposta origem do cis-hétero-bolsonarismo, respondendo ao nosso gozo cronologicista e empirista, podemos montar as séries pelas quais esse fenômeno se ancorou e se sustentou, ou seja, as séries responsáveis pela sua consolidação em 2018, com a eleição de Bolsonaro.

Nesse sentido, compreendo o cis-hétero-bolsonarismo a partir de alguns operadores de fragmentação constitutiva. Antes mesmo de o cis-hétero-bolsonarismo romper o limiar político, o inimigo sexual e de gênero já era desenhado em seus contornos. Gostaria de apontar alguns episódios capitaneados pelas forças reacionárias na construção desse inimigo. Estou me referindo a episódios ocorridos antes do famigerado “kit-gay”, em 2011. É no início do governo Lula que o cis-hétero-bolsonarismo começa a ensaiar sua emergência. Naquela época, gravitando em torno de algumas figuras pitorescas, a extrema direita reacionária ainda não provocava medo às “forças progressistas”. Inclusive, seus quadros eram oriundos do dito centrão e alguns chegaram a compor a base do governo.

Em 2004, com o lançamento do programa “Brasil sem homofobia”, setores conservadores do Congresso e da sociedade fizeram pressão contra o governo. As reações ao projeto eram patrocinadas por lideranças religiosas que associavam a “homossexualidade” à pedofilia, de modo a produzirem o corpo infantil como bem social ameaçado pela “estratégia homossexual”.[10]

Outro importante evento capitaneado pelo cis-hétero-bolsonarismo ocorreu em 2005, com as discussões sobre o Projeto de Lei 1151, proposto, em 1995, pela deputada federal do PT Marta Suplicy, que regulamentaria a “união entre pessoas do mesmo sexo”. Havia expectativas de o projeto ser apreciado naquela época. As reações foram patrocinadas por líderes religiosos com influência na chamada bancada da bíblia, a exemplo de Silas Malafaia, bem como pela ala congressista ligada aos militares.

Mais um episódio que deve ser lembrado é o projeto de lei anti-homofobia, apresentado em 2001, pela deputada federal do PT, Iara Bernardi. Após aprovação na Câmara, o projeto seguiu para o Senado, em 2006, passando a ser conhecido como PL 122/06. As reações mais agressivas contra essa proposta se intensificaram entre 2008 e 2014, muito em razão da militância encabeçada pelo pastor Malafaia e pelo então deputado federal Marco Feliciano. Alegaram que essa lei visava a conceder privilégios aos “homossexuais”, uma vez que, com sua aprovação, não poderiam mais criticar tais condutas. Ambos associaram o PL a uma suposta legalização futura da pedofilia.[11] Em 2011, esse grupo de religiosos entregou ao presidente do Senado, José Sarney, uma lista com um milhão de assinaturas contra o PL 122, arquivado em 2015.[12]

Em 2009, com as reações ao Plano Nacional de Direitos Humanos versão 3, tivemos, talvez, um dos pontos mais importantes para a curva de crescimento do cis-hétero-bolsonarismo. Criou-se uma atmosfera de pânico moral. A questão mais polêmica girava em torno dos “privilégios aos homossexuais”. O plano seria um ataque direto à “família brasileira”. Tanto que o deputado Arolde de Oliveira (PSD-RJ), em vídeo contra o PNDH-3, afirmara: “Sua família corre perigo. Cuidado”.

Lembro-me de assistir, num telão na igreja que frequentava, a um vídeo do pastor Silas Malafaia vociferando contra aquela “aberração”, o PNDH-3. Entre seus gritos histéricos, o pouco que dava para entender era que, após a aprovação daquele documento, os “homossexuais” estariam autorizados a praticarem “atos obscenos” nas igrejas e nada poderia ser feito. Também mencionava que os “cidadãos de bem” seriam obrigados a “aturar” beijos gays nas ruas e praças, enquanto passeavam com seus filhos. Lembro de como isso foi recepcionado pela minha família, bem como lembro das dores e da angústia decorrentes disso. A partir daquele dia, me vi como uma grande ameaça. Sem saber ao certo o que realmente isso significava, decidi que deveria me esconder ainda mais.

Diante das reações negativas por parte dos religiosos raivosos, da mídia conservadora, dos militares e políticos que apoiaram o golpe de 1964, Lula chegou a dizer que assinou o documento às pressas e por isso não se deteve aos pontos mais “polêmicos”. Em maio de 2010, antes de Dilma e do kit-gay, era amplamente noticiada a vitória da súcia reacionária: “Lula alterou trechos do Plano de Direitos Humanos”.[13]

Em minha hipótese, é entre 2004 e 2007 que o cis-hétero-bolsonarismo constrói sua massa corpórea. A partir de 2010, pelo que parece, já era inevitável, pois adentrava ao espectro de hegemonia da política nacional. E já havia alertas para isso. Em 2001, o historiador Eric Hobsbawm, comentando sobre uma possível instabilidade política que previa no Brasil nos próximos anos, disse: “O que me assusta é que os beneficiados pela instabilidade serão os reacionários”.  E continuou: “[…] não seria exatamente um fascismo, mas estaria na mesma família da extrema direita, com nacionalismo ou fundamentalismo. É o suficiente para causar o medo”.[14]

A previsão é hoje realidade. Mas para que isso acontecesse, o cis-hétero-bolsonarismo precisou de espaço para crescer. Esse terreno foi gentilmente dado pela imprensa hegemônica que lhe concedera os holofotes necessários para a produção de suas imagens autoritárias. Banhou-lhe com fermento. Lembro-me que, nesse período, Malafaia se tornou uma espécie de popstar do conservadorismo reacionário. Apareceu em inúmeros programas, destilando ódio aos LGBT+. Quando o Ministério Público ensaiou uma acusação contra o pastor, jornalistas saíram em sua defesa. Diziam que era uma ofensa à liberdade de opinião, a exemplo de Reinaldo Azevedo, que chegou a afirmar: “O Ministério Público viu na sua fala incitamento à violência!!! Ah, tenham paciência, não é? O sindicalismo gay tem de distinguir um ‘pau’ que fere de um ‘pau’ metafórico – ou ‘porrete’. Alguém, por acaso, já viu católicos nas ruas, em hordas, a agredir pessoas?”

E Bolsonaro, quando surge como uma “opção” viável para a direita fascista? É pela sua reação ao denominado kit-gay, a partir de 2010, que Bolsonaro passa a ser viável para o cis-hétero-bolsonarismo. Foi nesse período que inventou o suposto Seminário LGBT infantil.[15] A partir daí intensificando a estratégia de associar as dissidências sexuais e de gênero à pedofilia, tendo como “prova” as cartilhas do MEC e o aludido seminário: “Canalhas! Canalhas! Emboscando crianças nas escolas! Canalhas mil vezes! Não queiram estimular crianças, os filhos de vocês aqui, que ganham um salário mínimo, a receber uma carta de material homoafetivo nas escolas!”, berrava Bolsonaro em discussão na Câmara.[16] Há de se considerar que as reações radicais ao Projeto Brasil sem homofobia vieram dias após a aprovação da união entre pessoas do mesmo sexo pelo STF (VITAL; LOPES, 2013). Essa decisão funciona como uma fagulha no conflito moral, constantemente alimentado pelos reacionários que buscavam provocar sua erupção, de modo a canalizá-lo como energia política e forma de governo.

Toda essa movimentação de imagens de ódio aos sujeitos cis-hétero-dissidentes foi responsável por um momento muito importante do cis-hétero-bolsonarismo, a eleição do pastor neopentecostal Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara em 2013. Mais tarde, essa mobilização reacionária cristã conquistou a presidência da Câmara com a eleição de Eduardo Cunha (PMDB), o que sinaliza o gerenciamento de uma correlação de força favorável ao fortalecimento do cis-hétero-bolsonarismo. Devemos lembrar que, desde 2010, durante as eleições presidenciais, houve uma radical moralização da política. O candidato José Serra, do PSDB, fez uma campanha baseada na ameaça que a vitória de Dilma Rousseff representaria para os segmentos religiosos,[17] a ponto de a candidata ter divulgado uma “carta aberta ao povo de Deus”[18] se comprometendo em não avançar, em seu governo, temas morais. Aqui já podemos notar a força que este setores conservadores e reacionários já possuíam. Se, durante as eleições de 2002, Lula “precisou” divulgar “carta ao povo brasileiro” para garantir ao mercado financeiro que não faria avançar debates contra os interesses das oligarquias econômicas, garantindo, com isso, seu governo; Dilma e, mais tarde Haddad,[19] fizeram circular carta contra as dissidências sexuais e de gênero. Agora, eram as igrejas e os grupos reacionários que supostamente garantiriam o governo petista.

Com Cunha, o cis-hétero-bolsonarismo se fortaleceu. Para tanto, ainda que a presidenta Dilma não significasse uma ameaça real aos seus interesses, foi preciso golpeá-la, de modo a abrir caminho para sua consolidação, em franca expansão desde 2010 com as composições cada vez mais conservadoras do Congresso Nacional. Evidentemente, o golpe foi contra os LGBT+, contra os indígenas, contra os negros, contra as populações periféricas, ribeirinhas, camponesas, contra as mulheres, afinal uma das primeiras medidas do governo golpista foi dissolver o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos.

Michel Temer, o golpista, viria a ser o abre alas do cis-hétero-bolsonarismo radical. Passados dois anos, Bolsonaro serviu perfeitamente ao cis-hétero-bolsonarismo. Por meio de sua imagem, chancelou-se a logorreia anti-dissidência sexo-gendrada. O fascismo, em sua nova configuração ne(cr)oliberal, saiu do armário. O inimigo a se combater, necessário à sua re-emergência, foi produzido com sucesso. Afinal, como alertou Foucault, com o desenvolvimento do neoliberalismo, a guerra tornou-se evidentemente uma forma de governo. A partir dessa chancela, os fascistas puderam afirmar sem medo que os LGBT+ significam uma ameaça real à família e à sociedade. Sendo um incômodo, apelam por sua contenção ou eliminação.

Dessa forma, compreendo o cis-hétero-bolsonarismo como um tribalismo reacionário. Isso porque é baseado em um forte sentimento de pertencer a um grupo. Se antes, o desejo fascista precisava se esconder, com a consolidação do cis-hétero-bolsonarismo criou-se o respaldo do bando: “outros como eu desejam a aniquilação dessas monstruosidades”, de modo a legitimar o que antes estava recalcado pela vergonha. Desavergonhado, o fascismo bolsonarista produz o terror como orgulho. Assim, longe de manipular, isto é, criar falsas identificações ou identificações provisórias e precárias, busca conduzir, ampliar e intensificar o ódio, mobilizando identificações latentes, a fim de alimentar o fascismo cotidiano, tirando-o do armário: “[…] o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora” (FOUCAULT, 2004, online).[20]

O cis-hétero-bolsonarismo serve à chancela e à legitimação do ódio que não ousava se dizer em público, mas que agora é vociferado, pois junta-se a outras vozes. Por isso, a voz é um fenômeno singular para o fascismo de bando ou tribalismo reacionário. É por ela que o sentimento de pertencimento se fortalece e a vergonha é destruída, mostrando ao fascista recalcado que há vozes como a dele. Vociferações do terror.

Portanto, na lógica bolsonarista, dizer “Brasil tem que deixar de ser país de maricas”[21] significa que é preciso reforçar e equipar ainda mais os mecanismos de eliminação das vidas bichas. No contexto, Bolsonaro criticava as medidas contra a pandemia, que considera exageradas e prejudiciais à economia. Um dos muitos efeitos desse discurso é responsabilizar os LGBT+ pelos efeitos da pandemia. Se não há mais espaço para falar que o vírus seria uma punição divina aos “pecadores nefandos”, responsabiliza-os pela suposta fragilidade do brasileiro que não seria mais capaz de suportar uma “gripezinha”, uma vez que ficou muito sensível. Claro, sensibilidade é coisa de bichas. Se o brasileiro teme morrer é porque se deixou contaminar pela frescura. Macho que é macho não temeria a morte, muito menos um vírus. Se não se permitisse contaminar com a viadagem, não haveria isolamento social, todos estariam trabalhando e a economia estaria salva. Se não está, a culpa é da frescura bicha que corrompeu a masculinidade viril do brasileiro. Por isso, para o Brasil se salvar, há apenas um caminho: “deixar de ser maricas”, expurgando a frescura das bichas.

Pelo método da redução do discurso-ocorrência pelo discurso do descritor, segundo o qual, após a análise de diversas ocorrências, o descritor reescreve tais funcionamentos enunciativos e/ou visíveis em sequências novas, teríamos:

Os LGBT+ são uma ameaça social

O Brasil precisa conter e eliminar a ameaça LGBT+

A eliminação da ameaça LGBT+ nos fará um país forte

Não somos fortes porque estamos contaminados pelo estilo de vida LGBT+

Os LGBT+ nos fizeram fracos

Assim, tais enunciados se convertem em licença para matar (ainda mais) viados, sapatas, trans, travestis… Essa é a economia libidinal do cis-hétero-bolsonarismo, cada vez mais presente em nosso cotidiano, a exemplo da agressão sofrida por um jovem homossexual, numa padaria em São Paulo, em 22 de novembro. Ao entrar no estabelecimento, o jovem passa a ouvir insultos homofóbicos e racistas de uma mulher identificada como Lidiane Biezok, que chega a agredi-lo fisicamente. Em uma das falas, Lidiane diz: “Eu não estou falando porra nenhuma. Isso aqui é uma padaria gay?”, visivelmente transtornada e ofendida pela mera presença daquele corpo-bicha efeminado.[22] Para os fascistas, Lidiane age como uma soldada patriota, livrando o país da ameaça cor-de-rosa. Ela supostamente teria ouvido o chamado à “insurreição” reacionária.

Precisamos nos haver com o doloroso fato de que o cis-hétero-bolsonarismo faz sentido e é desejado por uma parcela complexa e heterogênea da população. Não devemos idealizá-la ou homogeneizá-la, muito menos supor a sua natural “ignorância”. Funcionamentos ideológicos que implicitamente responsabilizam as camadas mais pobres – lidas como ignorantes, portanto, facilmente enganadas – pela sustentação do fascismo bolsonarista, o que acaba minorando o apoio massivo das classes médias e altas (intelectualizadas). As “massas” podem desejar o fascismo. Só precisam da chancela do bando. Isso não é propaganda. Muito menos manipulação.

Rick Afonso-Rocha é uma bicha nordestina: doutoranda e mestra pelo PPGL: Linguagens e Representações, da Universidade Estadual de Santa Cruz (PPGL/UESC). Bolsista da FAPESB. Integrante do grupo de pesquisa “O Espaço Biográfico no Horizonte da Literatura Homoerótica” (GPBIOH), do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais da UFRPE (NuQueer) e do Grupo de Pesquisa Estudos Literários Contemporâneos: Fontes da Literatura de Jornal da UEFS. Colaboradora do Grupo de Estudos Discursivos em Arte e Design (NEDAD/UFPR), do Grupo de Estudos Discursivos da UESC (GED) e do blog Resista! Observatório de Resistências Plurais.

[1] COELHO, Leandro. Bolsonarismo ressuscitou o integralismo, dizem autores de livro sobre o tema. Ponte, 18 de agosto de 2020. Disponível: <https://ponte.org/equiparar-integralismo-ao-fascismo-ou-nazismo-e-equivocado-dizem-autores-de-livro-sobre-o-tema/>.

[2] BASSIL, Noah; POURHAMZAVI, Karim; BAYARRI, Gabriel. A questão fascista: Bolsonaro e seu cesarismo quimérico. Outras Palavras, 17 de novembro de 2020. Disponível em: <https://outraspalavras.net/direita-assanhada/a-questao-fascista-bolsonaro-e-seu-cesarismo-quimerico/>.

[3] STANLEY, J. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM, 2018.

[4] TIBURI, M. Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo. Rio de Janeiro: Record, 2020.

[5] DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. São. Paulo: Editora 34, 2010.

[6] Sobre o conceito de gnose, bem como sua diferença em relação ao teoricismo epistêmico, ver TIGRE, Maiane Pires; RODRIGUES, Inara. Gnoseologias do Sul: Poder-Saber-Ser em Ponciá Vicêncio. Boitata, v. 12, n. 23, p. 115-129, 2017.

[7] Por deimopolítica, tomo o paradigma de governamento que tem como dinâmica o gerenciamento do medo sob a estratégia de produção de determinadas corporalidades como ameaças sociais. Esse paradigma cria a fantasia da sociedade ameaçada, exposta aos perigos, de modo a reforçar tanto a necessidade quanto a justificação da autoridade como única defesa do “cidadão de bem”. A deimopolítica mobiliza, assim, a esperança no Estado e na ordem capitalística. Uso a metáfora de Deimos, deus grego do pânico (Δεῖμος), irmão gêmeo e companheiro de luta de Fobos, o deus do medo (φόβος), para designar esse funcionamento político de gerenciamento do medo.

[8] A respeito do conceito de sequestração, vide FOUCAULT, M. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972 -1973). Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

[9] Penso que o cis-hétero-bolsonarismo se estrutura num complexo sistema com variadas dimensões. Por isso, quando falo em uma lógica bolsonarista, aponto para a forma de pensamento que visa a condicionar as operações intelectuais de modo a produzir a negação de qualquer diferença, reduzindo a existência outra à ameaça biológica. Ainda, poderíamos pôr em jogo uma gramática, semântica, ética, política, estética e metafísica bolsonaristas.

[10] Em 2005, o reverendo norte-americano Louis P. Sheldon lançou o livro “The agenda”, no qual buscava denunciar a suposta estratégia dos militantes LGBT+ para “dominar” a sociedade. Embora o livro só tenha sido traduzido para português em 2012, desde 2005 suas ideias circulam entre líderes religiosos. No Brasil, recebeu o título de A estratégia: o plano dos homossexuais para transformar a sociedade.  Em um trecho, afirma-se: “Fica mais do que evidente agora que não são apenas os terroristas estrangeiros que temos de temer hoje. Os radicais mais perigosos que ameaçam nosso estilo de vida são aqueles que vivem entre nós. Eles já têm posições privilegiadas no governo, nos tribunais, em nossas escolas e faculdades e até mesmo no mundo dos negócios; e você pode ter certeza de que eles nos destruirão se não tomarmos medidas para derrotar o movimento radical deles agora.” (2012, p. 6).

[11] CHAGAS, Tiago. ‘Aprovação do PL122 abre precedente para a proteção ao crime de pedofilia’, diz pastor Marco Feliciano, entenda. Notícias Gospel, 18 de novembro de 2013. Disponível em: <https://noticias.gospelmais.com.br/plc-122-precedente-protecao-pedofilia-marco-feliciano-62608.html>.

[12] CASTRO, Gabriel. Religiosos entregam 1 milhão de assinaturas contra projeto que criminaliza homofobia. Veja, 01 de junho de 2011. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/religiosos-entregam-1-milhao-de-assinaturas-contra-projeto-que-criminaliza-homofobia/>.

[13] ÉBOLI, Evandro. Governo retira do plano de direitos humanos pontos que desagradam a Igreja e militares. O globo, 01 de novembro de 2011. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/governo-retira-do-plano-de-direitos-humanos-pontos-que-desagradaram-igreja-militares-3008788>.

[14] O historiador que previu Bolsonaro. Canal no Youtube Meteoro Brasil, 17 de agosto de 2020. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=mRwbWwGZsHo&t=4s>.

[15] REDAÇÃO Veja. Citado por Bolsonaro na Globo, ‘Seminário LGBT Infantil’ nunca ocorreu. Veja, 29 de agosto de 2018. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/citado-por-bolsonaro-na-globo-seminario-lgbt-infantil-nunca-ocorreu/>.

[16] REDAÇÃO G1. Discussão sobre ‘cura gay’ opõe deputados em audiência na Câmara. G1, 18 de junho de 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/06/discussao-sobre-cura-gay-opoe-deputados-em-audiencia-na-camara.html>.

[17] PIERUCCI, Antônio Flávio. Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo religioso. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 89, p. 6-15, 2011.

[18] AZEVEDO, Reinaldo. Dilma divulga, acreditem, uma “Carta ao povo de Deus”. Veja, 23 de gosto de 2010. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/dilma-divulga-acreditem-uma-8220-carta-ao-povo-de-deus-8221/>.

[19] SADDI, Andréia. Haddad escreve carta a evangélicos para conter avanço de Bolsonaro entre religiosos. G1, 16 de outubro de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2018/10/16/haddad-escreve-carta-a-evangelicos-para-tentar-conter-avanco-de-bolsonaro-entre-religiosos.ghtml>.

[20] FOUCAULT, Michel. Por uma vida não fascista. Organização Coletivo Sabotagem. Edição Virtual, 2004.

[21] REDAÇÃO Uol Notícias. “País de maricas”: Bolsonaro mistura homofobia e indecência, diz imprensa internacional. Uol notícias, 11 de novembro de 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2020/11/11/com-pais-de-maricas-bolsonaro-mistura-homofobia-e-indecencia-diz-imprensa-internacional.htm>.

[22] DEHÒ, Maurício. Mulher agride jovem em ataque homofóbico em padaria de SP. Uol notícias, 22 de novembro de 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/11/22/jovem-e-agredido-por-mulher-em-ataque-homofobico-em-padaria-de-sp.htm>.


Envie seu Comentário

comments