Decisão da ministra Carmen Lúcia atende ao governo do Amazonas, que defende a construção de polêmico porto privado na área
Na imagem acima, barco da Marinha com a comitiva do Vice-Presidente da República, Hamilton Mourão, passa pelo Encontro das Águas. (Foto:Agência Brasil)
Por Leanderson Lima e Elaíze Farias, da Amazônia Real
Manaus (AM) – Tombado em 2010 como patrimônio cultural e natural, o Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões ganha um novo capítulo na briga judicial que envolve os governos estadual e federal, o Ministério Público Federal e a empresa Lajes Logística S/A. No dia 19 de dezembro a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia suspendeu por 60 dias as ações que questionam e pedem a homologação do tombamento do maior cartão postal do turismo internacional na região.
Com a decisão, o Supremo Tribunal Federal (STF) espera que o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), o Ministério Público Federal, o governo do Amazonas e a empresa Lajes Logística, interessados na exploração comercial do patrimônio cultural e natural, cheguem a uma chamada “conciliação”.
Na decisão, tornada pública em 22 de janeiro, a ministra do STF Carmen Lúcia aceitou os argumentos do governo do Amazonas, que pedia mais tempo para a “conciliação de agendas e realização de reunião entre os interessados (grupos empresariais, autarquias federais e Ministério Público Federal), com o objetivo de alcançar um acordo que garanta o desenvolvimento sustentável da região”. Essa conciliação não prevê a participação da sociedade civil, especialmente os grupos sociais e ambientais que se mobilizaram pelo tombamento.
O governo do Amazonas, desde o princípio interessado em explorar comercialmente o Encontro das Águas, desistiu de contestar o tombamento de 2010. À primeira vista, aparenta ser uma boa notícia para os ambientalistas. Mas não se considerar que o Iphan já concedeu licença prévia à Lajes Logística e o Ipaam tem se mostrado favorável à construção do Terminal Portuário das Lajes, conforme a Amazônia Real revelou em 2019. A empresa Lajes é ligada ao Grupo Simões, dono da franquia da Coca-Cola na Amazônia e possui fábricas de refrigerante e é representante da cerveja Heineken Brasil, e também à empresa Juma Participações SM.
Desde 2008, a Lajes Logísticas sinalizou com planos para construir um porto privado em uma das localidades mais emblemáticas da natureza amazônica. O projeto prevê um porto para descarga de insumos para o Polo Industrial de Manaus (PIM). As embarcações, que chegam a atingir 40 metros de altura, comprometeriam o cenário paradisíaco que promove o encontro dos rios Negro e Solimões e causariam impacto no ecossistema da região.
Certo de que o Porto das Lajes vai sair, o governo de Wilson Lima (PSC) apenas aguarda um posicionamento do MPF sobre quais propostas o órgão vai apresentar como alternativa de proteção do Encontro das Águas, com uma espécie de mitigação dos impactos. Uma das ideias cogitadas é a criação de uma unidade de conservação que proteja ambientalmente a área, segundo apurou a reportagem.
À Amazônia Real, o procurador do Estado Daniel Viegas, que atua na área ambiental da PGE, disse que, neste novo entendimento, o estado do Amazonas considera o “tombamento relevante” e que todos [governo estadual e empresários] concordam com a permanência dele.
“Agora o Estado precisa se reunir e discutir [com o MPF] a ação que pede a criação de unidade de conservação ambiental, que é objeto de uma das ações judiciais para definir o regramento de utilização desse local. Além da beleza cênica, é o encontro de dois ecossistemas bem distintos e tem grande importância para as comunidades do entorno”, disse Viegas.
Decisão do STF causa apreensão
A decisão da ministra Carmen Lúcia, do STF, causou apreensão aos ativistas do SOS Encontro das Águas, movimento social e ambiental que há mais de 10 anos luta pela homologação do tombamento.
“O governo precisa sentar com a sociedade e não com os empresários. O empresário que apresente seu projeto, e lá [na Justiça] se decide se o projeto é viável naquela região. Eles querem conversar ou este prazo é só para esconder o que eles já decidiram?”, protesta o educador Valter Calheiros.
Uma conciliação, na visão de Calheiros, é uma forma estranha de debater uma questão tão polêmica. “Se eles vão sentar para fazer acordo, eles já estão dizendo que vão sentar para efetivar a construção do porto”, alerta o Calheiros, um dos coordenadores do SOS Encontro das Águas.
O tombamento do Encontro das Águas é resultado de uma mobilização histórica da sociedade civil, ambientalistas, ribeirinhos, moradores do bairro Colônia Antônio Aleixo, na zona Leste de Manaus, cientistas e juristas. Com a perspectiva da construção de um porto na área, esses grupos recorreram ao MPF e à Justiça Federal, em 2009, para obrigar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a reconhecer o Encontro das Águas como patrimônio cultural e natural. O reconhecimento ocorreu em 2010, mas mais de uma década depois o tombamento ainda não foi homologado.
Pelo tombamento do Encontro das Águas, foi garantida a proteção dos 10 quilômetros contínuos das águas escuras do rio Negro e as barrentas do Solimões, que não se misturam, além dos 30 quilômetros quadrados do seu entorno. As águas percorrem os municípios de Manaus, Careiro da Várzea e Iranduba, no Amazonas.
Como uma pedreira no Pão de Açúcar
Durante a 65ª reunião do Iphan, que aconteceu entre 4 e 5 de novembro de 2010, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, o órgão reconheceu a importância do tombamento com base em “um diversificado conjunto de insumos – as designadas dimensões geomorfológicas, geológica-paleobiológica e de biodiversidade – que explicam aquilo que o olhar registra como a imagem do Encontro das Águas – a dimensão cênica –, ao qual se poderiam associar as dimensões culturais expressas nos sítios arqueológicos identificados e nas expressões etnográficas reconhecidas nas práticas e tradições das populações ribeirinhas”.
“Quando foi discutido o tombamento escrevi o parecer recomendando o tombamento pelo Iphan. Fazer esse Porto das Lajes seria mais ou menos o equivalente a construir uma pedreira no Pão de Açúcar, ou fazer uma barragem nas Cataratas do Iguaçu, um absurdo. A gente tem que ficar de olho, ver o que vai acontecer, e fazer muita pressão porque, como disse o ministro Ricardo Salles, agora é a hora de ‘passar a boiada’”, aponta o professor-doutor da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Góes Neves, referência em história e pesquisa arqueológica na Amazônia Central e no entorno de Manaus.
O termo “passar a boiada” se tornou público quando o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu, em reunião ministerial de 22 de abril de 2020, que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) aproveitasse a crise com a pandemia do novo coronavírus para flexibilizar as legislações ambientais. Na ocasião, organizações como Observatório do Clima, pediram o afastamento do ministro “por tramar contra a própria pasta”. Ele permanece desde então.
Relator do processo de tombamento do Encontro das Águas no Conselho Consultivo do Iphan, em novembro de 2010, Eduardo Góes Neves alerta para o momento turbulento vivido pelo Amazonas, no “olho do furacão”, por conta da pandemia. É nesse momento de emergência que facilidades são vendidas como soluções mágicas para problemas complexos, destacou ele.
“Se você olhar agora, o Brasil fala de Manaus o dia inteiro por causa da pandemia. É a questão de acesso às vacinas, remédios… O pessoal está usando a pandemia para dizer: ‘Tem que asfaltar [a BR-319] de uma vez’. Existe, sim, essa situação, que é muito ruim, muito difícil, tem gente que pode usar agora para dizer: ‘Manaus precisa desse porto’. Tem gente que vai se aproveitar para tentar empurrar essa obra goela abaixo”, pontua Neves.
Governador defende empreendimento
O pedido de conciliação por parte do governo do Amazonas foi enviado em 23 de setembro de 2020 ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Apesar de destacar que o Encontro das Águas é um “fenômeno natural que possui importância científica e ambiental incalculável”, o governador Wilson Lima defende enfaticamente empreendimentos na área. Diz ele, no documento: “Entretanto, o transporte hidroviário e a necessidade de implementação de novos empreendimentos econômicos não podem ser impedidos sem que ao menos se verifique a possibilidade de adequação dos mesmos com os mais rigorosos parâmetros ambientais e culturais que o fenômeno natural exige”.
No documento enviado a Aras, o governo do Amazonas não detalha os termos da proposta. Procurada, a PGR não respondeu à reportagem sobre que propostas foram apresentadas pelo governo do Amazonas e qual a resposta dada ao pedido de conciliação. Como o processo tramita no STF, o caso é acompanhamento pelos sub-procuradores gerais da República.
A proposta de “conciliação” é a desistência do governo do Amazonas da Ação Civil Originária (ACO) número 2514, que tramita no STF e pede a nulidade do tombamento. A contrapartida exigida pelo governo estadual seria que o MPF do Amazonas desistisse das ACOs números 2512 e a 2513. A decisão da ministra Carmen Lúcia paralisou essas três ACOs.
A ACO 2512 é uma peça originada de uma ação civil pública da 7ª Vara Federal movida pelo MPF contra a União, Icmbio, Iphan, Antaq, Ipaam, Lajes Logística S/A, Log-In Logísticas Itermodal S/A e Juma Participações S/A. Ela tem como objetivo o reconhecimento judicial do valor histórico, cultural estético, paleontológico, geológico e paisagístico do “Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões” e inseri-lo no regime “espaço especialmente protegido”.
Já a ACO 2513, movida pelo MPF e pelo Ministério Público Estadual contra o Iphan e a empresa Lajes Logística S/A , quer obrigar o Ipaam a exigir da empresa Lajes Logística a apresentação de estudos complementares ao Eia/Rima e paralisar o processo de licenciamento ambiental do Porto das Lajes.
Governadores defendem porto privado
No ano de 2014, o ex-governador do Estado, e atual senador Omar Aziz (PSD) ingressou na Justiça com uma ACO 2514, no STF, contra a União e o Iphan, pedindo a anulação do tombamento a favor da Lajes Logística.
À Amazônia Real, Valter Calheiros relembra a pressão política ao longo desses anos para anular o tombamento do Encontro das Águas. “Temos que lembrar que, dos nossos políticos, nenhum levanta a bandeira contra a construção do porto, mesmo sabendo de toda a importância daquela região, nenhum tem coragem de se levantar (contra). Vários governadores, deputados, senadores, são todos a favor porque são financiados por esses grupos empresariais que estão por trás do porto”, diz Calheiros.
Para o arqueólogo Eduardo Góes Neves, a grande questão é o lugar onde querem instalar um porto. “Eu entendo que Manaus precisa de um porto mais organizado. O porto do roadway é muito pequeno, e o porto do Passarão (Chibatão) é meio improvisado. Tem que ter um porto de fato bem montado, organizado, mas no Encontro das Águas? Não dá para ser em outro lugar? Não tem outro lugar para fazer esse porto?”, questiona.
O geógrafo e ambientalista Carlos Durigan destaca a relevância não apenas cultural e paisagística do Encontro das Águas, mas a riqueza ecológica que se encontra nas águas negra e barrenta que cercam Manaus. Durigan afirma que existe uma proposta de um grupo de pesquisadores do qual ele faz parte de se criar um grande mosaico de proteção no local e que deverá ser apresentado aos órgãos estaduais do Amazonas.
“A gente já fez alguns trabalhos ali [Encontro das Águas] e aquele local é a maior área de reprodução de peixes de água doce da Amazônia, provavelmente. Talvez até do planeta. Essas áreas são muito importantes para a reprodução de várias espécies de peixes, e a maioria dessas espécies de peixes é importante para a alimentação das pessoas”, afirmou.
Segundo Durigan, o ciclo de desovas do peixe abrange uma área estimada de 100 mil hectares, que vai até o município de Itacoatiara, a Ilha do Careiro, considerado um super berçário de peixes, até o Encontro das Águas. “Tem o projeto do porto, mas não dá para fazer da forma como eles querem. Não podem fazer de qualquer jeito”, alerta o geógrafo.
Órgãos públicos não esclarecem
A Amazônia Real procurou o MPF no Amazonas e o procurador da República Leonardo Galiano, que responde pelo ofício de Meio Ambiente, mas não obteve respostas sobre qual o posicionamento do órgão diante do acordo proposto pelo governo do Amazonas. Como as ações tramitam no STF, o processo é acompanhado pela Quarta Câmara (Meio Ambiente) da Procuradoria Geral da República (PGR), que também não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O Iphan, procurado repetidas vezes pela Amazônia Real para esclarecer sobre os critérios que levaram o órgão a conceder a licença prévia ao porto e a informar a delimitação do empreendimento no perímetro da área tombada, não se pronunciou. A superintendente do órgão no Amazonas, Karla Bittar, também não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
A assessoria jurídica da Lajes Logística S/A também foi procurada, mas não retornou ao pedido de informações solicitado.