Quase todo mundo algum dia já cantou uma das dezenas de marchinhas do Kelly, até as crianças e os adolescentes de hoje.
por Rogério Marques, no GGN
Muita gente não sabe que o autor das famosas marchinhas é um dos responsáveis pelo primeiro grande show de transexuais no Brasil, que lançou a atriz Rogéria.
Neste ano sem Carnaval não temos o povo cantando nas ruas, por causa da pandemia, mas temos entre nós, saudável e produzindo, aos 82 anos, aquele que é um dos grandes animadores da festa há mais de meio século: João Roberto Kelly, o Rei das Marchinhas.
Quase todo mundo algum dia já cantou uma das dezenas de marchinhas do Kelly, até as crianças e os adolescentes de hoje. Essas marchinhas são obrigatórias nos blocos e bailes de clubes desde o meu tempo de menino que já vai bem longe. Marchinhas como “Cabeleira do Zezé” (parceria com Roberto Faissal), “Joga a chave meu amor” (com J. Ruy), “Colombina Ye Ye Ye” (com David Nasser), “Mulata Ye Ye Ye” (mais conhecida como “Mulata Bossa Nova”) e tantas outras que até hoje estão entre as mais cantadas, em todo Carnaval.
Os mais jovens não sabem que esse mesmo João Roberto Kelly antes da fase carnavalesca teve uma outra, igualmente de sucesso, quando ajudou a lançar grandes artistas como Elza Soares, com a música “Boato”. Teve também composições que se eternizaram nas vozes de Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Cauby Peixoto, Emílio Santiago, Ciro Monteiro, Alcione. Duas músicas de Kelly foram gravadas por Elis Regina, ainda adolescente, no início da carreira.
A partir de 1964 as marchinhas de João Roberto Kelly conquistaram definitivamente os blocos carnavalescos e os salões de bailes. Essas marchinhas são crônicas de uma época. O famoso Zezé da cabeleira era garçom de um bar em Copacabana que se vestia num estilo modernoso para a época e acabou virando amigo do Kelly. A mulata bossa nova é Vera Lúcia Couto, primeira mulher negra a participar de um concurso de Miss Brasil. Eleita Miss Estado da Guanabara, Vera Lúcia enfrentou preconceitos até na passarela, na hora do desfile, é bom lembrar.
Além de grande artista, João Roberto Kelly sempre foi um homem simples e, acima de tudo, generoso. Nasceu em uma família da classe média, filho do professor, jornalista, crítico de arte Celso Kelly e neto do ministro do STF Octavio Kelly. Chegou a se formar em Direito, mas na faculdade o amor pela música já havia traçado seus caminhos.
Eu gostaria de lembrar aqui um episódio da vida de João Roberto Kelly que muitos desconhecem. Ele foi um dos responsáveis pelo primeiro grande espetáculo de transexuais do Brasil, Les Girls. Este show lançou para uma carreira de sucesso a atriz Rogéria (1943-2017), que nasceu Astolfo Barroso Pinto.
Foi em 1964, ano do golpe militar. Kelly trabalhava na TV Rio, em Copacabana, na equipe responsável pelos musicais. Astolfo era então um jovem maquiador da emissora, que naquela época estava, aos poucos, se transformando em Rogéria.
Um dia Astolfo pediu ao Kelly para fazer as músicas de um show que ele estava preparando com um grupo de amigos, ou amigas. Um musical como aqueles da TV Rio, com um elenco só de travestis. Kelly concordou e fez todas as músicas do musical Les Girls, sem cobrar nada por isso.
O show estreou na boate Sótão, da famosa Galeria Alaska, em Copacabana. Era uma galeria com algumas boates gays, hoje substituídas por igrejas neopentecostais. Les Girls fez tanto sucesso que, durante anos, o elenco se apresentou em várias cidades brasileiras e também em Buenos Aires. Com o tempo, outras atrizes transexuais em começo de carreira foram se incorporando ao elenco, como Jane Di Castro (1947-2020), que também ficou famosa como atriz e cantora.
João Roberto Kelly diz que um dos grandes orgulhos de sua carreira profissional foi ter feito todas as músicas de Les Girls. Mas lembra que enfrentou preconceitos, naquele tempo muito mais preconceituoso do que atualmente.
O compositor conta que um dia foi chamado para uma conversa por um diretor da TV Rio que já não está mais entre nós, e ouviu dele: “Pensa bem, você tem um bom emprego aqui e vai se meter em show de viados?” Kelly respondeu: “Vou sim. Os meninos têm talento e isso já está decidido.”
Assim é o Kelly, que mesmo na quarentena da pandemia, nesses tempos difíceis, continua produzindo em casa, e se cuidando, se preparando para 2022.
Este ano o Brasil não tem Carnaval, mas tem João Roberto Kelly, o grande artista que há mais de 50 anos é um dos responsáveis pela animação da maior festa popular brasileira.
(Foto: Marcos Michael – 05/01/2018)
Neste ano sem Carnaval não temos o povo cantando nas ruas, por causa da pandemia, mas temos entre nós, saudável e produzindo, aos 82 anos, aquele que é um dos grandes animadores da festa há mais de meio século: João Roberto Kelly, o Rei das Marchinhas.