Conjur, por Por Caio Ferrari de Castro Melo – A BR-319 é uma rodovia federal que liga Amazonas e Porto Velho e foi construída durante a ditadura militar brasileira. Ao longo da década de 1980, a rodovia entrou em um processo de degradação que levou à perda da sua cobertura asfáltica em grandes trechos de sua extensão. Isso fez com que ela se tornasse completamente intrafegável por veículos durante o período de chuvas e de tráfego muito difícil no restante do tempo.
Desde o início dos anos 2000, os mais diferentes governos tentaram viabilizar a repavimentação da rodovia, mas não foram capazes de cumprir as regras ambientais necessárias. Isso fez com que, até o momento, e provavelmente por mais algum tempo, uma grande parte da rodovia não tenha sido pavimentada e sequer tenha a licença ambiental prévia.
Ao contrário do que se poderia pensar, os problemas jurídicos envolvendo a BR-319 não se dão entre particulares e órgãos públicos, mas, sim, entre representantes do próprio poder público, mais especificamente DNIT, de um lado, e Ibama e Ministério Público Federal (MPF), de outro. A análise do licenciamento ambiental da rodovia, que tem perdurado por cerca de 20 anos, revela a incapacidade do próprio Estado de planejar adequadamente as suas ações e cumprir as regras criadas por si próprio.
A incapacidade do DNIT de respeitar regras de direito ambiental como, por exemplo, a regra de competência do Ibama para realizar licenciamento ambiental de rodovias federais, levou à judicialização do caso. Isso acarretou a suspensão do procedimento de licenciamento ambiental corrente até então e da contratação de estudos e obras de engenharia pretendidas. É isso o que ocorreu perante a 2º Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas na ação civil pública nº 0005716-70.2005.4.01.3200.
Em 2007, as disputas entre DNIT e Ibama a respeito da necessidade de licenciamento ambiental da rodovia pareciam ter chegado ao fim. Foi assinado um termo de acordo e compromisso (TAC) determinando as obrigações de cada parte em prol da regularização ambiental do empreendimento. Em razão dos diferentes estágios de conservação e obras de diferentes trechos da rodovia, ela foi dividida à época em três segmentos:
— Segmento A: de Manaus à travessia do Rio Tupunã (km 0 a 177,8);
— Segmento B: do entroncamento da BR-230(A) ao início da travessia do Rio Madeira (km 655,7 a 877,4);
— Segmento C: da travessia do Rio Tupunã ao fim das obras (km 166,7 a 250).
Além desses três segmentos, o TAC se refere, por fim, a um quarto segmento, o trecho entre os quilômetros 250 a 655,7, comumente chamado de “trecho do meio”.
Com relação aos dois primeiros segmentos (A e B), acordou-se que o DNIT estaria autorizado pelo Ibama ao prosseguimento das obras, excetuadas exploração de jazidas, “bota-fora”, construção de canteiros, acessos e remoção de vegetação e outras atividades que necessitem de autorizações específicas.
Com relação ao “trecho do meio”, foi acordado que a continuidade de obras de pavimentação/reconstrução seria condicionada ao licenciamento ambiental ordinário da rodovia pelo Ibama, somente dando-se continuidade a essas obras após a atestação da viabilidade ambiental do empreendimento e posterior emissão da devida licença de instalação.
Por fim, com relação a terceiro segmento, ficou determinado que o DNIT somente daria prosseguimento às obras que tivessem por objetivo a finalização da pavimentação/reconstrução e instalação/substituição de obras-de-arte, bem como mitigação dos impactos ambientais já ocorridos, recuperação de áreas degradadas e controle de prevenção de processos erosivos ou de assoreamento de cursos d’água nos locais com intervenções.
Contudo, o que parecia, a princípio, o fim de uma disputa se revelou objeto de mais litigiosidade. DNIT e MPF começaram a disputar a interpretação do TAC em relação ao segmento C. Após discussão judicial no TRF-1, ficou decidido que deverá ser sempre exigido o licenciamento ambiental para obras que aumentem a capacidade da rodovia.
Já em fase de cumprimento de sentença, corrente na 1º Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas, o MPF pediu decisão liminar para suspensão do edital RDC Eletrônico nº 216/2020, o qual objetivou a contratação integrada de empresa para elaboração dos projetos básico e executivo de engenharia e execução das obras para pavimentação e reconstrução do segmento C da Rodovia BR-319.
Segundo o órgão ministerial, essa contratação não seria apenas a finalização da pavimentação/reconstrução a que se refere o TAC, mas, sim, novas obras que caracterizariam “aumento da capacidade” da rodovia, vez que entende que o TAC tratou obras de pavimentação/reconstrução como sinônimos de aumento de capacidade. Para o MPF, a prova de que não se trataria da finalização autorizada pelo TAC é que o RDC Eletrônico nº 216/2020 contrata novos projetos básicos e executivos de engenharia.
Contudo, o juízo decidiu nos termos do que foi argumentado pelo DNIT: a nova contratação apenas estaria dando continuidade às obras do segmento C da BR-319, não ensejando qualquer aumento de capacidade, uma vez que não são previstas obras de construção de terceiras faixas ou de duplicação de via.
Não satisfeito com a decisão, o MPF interpôs embargos de declaração e agravo de instrumento. Nos embargos, foi questionada a distribuição do cumprimento de sentença à 1º Vara Cível e não à 7º Vara Ambiental e Agrária, que entende ser a vara competente para processar o cumprimento de sentença. No Agravo de Instrumento nº 1029927-28.2020.4.01.0000, pediu a reforma da sentença para que seja suspenso liminarmente o RDC Eletrônico nº 216/2020 e seja declarada a 7º Vara Ambiental e Agrária como a competente para processar o cumprimento de sentença e, ao final, seja anulado o referido RDC e remetidos os autos à 7º Vara.
Os embargos de declaração já foram conhecidos e rejeitados pelo juízo da 1º Vara Cível. A decisão julgou que o artigo 2º, §2º, do Provimento COGER nº 52/2010 disciplina a questão. Essa normativa determina a não redistribuição de processos no caso de criação de novas varas para processos já sentenciados. Assim, tendo em vista que a ação foi sentenciada em 29/8/2009 e que a 7º Vara Ambiental e Agrária foi instalada em 28/6/2010, não caberia a redistribuição do cumprimento de sentença para a nova vara especializada.
O agravo de instrumento interposto pelo MPF ainda não foi julgado. Será enfrentada novamente a questão preliminar da competência e a questão de mérito sobre a suspensão e anulação da contratação pública de projetos e obras de engenharia. No mérito, as chances de sucesso do recurso do MPF são baixas. Isso se deve a três motivos: 1) pesam contra o MPF o conteúdo do próprio RDC, o qual não prevê obras típicas de aumento de capacidade como a duplicação de via, por exemplo; 2) há uma carta aberta assinada pelo próprio MPF que reconhece a inexistência de óbices à pavimentação e reconstrução do segmento C e 3) há um ofício do Ibama afirmando que não vê nenhum óbice à nova contratação.
Após o julgamento do agravo de instrumento, é possível que cesse a discussão jurídica a respeito do segmento C. No entanto, é certo, os desafios jurídicos envolvendo a BR-319 não irão desaparecer. Há, ainda, grandes chances de mais judicialização envolvendo o licenciamento ambiental do “trecho do meio”, notadamente em relação ao direito à consulta de povos indígenas e das comunidades tradicionais.