Funai e Ibama abrem espaço para agronegócio entrar em terra indígena

Funai e Ibama abrem espaço para agronegócio entrar em terra indígena

Instrução normativa diz que associações com produtores não índios podem ter licenciamento liberado por indígenas; tema é de competência do Congresso

André Borges, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O Ibama e a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicaram uma instrução normativa conjunta nesta quarta-feira, 24, que abre espaço para a produção agrícola no interior de terras indígenas, e não apenas pelos índios, mas também por meio de associações com outros produtores não indígenas. Pela nova regra, só fica proibido o arrendamento puro e simples, ou seja, o aluguel da terra indígena para os produtores de fora.  

Com a medida, governo Jair Bolsonaro avança, aos poucos, em sua pauta de explorar o interior das terras indígenas, apesar de o tema ser de competência do Legislativo, por exigir regulamentações previstas na Constituição Federal. 

A instrução prevê que o processo de licenciamento ambiental das produções poderá ser feito pelos “próprios indígenas usufrutuários por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas ou diretamente via comunidade indígena”. 

Segundo os órgãos que assinam a instrução, há “necessidade de construção de um normativo específico para estabelecer um rito específico entre Ibama e Funai para o licenciamento ambiental das atividades desenvolvidas pelos próprios indígenas, de forma isolada ou associativa”. 

O regramento prevê que a Funai terá 30 dias para manifestar em relação à legitimidade do empreendedor para propor o licenciamento ambiental dentro da terra indígena, prazo prorrogável pelo Ibama por até mais dez dias. O Ibama, ao verificar se a atividade ou o empreendimento é potencialmente causador de degradação significativa ao meio ambiente, definirá quais estudos ambientais serão exigidos.  

O secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cleber César Buzatto, critica a decisão. “Consideramos que a Instrução Normativa em questão é uma armadilha do governo Bolsonaro contra os povos indígenas do Brasil, por permitir a exploração das terras indígenas por parte de pessoas alheias às terras e aos povos, favorecendo o alastramento dos interesses do agronegócio no interior das terras indígenas e o consequente aprisionamento destas a um modelo exploratório insustentável ambiental e socialmente”, disse à reportagem. 

Buzatto, que é advogado, também vê inconstitucionalidade no ato. “Avaliamos como inconstitucional a Instrução Normativa Conjunta, uma vez que ela ataca frontalmente e desrespeita o direito ao usufruto exclusivo dos povos indígenas relativamente às suas terras tradicionais.” 

A proibição legal de se explorar terras indígenas demarcadas não tem impedido que produtores fechem acordos com aldeias espalhadas por todo o País, avançando com o plantio de grãos e criação de gado sobre essas terras. Em dezembro de 2018, o Estadão fez um levantamento sobre as terras indígenas que eram alvos desse tipo de atividade irregular

Segundo dados fornecidos à época pela Funai, por meio da Lei de Acesso à Informação, havia ao menos 22 terras indígenas do País com trechos arrendados para produtores, o que continua a ser proibido, mesmo pela nova instrução. 

As negociações clandestinas entre produtores e indígenas incluem desde o pagamento de mensalidades para os índios, até a divisão da produção colhida ou vendida. Nessas 22 terras, havia mais de 48 mil índios convivendo com a exploração ilegal do solo. A área total arrendada aos produtores externos chegava a 3,1 milhões de hectares, um território equivalente a mais de cinco vezes o tamanho do Distrito Federal.

É no Tocantins que se encontra o maior caso dessas irregularidades. Na Ilha do Bananal, maior ilha fluvial do planeta, formada pelos rios Araguaia e Tocantins, lideranças de quase 4 mil indígenas de diversas etnias recebem mesadas para abrir suas terras a criadores de gado de corte. As margens da ilha de 1,3 milhão de hectares são cobiçadas pela qualidade do pasto, por conta do fluxo dos rios. 

A região Sul do País é a que mais concentra as explorações ilegais. Das 22 terras indígenas com atividades irregulares, sete ficam no Rio Grande do Sul e uma no Paraná. 

Em fevereiro de 2019, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, fizeram uma visita à Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti-Paresis, Nambikwara e Manoki, no Mato Grosso. Salles, que usou cocar e apareceu em vídeo dançando com os índios, escreveu, na ocasião, que os índios “plantam e produzem com muita competência, demonstrando que podem se integrar ao agro sem perder suas origens e tradições”.  

Avaliação positiva

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que integra mais de 260 deputados, disse à reportagem que é favorável à instrução normativa. “A medida trata de licenciamento ambiental para atividades realizadas em terra já demarcadas e homologadas em busca da autossuficiência dos povos, com sustentabilidade e garantindo a dignidade da comunidade”, declarou. 

Segundo a FPA, “a norma vem para regulamentar uma prática já adotada, como exemplo de alguns casos realizados no Mato Grosso, com anuência do Ministério Público Federal”.  

A simplificação do processo de licenciamento ambiental, segundo a Frente, é “pauta prioritária” e a instrução “vai ao encontro das necessidades já identificadas no setor agropecuário brasileiro, bem como para as terras indígenas, de forma que garanta segurança jurídica ao processo de licenciamento”.  

A produção agrícola indígena, declarou a bancada ruralista, tem o “objetivo de garantir acesso à renda, tecnologia e assistência técnica aos produtores indígenas no país e a possibilidade desses mesmos indígenas explorarem economicamente suas terras com atividades como agricultura e pecuária”. 

Questionada sobre a legalidade de seu ato com o Ibama, a Funai declarou que “não coaduna com qualquer conduta ilícita”.

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