O coronavírus acelera alguns males de nosso tempo. As videoconferências não trazem a felicidade do contato direto, desaparecem os rituais e os espaços comuns. O pensador sul-coreano escreve para o EL PAÍS um ensaio em que nos convida a aproveitar a crise para uma revisão radical do nosso modo de vida.
El País, BYUNG-CHUL HAN22
O vírus SARS-CoV-2 é um espelho que reflete as crises de nossa sociedade. Faz com que os sintomas das doenças que nossa sociedade sofria antes da pandemia se destaquem com ainda mais força. Um desses sintomas é o cansaço. De uma forma ou de outra, todos nos sentimos hoje muito cansados e extenuados. É um cansaço fundamental, que acompanha de forma permanente e em toda a parte a nossa vida como se fosse a nossa própria sombra. Durante a pandemia, nos sentimos até mais esgotados ainda do que de costume. Até a inatividade a que o confinamento nos obriga nos causa fadiga. Não é a ociosidade, mas o cansaço, que impera em tempos de pandemia.
Em meu ensaio Sociedade do cansaço, publicado pela primeira vez há 10 anos, descrevi a fadiga como uma doença da sociedade neoliberal do rendimento. Nós nos exploramos voluntária e apaixonadamente, acreditando que estamos nos realizando. O que nos esgota não é uma coerção externa, mas o imperativo interno de ter que render cada vez mais. Nós nos matamos para nos realizarmos e nos otimizarmos, nos esmagamos à base de ter um bom desempenho e fazer uma boa imagem.
Na sociedade neoliberal do rendimento ocorre uma exploração sem autoridade. O sujeito forçado a render, a explorar a si mesmo, é ao mesmo tempo senhor e escravo. Por assim dizer, cada um carrega consigo seu próprio campo de trabalhos forçados. O que é peculiar neste campo de trabalhos forçados é que a pessoa é ao mesmo tempo prisioneira e vigia, vítima e criminosa. Nisso difere do sujeito obediente da sociedade disciplinar, que Foucault descreve em seu livro Vigiar e punir. Mas Foucault não se deu conta do surgimento da sociedade neoliberal do rendimento, na qual nos exploramos voluntariamente.
O que caracteriza o sujeito desta sociedade, que quando forçado a render explora a si mesmo, é o sentimento de liberdade. Explorar a si mesmo é mais eficaz do que ser explorado por outros, porque envolve a sensação de liberdade. Kafka já expressara com muita exatidão essa liberdade paradoxal do servo que se acredita amo. Um de seus aforismos diz: “O animal arranca o chicote do dono e chicoteia a si mesmo para ser amo, sem saber que isso nada mais é do que uma fantasia gerada quando na correia do chicote do amo se formou um novo nó”. Esse animal que açoita a si mesmo encarna o sujeito forçado a render e que, explorando a si mesmo, se imagina livre.
O sinistro sobre o SARS-CoV-2 é que os contagiados padecem de extremo esgotamento e abatimento. Além disso, cada vez mais se ouvem casos de pacientes que, mesmo depois de curados, continuam sofrendo graves sequelas. Uma delas é a síndrome da fadiga, que pode muito bem ser descrita com a frase quando a bateria não recarrega mais. As pessoas afetadas não são mais capazes de render nem de trabalhar. É difícil para elas até mesmo encher um copo de água. Quando caminham têm que parar constantemente, porque se sentem sufocadas. Sentem-se cadáveres vivos. Um paciente explica: “É como quando o celular só tem 4% de bateria sobrando e com esses 4% você tem que aguentar o dia todo, sem poder recarregá-lo”.
Enquanto isso, o vírus não esgota apenas os infectados, mas também os saudáveis. Em seu ensaio Pandemia: a covid-19 e a reinvenção do comunismo, Slavoj Žižek dedica um capítulo inteiro à questão “Por que estamos sempre cansados?”. Nesse capítulo, Žižek analisa em detalhes meu ensaio Sociedade do cansaço, que ele descreve de forma muito lisonjeira como uma “obra-prima”, e ao qual faz uma objeção ao dizer que não é que a exploração por outros tenha dado lugar à autoexploração, mas que se terceirizou para os países do Terceiro Mundo. Concordo com Žižek. Isto é o que acontece. Sociedade do cansaço descreve a sociedade neoliberal do Ocidente e não os trabalhadores das fábricas chinesas. Estes eu não diagnosticaria como autoexploração. Mas, por outro lado, o que eu chamaria de mentalidade neoliberal também se propaga no Terceiro Mundo por meio das redes sociais. Também aí os homens se isolam e se tornam narcisistas. Como todos os demais, assimilam o mantra neoliberal: quem fracassa, o faz por sua culpa. Acusam a si mesmos e não à sociedade. Em maior ou menor grau, as redes sociais fazem de cada um de nós um produtor, um empresário de si mesmo. Globalizam o estilo de vida neoliberal.
Žižek não analisa esse cansaço fundamental, que não afeta mais apenas a sociedade ocidental, como também parece representar um fenômeno global. Claro, a fadiga não vem só da pressão interna, mas também da pressão externa; não só a autoexploração esgota, também a exploração por outros. As condições mundiais de produção, a própria pressão para crescer e produzir extenua a todos nós. Há, no entanto, uma passagem em que Žižek parece se entusiasmar com a minha tese de autoexploração, quando escreve: “[Pessoas que trabalham à distância] parecem arranjar ainda mais tempo para ‘explorar a si mesmas’”. Assim, em tempos de pandemia, o campo neoliberal de trabalhos forçados é chamado de teletrabalho.
O home office também cansa, ainda mais do que trabalhar no escritório. Causa tanto cansaço principalmente porque carece de rituais e estruturas temporárias fixas. É esgotante trabalhar sozinho, passar o dia todo sentado de pijama na frente da tela do computador. Também ficamos exaustos com a falta de contatos sociais, a falta de abraços e de contato corporal com os outros. Meu livro Do desaparecimento dos rituaisfoi publicado na Alemanha antes da pandemia. Nele descrevo nosso presente a partir da tese do desaparecimento dos rituais. Hoje estamos perdendo as estruturas temporárias fixas, inclusive as arquiteturas temporárias, que dão estabilidade à vida. Além disso, os rituais geram uma comunidade sem comunicação, enquanto o que predomina hoje é a comunicação sem comunidade. A mídia social e a permanente encenação do ego nos esgotam porque destroem o tecido social e a comunidade.
Também aqui se confirma de novo a tese de que o vírus é o espelho da sociedade e agrava suas crises. O vírus acelera o desaparecimento dos rituais e a erosão da comunidade. Mesmo aqueles rituais que ainda restavam são eliminados, como ir ao futebol ou a um show, sair para comer em um restaurante, ir ao teatro ou ao cinema. A distância social destrói o social. O outro se tornou um potencial portador do vírus, do qual devo manter distância. O vírus radicaliza essa expulsão do diferente que antes mesmo da pandemia diagnostiquei muitas vezes. Na verdade, o vírus atua como um amplificador das crises de nossa sociedade. Todas as crises sociais que eu já havia detectado agora se agravaram.
Também nos esgotamos com as livespermanentes, que nos transformam em videozumbis. Acima de tudo, elas nos obrigam a nos olharmos o tempo todo no espelho. É cansativo contemplar a própria cara na tela, estamos o tempo todo diante de nossa própria cara. Não deixa de ser uma ironia que o vírus tenha surgido justamente na época das selfies, que se explicam sobretudo por esse narcisismo que se espalha pela nossa sociedade. O vírus potencializa o narcisismo. Durante a pandemia todo mundo se confronta, sobretudo, com a própria cara. Diante da tela fazemos uma espécie de selfie permanente.
O videonarcisismo tem efeitos colaterais absurdos: desencadeou um boom nas cirurgias estéticas. Ver uma imagem distorcida ou borrada na tela faz com que as pessoas duvidem da própria aparência. Quando a tela tem boa definição, de repente percebemos rugas, queda progressiva de cabelo, manchas na pele, bolsas lacrimais ou outras alterações cutâneas pouco estéticas. Durante a pandemia, as pesquisas relacionadas a operações estéticas se multiplicaram no Google. Em tempos de confinamento, os cirurgiões plásticos ficam sobrecarregados com a demanda por intervenções para eliminar os sinais de fadiga. Enquanto isso, já se fala em videodismorfobia. O espelho digital faz com que as pessoas caiam em dismorfofobias, ou seja, prestem atenção
exagerada a possíveis defeitos na aparência corporal.
O vírus radicaliza o delírio da otimização, que antes mesmo da pandemia nos deixava frenéticos. Também nisso o vírus é o espelho da nossa sociedade e, no caso da videodismorfobia, não só no sentido metafórico, como também no sentido mais literal: um espelho que faz com que nos desesperemos ainda mais com a própria aparência. Também a videodismorfobia nos cansa muito. É um fenômeno derivado da distopia digital.
O governo alemão tem enfatizado repetidamente que a pandemia finalmente deu à digitalização o impulso necessário, que libertou o país de seu vergonhoso atraso digital. Quando se trata de digitalização, a Alemanha é de fato um país líder do Terceiro Mundo, o que, pessoalmente, não me incomoda. Adoraria morar em uma área sem cobertura de internet e me dedicar à jardinagem. Para mim seria uma maravilha. Em meu livro Louvor da terra conto como me sinto feliz por passar um tempo no jardim, alheio ao paroxismo da comunicação digital. Agora, graças à pandemia, a Alemanha finalmente está entrando no primeiro mundo. Alguém poderia dizer que a digitalização é hoje um fim em si mesma. Afinal, já sabemos que os políticos não gostam de pensar. Eles também não estão interessados em saber o que é uma vida boa. Aparentemente, sua máxima suprema é o crescimento. Na realidade, deveriam estar muito preocupados com o fato de que a digitalização mina as bases da democracia com as notícias falsas, os bots nas redes sociais ou os exércitos de trolls.