“Eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época.” Assim começa a mensagem alusiva ao 31 de março de 1964 assinada pelo novo ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, que assumiu o posto nesta semana após divergências entre seu antecessor e o presidente Jair Bolsonaro sobre o papel político das Forças Armadas.
Na BBC
Ao longo de pouco mais de 2 mil palavras, Braga Netto cita o cenário geopolítico polarizado na Guerra Fria, que em suas palavras representava uma “ameaça real à paz e à democracia” do país. Ele afirma que o movimento militar de 1964 que derrubou o governo eleito de João Goulart “é parte da trajetória histórica do Brasil” e “assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”.
Em 2019, Bolsonaro gerou forte reação ao determinar a celebração do golpe que instaurou uma ditadura no país, e o caso se transformou em uma disputa judicial. Dois anos depois, a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e dos chefes do Exército, Aeronáutica e Marinha, e a nota de Braga Netto dão novos contornos à participação ativa dos militares na política nacional.
Fiadores da candidatura de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, os militares deram força ao sentimento antipetista e antipolítica naquele pleito, apontam analistas. Vitoriosos, eles ocuparam a vice-presidência, ministérios estratégicos (inclusive com generais da ativa) e milhares de cargos comissionados no governo federal.
Em 2021, a pressão pública crescente sobre Bolsonaro por causa do agravamento da pandemia de coronavírus, que mata quase 4 mil pessoas por dia no Brasil e impacta duramente a economia, ampliou a cobrança do presidente por um posicionamento político mais ostensivo e mais alinhado das Forças Armadas.
Um episódio simbólico da divergência ocorreu em maio de 2020, quando Bolsonaro tentou apertar a mão de Edson Pujol, então comandante do Exército, e este lhe ofereceu o cotovelo, seguindo orientações internacionais para evitar a transmissão do vírus.
O gesto teria irritado o presidente. Enquanto Bolsonaro minimizava o coronavírus como uma “gripezinha”, Pujol afirmava que a pandemia “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.
Um dos principais pontos desse embate que culminou na demissão de Pujol e outros três colegas está entre cumprir políticas de governo ou políticas de Estado. Mas o que costuma atrair mais holofotes na imprensa é a defesa da ditadura militar por parte de bolsonaristas, com citações ao AI-5 (ato de dezembro de 1968 que fechou o Congresso e cassou liberdades individuais), negação de assassinatos e torturas e exaltações ao golpe militar de 31 de março de 1964, chamado de revolução ou movimento pelos militares.
O que foi o golpe de 1964?
A “ameaça comunista” e a suposta iminência de um golpe de Estado da esquerda costumam ser apontadas como justificativa tanto para a derrubada de Jango quanto para a instituição do AI-5.
Em 2019, a BBC News Brasil revelou que o governo Bolsonaro enviou um telegrama à Organização das Nações Unidas (ONU) afirmando que os 21 anos de governos militares foram necessários “para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria”.
E acrescentou: “As principais agências de notícias nacionais da época pediram uma intervenção militar para enfrentar a ameaça crescente da agitação comunista no país.”
Braga Netto, em sua mensagem sobre o 31 de março de 1964, afirma que “os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964”.
Segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, os militares brasileiros enxergavam que a ameaça à ordem vigente vinha de “inimigos internos” que supostamente poderiam implantar o “comunismo no país pela via revolucionária, através da ‘subversão’ da ordem existente – daí serem chamados pelos militares de ‘subversivos’.”
O exemplo mais próximo que reforçava essa tese era Cuba.
Em 2004, o ex-senador e ex-ministro da ditadura, Jarbas Passarinho, afirmou em entrevista à BBC News Brasil que o golpe militar de 1964 se tornou imperativo, na avaliação dele, pela presença à época de supostos guerrilheiros atuando em território brasileiro, encorajados pelo sucesso dos comunistas na China, na União Soviética e em Cuba, e pela insubordinação militar com o motim dos sargentos, em 1963 em Brasília, e dos marinheiros, em 1964 no Rio de Janeiro.
“Todo mundo tinha medo da ameaça comunista.”
A restauração da disciplina e da hierarquia das Forças Armadas é apontada pelo CPDOC como outra justificativa para o golpe militar.
Mas especialistas apontam que esse risco era praticamente inexistente à época, tanto pelo fato de que João Goulart não era comunista quanto pela fragmentação dos movimentos de esquerda e da falta de apoio popular massivo à época.
A própria falta de reação massiva contra o início do regime militar reforça esse diagnóstico.
Em seu livro “Em Guarda contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)”, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, mostra que o anticomunismo “não passou de engodo para justificar a intervenção”, e que a retórica golpista passava mais por antipopulismo e antirreformismo.
A exemplo das reformas de base propostas por João Goulart, que passavam por mudanças profundas em áreas como a bancária e as universidades e principalmente por uma ampla reforma agrária via desapropriação de terras com título da dívida pública.
Mas as propostas enfrentaram forte resistência dos setores mais conservadores da sociedade e não avançaram no Congresso, apesar do apoio de diversas categorias.
A mesma ameaça de “perigo vermelho” foi usada quatro anos depois como justificativa para o endurecimento do aparelho repressivo da ditadura, por meio do AI-5. Isso reverbera até hoje no bolsonarismo.
Em outubro de 2019, um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), disse que, caso a esquerda “se radicalize”, “vamos precisar ter uma resposta”, que, segundo ele, “pode ser via um novo AI-5”.
Mas o principal “inimigo” do regime já era outro.
Documentos e depoimentos da época mostram, dizem estudiosos, que o ato autoritário de 1968 foi uma forma de a ditadura militar controlar não só a oposição de esquerda ou os comunistas, mas os setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que, quatro anos depois, estavam ficando descontentes com o governo, como a Igreja Católica, a imprensa, o Poder Judiciário e líderes políticos.
“Muita gente tinha apoiado o golpe, imaginando que seria uma coisa de curto prazo. Mas aí os partidos políticos foram dissolvidos, a eleição para presidente foi indireta, a grande imprensa, que havia apoiado o golpe, começou a ser censurada… Você tinha um quadro de insatisfação muito ampliado”, disse o historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador de História Contemporânea na UFF (Universidade Federal Fluminense), à BBC News Brasil em 2019.
Segundo Aarão Reis, os grupos da luta armada contra a ditadura eram poucos, pequenos, não tinham apoio popular e não apresentavam uma ameaça real ao regime.
Para Sá Motta, da UFMG, a ditadura já possuía os meios suficientes para reprimir a resistência da esquerda, e não precisaria ampliar seus poderes com o AI-5. Mas ela não tinha ainda “eram meios suficientes para enquadrar e disciplinar segmentos rebeldes da própria elite situados em lugares estratégicos, como o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a imprensa”.
O regime militar no Brasil durou de 1964 a 1985 e o período mais duro do regime, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, foi de 1969 a 1974.
Segundo relatório da Comissão da Verdade, durante os 20 anos de duração da ditadura no Brasil, 424 pessoas morreram ou desapareceram. Foi identificado também, por exemplo, que o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares.
As práticas violentas contra dissidentes brasileiros também constam em documentos entregues pelos Estados Unidos ao Brasil em 2014, com relatórios que detalhavam informações de 1967 a 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.
Anistia
Braga Netto, novo ministro da Defesa, cita em seu texto sobre o 31 de março de 1964 a Lei da Anistia, que foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1979 e, segundo ele, “consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia. Foi uma transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo”.
A Lei da Anistia, que perdoou crimes políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a ditadura, é um ponto-chave em embates entre militares e alguns setores da sociedade civil desde a redemocratização em 1985.
Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) moveu uma ação para tentar derrubar a lei, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mantê-la.
A postura do Brasil em relação à Lei da Anistia já foi condenada pela ONU e outros organismos internacionais e contrasta com a de vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai. Nesses países, a Justiça tem condenado agentes de Estado por acusações de homicídios, torturas e sequestros ocorridos durante regimes militares.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reacendeu o debate sobre a Lei da Anistia, mas a legislação tampouco foi modificada. Para que torturadores possam ir ao banco dos réus, é preciso que o STF modifique sua interpretação da lei de 2010 ou que o Congresso altere a redação.
Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade apontou 377 agentes públicos responsáveis pela repressão política durante a ditadura, e mesmo sem força para punições conseguiu gerar uma forte reação entre militares.
Os trabalhos da comissão são tidos como um dos diversos elementos que levaram o segmento a atuar politicamente em massa contra o PT e, por extensão, a fazer parte da candidatura e do governo Bolsonaro.
Desde o pleito de 2018, parte do comando das Forças Armadas repete publicamente que segue a Constituição, afasta qualquer risco de recuo democrático, critica a politização dos quartéis e reitera agir como instituição do Estado brasileiro, e não de um governo.
“A Marinha, o Exército e a Força Aérea acompanham as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a Pátria, garantir os Poderes constitucionais, e seguros de que a harmonia e o equilíbrio entre esses Poderes preservarão a paz e a estabilidade em nosso País”, conclui Braga Netto.