Um levantamento obtido com exclusividade por ‘CartaCapital’ detalha os efeitos catastróficos da interferência do ministro.
Carta Capital
Das tantas frases chocantes pronunciadas naquela memorável reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, uma conquistou um lugar definitivo no panteão da vergonha nacional. No momento em que o Brasil se debatia com a crise da pandemia, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, viu uma oportunidade. “É passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação… Enquanto estamos nesse momento de tranquilidade porque só em fala em Covid e ir passando a boiada… Ir mudando todo o regramento.”
Muita água rolou debaixo dessa ponte neste um ano. Personagens daquele encontro saíram escorraçados do governo, outros acabaram desmentidos pelos fatos ou não entregaram o que prometeram. O escândalo das acusações do então ministro Sergio Moro de interferência de Jair Bolsonaro na Polícia Federal, motivo da liberação da íntegra da reunião pelo Supremo Tribunal Federal, restou abafado. Só um vaticínio prosperou. “Passar a boiada” tornou-se uma marca registrada do governo, símbolo de “tudo que está aí”. E uma das poucas ameaças cumpridas em Brasília. Nos últimos 12 meses, Salles, o verdadeiro “superministro”, passou de fato a boiada. Foram 721 medidas. No conjunto entram 76 reformas institucionais, 36 medidas de desestatização, 36 revisões de regras, 34 de flexibilização, 22 de desregulação e 20 revogaços, segundo o monitor Política Por Inteiro. De acordo com o monitor, os números referem-se a normas editadas por diferentes órgãos do governo federal e que são relevantes para a política de clima e meio ambiente brasileira.
O desmonte da fiscalização, do orçamento e das normas na área ambiental teve como consequência, entre outras, um aumento de 216% no desmatamento, que atingiu a marca recorde de 810 quilômetros quadrados, o avanço do garimpo sobre terras indígenas e 12% de aumento nos focos de incêndio. Uma devastação incentivada por militares aboletados em cargos de confiança no setor antes destinado a técnicos. Um levantamento obtido com com exclusividade por CartaCapital detalha os efeitos catastróficos da interferência de Salles. Elaborado pela Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Meio Ambiente (Ascema), o documento intitulado “Dossiê: Uma Tragédia Anunciada”, será será entregue nos próximos dias aos presidentes dos demais poderes da República e a representantes da embaixada dos Estados Unidos, uma forma de expor à sociedade brasileira e ao mundo os crimes ambientais do governo. “A Amazônia está sob ataque orquestrado de mineradores, grileiros, exploradores de madeira e pecuaristas ilegais, muitas vezes coordenados ou apoiados por personalidades e organizações políticas municipais, estaduais e nacionais”, ressalta o documento, cuja primeira versão foi enviada ao papa Francisco no fim do ano passado.
O dossiê enumera uma sequência de medidas contrárias às melhores práticas ambientais, entre elas um despacho que anistiou desmatadores da Mata Atlântica. O parecer foi aprovado a pedido da Confederação Nacional da Agricultura e Agropecuária do Brasil e de pecuaristas do Sul do País, e reúne grandes apoiadores e financiadores de Bolsonaro. Poucos dias antes desse despacho, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, havia liberado a exportação de madeira nativa, medida que contraria um laudo assinado por cinco técnicos de carreira do instituto. O presidente da Funai, por sua vez, publicou no ano passado a Instrução Normativa 9, para autorizar a certificação de propriedades privadas em terras indígenas não homologadas. A instrução permite até a compra e venda de terrenos nessas áreas. Atualmente, o Brasil tem 237 TIs em processo de homologação. Outro boi a passar foi a Instrução Normativa que transfere a prerrogativa de licenciamento ambiental nas comunidades quilombolas ao Incra.
Como se sabe, o instituto é presidido por Nabhan Garcia, ex-dirigente da União Democrática Ruralista e maior defensor da aprovação do PL 2633, de legalização da grilagem.
Os servidores denunciam ainda um processo de militarização crescente dos órgão.
Entre PMs e oficiais da Forças Armadas, há mais de uma centena instalada em cargos no Instituto Chico Mendes, o ICMBio, na Funai e no Ibama, entre outros. A Funai, mostra o levantamento, é o órgão mais aparelhado pelos fardados. São 33 prepostos militares, contra 25 no Ibama e 23 no ICMBio. A sinecura contempla até PMs da Rota paulista, conhecida por sua violência no patrulhamento das ruas e não por pendores ambientalistas. A maioria dos indicados veio de São Paulo, estado onde Salles iniciou sua carreira política no antigo PFL e onde foi condenado em primeira instância e depois absolvido pelo Tribunal de Justiça por fraudar mapas ambientais em favor de interesses empresariais.
O Brasil, aliás, deve a ascensão do ministro ao tucanato. Salles foi secretário de Meio Ambiente do governador Geraldo Alckmin. Seu absoluto descompromisso com a preservação despertou a atenção de Bolsonaro, que o premiou com o cargo na Esplanada dos ministérios.
“A substituição de servidores de carreira por militares das Forças Armadas ou policiais militares (inexperientes, porém obedientes), demonstram a intencionalidade do enfraquecimento da área ambiental na atual gestão”, registram os servidores no dossiê. “Os militares ocupam, na maioria das vezes, vagas destinadas a geógrafos, biólogos, engenheiros ambientais e florestais”, afirma Denis Rivas, presidente da Ascema. “Existe uma estratégia em curso em todo o governo, mas é central na pasta ambiental: enfraquecer os órgãos de fiscalização e substituir especialistas e profissionais de carreira por militares. É a mesma linha da catastrófica operação de Mourão que termina agora dia 30. Foram gastos 410 milhões de reais para colocar militares na Amazônia e o resultado foi o aumento do desmatamento.”
Enquanto sobram militares, faltam técnicos e especialistas. O ICMBio tem 1,5 mil vagas abertas e sem previsão de concurso público. No Ibama, o déficit passa de 2,5 mil postos, o que confirma o sucateamento da fiscalização. “Com o Ibama parcialmente fora de combate, o Exército a sair da Amazônia, o ministro Salles desautorizando a Polícia Federal, o madeireiro ilegal olha para o lado e não vê empecilho para colocar seus investimentos criminosos para funcionar na região. O governo montou uma situação para diminuir a fiscalização e perseguir os fiscais. É uma conjunção de fatores a favor do crime”, denuncia o ambientalista Márcio Astrini, diretor do Observatório do Clima. Para não deixar pedra sobre pedra, o ministério terá o menor orçamento em duas décadas, 2 bilhões de reais. Um dia depois de prometer, na Cúpula do Clima, organizada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, empenho nas questões ambientais – sem que, claro, ninguém tenha acreditado –, Bolsonaro cortou 240 milhões de reais adicionais dos órgãos de fiscalização.
Os relatos de servidores descrevem a completa inversão da lógica na política ambiental sob o comando de Salles. Protetores e fiscais do meio ambiente são perseguidos (quadro à página 16), ao passo que criminosos têm aval para atuar. No âmbito legal e administrativo, o ministro só pensa naquilo, afrouxar as regras do setor. Salles chegou ao ponto de barrar ações de combate a crimes ambientais. Ao menos duas operações foram obstruídas ou paralisadas pessoalmente pelo ministro, na área em que seriam realizadas. Uma envolvia o garimpo ilegal na paraense Jacareacanga, outra foi abortada por uma canetada que desfez a maior apreensão de madeira ilegal da história do País. Por conta dessa decisão, ele é alvo de uma queixa-crime em tramitação no Supremo Tribunal Federal. No caso de Jacareacanga, um avião da Força Aérea Brasileira destinado ao combate ao garimpo, ação coordenada pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, transportou garimpeiros ilegais até Brasília para uma reunião com Salles. O inquérito corre em segredo de Justiça no Ministério Público do Pará.
A apreensão da madeira ilegal ganhou, no entanto, os holofotes depois que o delegado Alexandre Saraiva foi exonerado da Superintendência da Polícia Federal no Amazonas, logo após apresentar a queixa-crime contra Salles. A ministra Cármen Lúcia encaminhou a denúncia à Procuradoria-Geral da República e incluiu na peça um pedido do PDT para apurar a conduta do titular do Meio Ambiente. No Congresso, a oposição recolhe assinaturas para instalar uma CPI a partir das informações concedidas por Saraiva em uma audiência realizada na Comissão de Assuntos Legislativos na segunda-feira 26 e outras denúncias apresentadas desde 2019. Em nota, o Ministério do Meio Ambiente afirmou que “os deputados deixaram claro na audiência a falta de
de imparcialidade e de fundamento das posições do delegado, que segue em busca de holofotes”.
A queixa-crime inclui documentos fraudados por Salles para “legalizar” a apreensão de 43,7 mil toras, carga equivalente a 200 mil metros cúbicos e avaliada em 129 milhões de reais. “Ocorre que (Salles) não ficou só no discurso. Ele foi até a área, fez uma pseudoperícia de 40 mil toras, olhou duas delas e disse que conferiu, que em princípio estava tudo certinho, que as pessoas apresentaram escrituras.
Uma semana depois voltou lá e disse que as pessoas apresentariam a documentação necessária”, relatou Saraiva na audiência. O ministro estabeleceu o prazo de uma semana para a perícia dos documentos. Concluído o trabalho, constataram-se fraudes que
permitiram a grilagem de terras para a extração de madeira, inclusive em áreas de proteção ambiental.
Segundo a queixa, os documentos possuem vícios de origem, a começar pela ausência de CPF dos “donos” primários das terras, como Nelson da Cunha e Décio de Souza, que parecem não existir, mas teriam trocado 600 e 850 hectares de terras no Pará com terceiros. Foram apresentados documentos de apenas dez supostos titulares de terras, embora a extração tenha sido interceptada em 40 pontos diferentes. “Os documentos adiante demonstram de forma clara o ardil para documentar a terra ‘doada’ pelo Estado sem licitação e sem obedecer aos requisitos legais”, descreve a denúncia apresentada ao STF.
Salles, afirma o delegado, buscou colocar em dúvida a Operação Handroanthus e legitimar o crime. As afirmações do ministro comprovariam sua atuação como “advogado de defesa” da organização criminosa. Ele chegou a declarar que recebeu dos proprietários das terras os documentos e que o gesto “não era atitude de criminosos”. “Se a ação da Polícia Federal estava errada, por que ninguém apareceu para reivindicar 70% da madeira apreendida?”, pergunta o delegado. Uma das empresas flagradas pela operação acumula uma dívida de 9 milhões de reais em multas ambientais. Depois de uma nova visita ao local da apreensão, em 7 de abril, Salles fez uma série de postagens nas redes sociais e defendeu os madeireiros em entrevistas: “Há gente séria fazendo o trabalho direito. Não é correto demonizar todo o setor madeireiro. É preciso identificar os criminosos e puni-los duramente, mas sem generalizar”.
O ministro é acusado de dificultar a ação fiscalizadora do poder público, exercer advocacia administrativa e integrar uma organização criminosa. Outros denunciados são Eduardo Bim, presidente do Ibama, e o senador Telmário Mota, do PROS de Roraima.
“O Ibama, desde o início da operação, manteve-se inerte, desinteressado em exercer seus poderes de polícia ambiental, o que desperta a existência de interesses escusos, provavelmente a mando do ministro do Meio Ambiente”, descreve a denúncia. Mota
teria usado sua influência política para conter a fiscalização. O senador recorre ao mesmo argumento do “viés ideológico” para desqualificar o trabalho do delegado.
Velho conhecido dos fiscais, Mota assina o projeto de lei que retira o direito dos fiscais do Ibama e do ICMBio de portar armas. Proposta semelhante foi apresentada em 2013 pelo então deputado Jair Bolsonaro. O parlamentar também foi alvo de ação penal por maus-tratos de animais. É um entusiasta das rinhas de galo e seus vídeos em eventos do tipo estão disponíveis em canais na internet. Não bastasse, o senador é investigado por desviar verbas de combate à Covid-19 em Roraima, em parceria com o colega licenciado Chico Rodrigues, do DEM, preso com maços de dinheiro na cueca.
Em nota, a assessoria de Mota refuta a acusação “leviana e mentirosa vinda de uma pessoa com clara intenção de autopromoção”, nega intimidade com o ministro, mas confirma a participação em uma reunião com Salles, os senadores Mecias de Jesus,
Zequinha Marinho e Jorginho Melo e a deputada Carla Zambelli. E diz ter acionado o Ministério Público e a Corregedoria da Polícia Federal contra Saraiva.
Faltou combinar com os russos. Na manhã da terça-feira 27, Salles, em entrevista à Rádio CBN, confirmou ter atuado em favor das madeireiras a pedido dos senadores. “Depois fomos procurados pelo senador Telmário Mota, porque os seus eleitores lá no estado de Roraima também foram objeto de fiscalização. Fomos procurados pelo senador Zequinha Marinho e Mecias de Jesus, ou seja, eu estou lhe falando de quatro senadores. Para além disso, três deputados federais”, declarou, sem revelar os nomes dos demais parlamentares. Segundo Saraiva, “o senhor ministro fez uma inversão e tornou legítimo o ato dos criminosos e não o do agente público”.
Defender criminosos resume o que Salles e o governo entendem por política ambiental. O efeito imediato é queimar os últimos gravetos de credibilidade internacional e expor o País ao ridículo.
A longo prazo, significa tornar o Brasil um grande deserto, em todos os sentidos.
Os fiscais do meio ambiente estão acostumados com ameaças. O trabalho em campo é um risco constante, por conta da violência dos criminosos nas fronteiras extremas do País. Desde o fim da ditadura, os servidores públicos não eram, porém, intimidados de maneira tão direta e agressiva pelos próprios superiores. CartaCapital reuniu denúncias de funcionários impedidos de exercer seu trabalho. Para manter a segurança dos envolvidos, os nomes foram alterados ou suprimidos.
Um deles, Júlio, afirma ter sido ameaçado por dois superiores do ICMBio, instituto criado para preservar a biodiversidade. Os coronéis Homero Cerqueira, ex-presidente, e César Lorencini, o atual, pressionaram o servidor a se calar sobre os crimes de Salles.
“Me chamaram em uma unidade no Rio de Janeiro e os dois estavam na sala para minha surpresa. Quando me apresentei, eles pediram para falarmos em particular e aí perguntaram: ‘Vocês vão mesmo denunciar o presidente à ONU?’ Eu afirmei que sim.
E a cartinha que vocês enviaram ao Maia? Esperam o que com isso? Relatei que o ministro nunca quis nos receber, então não tínhamos a quem recorrer.” Segundo Júlio, concluídas as perguntas, Cerqueira e Lorencini informaram que “Salles sabia que eles estariam atuando contra ele durante o teletrabalho” e por isso o programa seria extinto.
Outro caso envolve um fiscal que atuava em um parque no Piauí. Após apreender armas de caçadores ilegais, o servidor foi levado por dois militares até a capital e foi liberado. As armas acabaram devolvidas aos caçadores.
Um caso notório foi a exoneração de fiscais do Ibama despachada por Salles após solicitação de Bolsonaro. O presidente não teria gostado de uma operação contra grileiros na Amazônia.
Um grupo de 12 procuradores pediu à Justiça Federal em Brasília o afastamento imediato do ministro por interferir no Ibama para beneficiar desmatadores. Em nota, Salles acusou o Ministério Público de atuar com viés ideológico. “O encadeamento temporal dos eventos – que inclui as ações de comando e controle com destruição de maquinário, sua publicização em rede nacional, a exoneração dos agentes públicos encarregados do planejamento e execução das ações E o inconformismo do presidente, confirmando posição que ele havia externado anteriormente – comprova bem tal circunstância”, registraram os procuradores.
Segundo os servidores, o ápice do desmonte da fiscalização aconteceu neste ano com a publicação da Instrução Normativa conjunta do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama e do ICMBio, em 12 de abril. A medida levou à paralisação durante dias das atividades dos órgãos. “Entendemos que a instrução é uma tentativa de esvaziar o trabalho e intimidar ainda mais os servidores.
O fiscal que fizer seu trabalho corre o risco de responder a processos administrativos”, explicou Denis Rivas, um dos 600 servidores que assinaram uma carta contra a medida.
Ao mesmo tempo, propostas de combate ao garimpo ilegal e à extração de indicadas pelos técnicos foram engavetadas. Rivas cita um projeto do qual fez parte que propunha algo simples: usar uma base da Polícia Militar para impedir o avanço do garimpo no Pico da Neblina, sobreposto à terra indígena Yanomâmi e localizado nas fronteiras com Venezuela e Colômbia. “O plano de manejo está parado no ministério. Fica muito claro que existe uma conivência, pois propomos uma solução simples de usar o posto da Funai para criar critérios de acesso à região.”