Cantor e compositor pernambucano revisita suas músicas em discos de voz e violão, enquanto vê sucessos como ‘Anunciação’ e ‘Belle de Jour” virarem fenômeno entre gerações mais jovens na internet.
El País, por Joana Oliveira
Morre uma asa branca cada vez que alguém toca a versão remix de Anunciação, diz um meme sobre a música que é festa em bloquinhos de Carnaval, hino de partos humanizados (Tu vens, tu vens, eu já escuto teus sinais, cantam as mães da internet durante as contrações) e agora batida eletrônica que anima festas no Big Brother Brasil (BBB). Seu autor parece não gostar nem desgostar da versão moderna. “Existe até música dos Beatles tocada como chorinho… Eu amo chorinho, mas prefiro a música dos Beatles mais do jeito deles. Beatles como chorinho fica meio apulso [forçado], né?”, diz Alceu Valença (São Bento do Una, 74 anos).
O cantor e compositor pernambucano se maravilha, no entanto, com o sucesso contemporâneo de canções como Belle de Jour, que não tiveram êxito quando foram lançadas em décadas passadas. Alceu não hesitou, por exemplo, em aceitar o convite para tocar na festa do BBB, no Primeiro de Maio, levando às lágrimas os participantes Juliette Freire e Gilberto Nogueira (Gil do Vigor), fãs do artista. “Eu não uso rede social, mas acho tudo absolutamente impressionante! Do nada, a internet descobriu uma música dos anos setenta e foi esse pipoco!”, comenta ele na entrevista em vídeo com o EL PAÍS. Mesmo assim, sabe quase de cor os números de seu sucesso digital: são mais de 250 milhões de reproduções da canção sobre a “moça bonita da praia de Boa Viagem” no YouTube e mais de 41 milhões de visualizações de Anunciação. Mas o que Alceu mais gosta são os vídeos de crianças de colo dormindo ao som de suas composições. “Eu ouço música muito pouco, inclusive as minhas. Como eu tenho insônia, já pensei até em botar minhas músicas para ver se durmo também”, brinca, com um sorriso no rosto.
Para a conversa com o EL PAÍS, Alceu aparece na tela sentado na sala de sua casa no Rio de Janeiro, com seu característico chapéu sobre os longos cachos de cabelo. Veste uma camiseta branca e um blazer de veludo em tom marrom. “Comprei isso aqui para o frio em Paris, há tempos, mas nunca uso. Agora esfriou no Rio, aí peguei”, diz ele, como que desculpando-se pelo traje de corte mais formal.
Andarilho, viajante, estradeiro, Alceu Valença viu-se obrigado a cancelar, em março do ano passado, 45 shows marcados pelo Brasil e 16 na Europa, e sentiu o peso do confinamento imposto pela pandemia de covid-19. “Sempre tive muito mais intimidade com a estrada e com os hotéis do que com minha própria em casa”, confessa. Na falta do que fazer, fez do violão uma de suas principais companhias e passou a tocar as próprias músicas incessantemente. Daí nasceram três discos em voz e violão. Sem pensar no amanhã —que traz uma canção homônima inédita, além de clássicos da carreira do pernambucano—, é o primeiro deles e foi lançado em março.
“Não foi uma inspiração, foi mais uma coincidência”, diz Alceu. “Em 1979, saí do Brasil para morar na França e me apeguei muito ao violão também. Paulinho Rafael, que toca comigo há uma porrada de tempo, foi e fizemos uma turnê de voz e violão juntos.” Dessa parceria na Europa nasceu o disco Saudade de Pernambuco. “Fui embora porque estava com saco cheio de ditadura, cansado de ver amigos meus sendo torturados, inclusive amigos que sequer eram militantes políticos. Em Paris, eu estava confinado num apartamento e essa mesma situação se repetiu aqui: fiquei tocando violão e, de repente, uma música chamava outra”.
As músicas de Alceu Valença têm todas uma conexão. Não à toa, o novo disco é pensando como um roteiro cinematográfico —ele dirigiu A luneta do tempo, em 2015— ou uma viagem. Ouvir Alceu é passear pela praia recifense de Boa Viagem, sobrevoar as igrejas de Olinda em Mensageira dos anjos, ir do Táxi lunar ao trem da Estação da Luz. E ele adora contar as histórias de como surgiu cada uma delas. “Em 1973, eu estava olhando pela janela do apartamento dos meus pais, no Recife, e vi, num dia azul, uma moça dançando balé clássico na praia vazia. Dois dias depois, no pátio da Ladeira da Misericórdia, em Olinda, encontrei Paulinho [Rafael] tocando violão e começamos a tocar juntos. De repente, aparece uma moça com o cabelo pintado de lilás e o rosto coberto de purpurina. Ela passou, deu uma rodada assim [Alceu faz um gesto de volteio com os braços], e foi embora no meio da escuridão. Aí eu digo: ‘Essa é a mensageira dos anjos! Que loucura!’” Mensageira dos anjos é outra das músicas que ele compôs nos anos setenta.
Alceu ainda não sabia que a moça da praia de Boa Viagem que inspirou Belle du Jour era a mesma que rodopiou em Olinda. A bela linda criatura também inspirou um trecho de Táxi lunar, feita com o parceiro Geraldo Azevedo. “Quando ele me mostrou, alguns anos depois, no Rio de Janeiro, uma música que estava fazendo, escrevi esses versos: pela sua cabeleira vermelha, pelos raios desse sol, lilás, pelo fogo do seu fogo, centelha, pelo raio desse sol. Tem espelho no seu rosto de neve —lembrei da purpurina no rosto dela—, nem menina nem mulher.”
Mas a bailarina solitária da praia, dona dos raios de sol lilás nos cabelos, divide a inspiração de Belle du Jour com a atriz inglesa Jacqueline Bisset, que certa vez encontrou Alceu num bar parisiense e pediu que lhe escrevesse um poema. Na hora de compor, o cantor confundiu Bisset com a francesa Catherine Deneuve, atriz do filme A Bela da Tarde (1967, do espanhol Luis Buñuel). E assim nasceu la belle de jour.
Quarentena
Isolado há mais de um ano em casa com sua esposa e produtora Yanê Montenegro, Alceu admite que a rotina, mesmo com o violão, lhe trouxe uma certa nostalgia. “Tem dias que dá uma tristeza na gente, mas depois passa. Eu costumo acabar com minha tristeza andando”, diz ele, que dá entre 10.000 e 18.000 passos por dia, segundo suas contas. Depois de tomar a segunda dose da vacina contra a covid-19, às vezes vai caminhar em um clube perto de casa. “Nunca tem ninguém lá. Vou de máscara e óculos de proteção, mesmo estando vacinado. Porque a questão é empatia.”
Alceu pensa, cada vez mais, em solidariedade. “Depois de uma pandemia como essa, temos que pensar muito nisso e tentar fazer um mundo realmente mais global. Eu nasci em São Bento do Una, eu sou pernambucano, sou brasileiro, eu sou planetário. Temos que ter empatia e dar o bom exemplo. Estar de máscara na rua é um bom exemplo, mesmo que você já tenha tido o vírus etcétera e tal”.
Há exatamente um ano, o artista foi atacado pelas milícias virtuais ao dizer o mesmo —principalmente sobre a importância do uso de máscaras— com outras palavras. “Faço tudo ao contrário do que o presidente manda”, afirmou em uma entrevista ao Estadão. Com o EL PAÍS, Alceu não fala diretamente sobre Jair Bolsonaro, prefere elogiar o Sistema Único de Saúde, que, segundo ele, tem salvado o país. “O Brasil tem uma coisa bacana, né? O SUS. Se não fosse o SUS nessa pandemia, a tragédia seria maior.”
Quando fala especificamente do coronavírus, no entanto, usa um tom de Revolução Francesa que, quiçá, gostaria de endereçar a outros destinatários: “Tenho esperança de vencermos esse canalha!.. Esse corona canalha, de degolá-lo. Queria uma guilhotina para o corona.”
Alceu e sua família pegaram covid-19, provavelmente no Carnaval de 2020, quando estavam na estrada, fazendo shows. “Tive uma tosse seca para caramba, dores musculares e cansaço. Minha mulher só dormia, com muita dor de cabeça e dor no corpo. O rapaz que tocava baixo comigo foi internado com falta de ar, mas ninguém sabia o que era naquela altura. Só muito depois que fomos fazer os testes e comprovaram que todos tínhamos tido contato com o vírus.” É também por isso que ele combate, com bom humor inteligente, os boatos sobre supostos efeitos nocivos das vacinas: “Tomei a Coronavac. O único efeito colateral que eu tive foi que agora eu falo mandarim”, afirma, sério, e se põe a reproduzir ruídos ininteligíveis em tom de piada. Depois gargalha. “Se eu tivesse tomado a de Oxford, teria aprendido a falar inglês com sotaque britânico.”
Alceu franze o cenho e adota um tom realmente sério ao criticar as “jogadas políticas e comerciais” tanto de governantes quanto de empresas farmacêuticas neste momento de emergência sanitária. Para ele, dinheiro não deveria ser prioridade agora. “É chato falar disso, mas vou te dizer: eu, que não tenho uma empresa grande, estou sustentando, com um salário que não é salário [porque não tem vínculo empregatício], os músicos que são cúmplices, que sempre tocam comigo. A gente tem que fazer o que pode para ajudar. Que porra de dinheiro, rapaz? Não é hora de pensar em dinheiro, não! É hora de solidariedade!“, diz, enquanto agita os braços no ar, contrariado.
A indignação se dissipa quando ele volta a falar de música, dos seus “surtos criativos” nas madrugadas insones em que se põe a escrever, não só canções, mas também poesia. Guarda muitas músicas inéditas no celular, mas quer degustá-las pouco a pouco. “Estou dando um tempo para poder me divertir, porque, se gravar tudo de vez, depois não tenho o que fazer. É como se eu estivesse fazendo um show para mim mesmo. Sou meio doido assim, sabe?”, ri.