Há exatos 73 anos, criação do Estado de Israel dava início a um processo de “limpeza étnica” que prossegue até hoje
Daniel Giovanaz – Brasil de Fato
Fogo na vila de Burin destrói casas e pés de oliveira. Ataques contra muçulmanos que oravam na mesquita de Al-Aqsa, terceiro lugar mais sagrado do Islã, deixam 300 feridos. Bombardeios matam 48 e ferem mais de mil na Faixa de Gaza. Em paralelo, Israel mantém o despejo de 38 famílias palestinas no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental.
Essa sequência brutal de acontecimentos ocorreu nos últimos dez dias de Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos.
O Estado de Israel afirma que apenas responde à violência. O Al-Qassam, braço militar do grupo islâmico Hamas, reivindicou o disparo de foguetes no último domingo (9), ferindo militares israelenses.
Porém, o que as agências de notícia internacionais chamam de “tensão” e “conflito” segue uma tendência irrefutável há 73 anos: a quase totalidade das vítimas é palestina.
“É apavorante. As pessoas saem de casa pela manhã sem saber se vão voltar à noite. O Exército de Israel usa qualquer pretexto para atacar inocentes”, relata a engenheira civil Sama Sawalha. Ela é muçulmana e vive no vilarejo Asira ash-Shamaliya, no norte da Palestina.
“Se as leis internacionais fossem aplicadas, e Israel tivesse sido responsabilizado pelos crimes cometidos há décadas, não chegaríamos a esse grau de violência hoje, com cada vez mais vítimas inocentes”, lamenta.
Antecedentes
Palestina é a denominação histórica da área que hoje cobre o Estado de Israel, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Por mais de 800 anos, a região fazia parte do Império Otomano – e já se chamava Palestina.
Em maio de 1916, durante a 1ª Guerra Mundial, França e Inglaterra assinaram secretamente o acordo de Sykes-Picot, dividindo o território do Império Otomano antes mesmo de derrotá-lo. Com o fim da guerra, a Palestina manteve seu nome, mas ficou sob domínio britânico.
Já nos debates do acordo de 1916 havia menção a um projeto sionista, para criação de um Estado de Israel na região. Essa promessa se concretizou em 14 de maio de 1948, com base em uma recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU).
A proposta original era dividir a Palestina em dois Estados – um árabe e outro judeu. Jerusalém seria uma “cidade internacional”, administrada pelas Nações Unidas, para evitar conflitos.
Israel se autodeclarou independente em 14 de maio de 1948, mas nunca respeitou os limites recomendados pela ONU. Mesmo assim, foi aceito como membro da organização multilateral no ano seguinte.
Em novembro de 1967, o Exército de Israel venceu a chamada Guerra dos Seis Dias e tomou a Faixa de Gaza, a Península do Sinai, Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã. Mais de 15 mil árabes foram mortos na defesa de seus territórios. Do lado israelense, foram cerca de 900 óbitos.
A Resolução 242 das Nações Unidas, que determinou a retirada de Israel de territórios ocupados, jamais foi cumprida.
Mulheres palestinas em protesto contra a ocupação israelense: uma realidade que já dura mais de 70 anosa / Reprodução Carta Capital
Filhos da diáspora
A anexação violenta do território palestino provocou a destruição de centenas de aldeias. Dentre os que conseguiram sobreviver, a maioria buscou refúgio em outros lugares do planeta. Mais de 711 mil árabes deixaram a região entre 1948 e 1949, segundo as Nações Unidas.
Enfermeira em Porto Alegre (RS), Fátima Ali é filha da diáspora palestina, que se intensificou nas décadas seguintes.
“Para fundar um país onde já há povoação, é preciso eliminar a população daquele local. Por isso, a gente diz que a Palestina sobrevive a um processo de limpeza étnica. É isso que o nosso povo sofre desde 1948”, resume.
O pai de Fátima emigrou da Palestina em 1961. De um total de sete irmãos, ele foi o único que veio ao Brasil. Três já faleceram, um está na Espanha, outro na Itália, e apenas Mahmoud – pai de Sama, que aparece no início da reportagem – permanece na Palestina.
“Guardo até hoje um documento de quando meu pai chega no Brasil, que diz sem nacionalidade”, conta Fátima, que cresceu junto à comunidade palestina no Rio Grande do Sul.
“A minha vida toda, a gente sempre vivenciou muito a história da ocupação na Palestina, porque o meu pai dizia que nós tínhamos a responsabilidade de dar continuidade à resistência”, relata.
Hoje, Fátima é vice-presidenta da Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL).
O contato com a prima Sama e com os parentes espalhados pelo mundo é facilitado pela internet e pelas redes sociais. “Um tempo atrás, era uma ligação por ano. Lembro da angústia de esperar por uma carta, com notícias deles”, lembra a brasileira.
Sem direito de ir e vir
Embora a escalada de violência ocorra a centenas de quilômetros de onde vive sua família, Fátima sabe que os moradores do território palestino são vítimas constantes de opressão. Ela trabalhou como enfermeira na Faixa de Gaza durante a Primeira Intifada (1987-1993), manifestação espontânea da população palestina, com paus e pedras, contra a ocupação israelense.
“Temos prisioneiros sem julgamento, crianças em prisões palestinas, mulheres palestinas em prisões israelenses… É um projeto genocida”, define.
A prima dela, Sama, ressalta as violações ao direito de ir e vir dentro do território palestino. “Temos mais de 400 checkpoints [barreiras israelenses] entre as cidades palestinas sobre a Cisjordânia. Quando os conflitos começam, eles fecham o acesso às cidades”, conta.
“Se você trabalha ou estuda em uma cidade vizinha, acaba se atrasando quatro ou cinco horas, até conseguir autorização para passar.”
Fátima Ali [ao centro, de camisa branca] em visita à família na Palestina, em 2012 / Arquivo pessoal
Raja Abu Nabah é muçulmano, nasceu na região da Cisjordânia e passou anos no Brasil trabalhando como comerciante. De volta ao Oriente Médio, trabalhou como tradutor de treinadores de futebol brasileiros, como Sebastião Lazaroni e Péricles Chamusca.
A busca por oportunidades fora da Palestina atravessa gerações. Dos quatro filhos, apenas um vive com ele. “Está estudando para o vestibular e ainda não sabe para onde vai”, diz Raja, em português fluente.
Perguntado sobre os ataques recentes, ele diz que não é analista político, por isso não se sente à vontade para comentar.
“Quem mais sente a violência e a humilhação, aqui onde eu moro, é quem trabalha em outra cidade e precisa viajar todo dia”, conta.
“Se você perguntar a qualquer pessoa o que ela mais deseja na vida, é viver em paz. É os filhos poderem ir e vir sem medo de tiro, sem serem parados no caminho por um soldado que os humilhe. Andar com liberdade”, acrescenta.
Desde a criação do Estado de Israel, em maio de 1948, esse sonho parece mais distante.
“Quando alguém entra em um país e não respeita seus moradores, fica difícil. Imagina eu entrar no Brasil, criar um outro país e não respeitar os moradores que estavam lá”, compara.
Perto do fogo
Antes que o mundo voltasse aos olhos para os ataques recentes em Gaza e Jerusalém, agricultores na província de Nablus já viviam noites de terror.
Entre os dias 3 e 4, colonos judeus de extrema direita atearam fogo em fazendas palestinas e atacaram casas na vila ocupada de Burin, segundo a agência de notícias Wafa.
A psicóloga palestina Reema Al Kilani vive em Nablus, capital da província de mesmo nome, a 9 km de Burin.
“Estamos sob ocupação desde 1967, e esses ataques são um problema que existe desde que começaram os assentamentos ilegais sobre terras palestinas na nossa região”, relata.
Cerca de 600 mil colonos judeus vivem em mais de 250 assentamentos ilegais na Cisjordânia. Destes, cerca de 40 estão na província de Nablus.
“Eles atacam as pessoas, especialmente as crianças, para que elas se sintam forçadas a deixar suas terras”, diz Reema. “As crianças, para eles, são uma ameaça porque representam o futuro, a possibilidade de permanência dos palestinos em suas terras pelos próximos anos.”
A psicóloga conta que os alvos de ataques geralmente são escolas, para atingir crianças, e cultivos de azeitonas. “Eles queimam especialmente as oliveiras, porque a renda das famílias depende delas”, diz.
“E também porque essas árvores são uma espécie de testamento, provando que estamos aqui há centenas de anos e somos os donos da terra. Queimar as oliveiras é queimar toda nossa existência passada na terra”, completa Reema.
Os ataques geralmente ocorrem no entorno de Nablus, e não na área urbana da cidade. Para a psicóloga, a maior dificuldade hoje é o deslocamento dentro do país.
“É mais fácil visitar meu filho que está na Argentina, do outro lado do mundo, do que os parentes que vivem mais perto. Tenho outro filho em Gaza, por exemplo, e não conseguimos nos encontrar nos últimos doze anos. São 90 minutos de viagem”, lamenta.
“Minha prima, que mora em Jerusalém, também fiquei anos sem visitar, por não conseguir permissão. São 50 minutos daqui até lá”, acrescenta.
Não é guerra
Ali Abur vive em uma vila perto de Ramallah, na Palestina. Ele morou no Brasil entre os 15 e os 55 anos, e voltou em 2007 para cuidar dos cultivos de oliveira que herdou de seu pai. “Essas árvores de azeitona são abençoadas por Deus, segundo o Alcorão”, lembra.
As notícias dos ataques em Gaza e em Jerusalém, ele recebe pela televisão. “Queremos paz para o árabe, para o israelense. Queremos que nossos filhos vivam como as crianças do outro lado do mundo, que tenham estudo, liberdade de ir e voltar sem problema nenhum”, diz.
“No momento em que houver paz entre Palestina e Israel, acredito que o mundo inteiro ficará em paz e harmonia.” O agricultor, que é muçulmano, afirma que a paz deve ser garantida a todos, independentemente da religião:
“Morei 40 anos no Brasil, e meu vizinho era judeu. Uma pessoa excelente! Eu trabalhava com comércio, então ia comprar em São Paulo, e a maioria dos vendedores eram judeus. Meus amigos, gente fina, sempre tive boa relação”, recorda.
Jerusalém é uma cidade sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos. “Deveria ser a cidade mais bonita do mundo, justamente por isso”, afirma Ali.
A paz que ele sonha parece cada vez mais distante.
“Israel viola o direito dos muçulmanos à oração”, diz a engenheira civil Sama Sawalha, que tem péssimas lembranças das vezes em que esteve em Jerusalém.
“As forças de segurança de Israel protegem os judeus conservadores por qualquer ação ilegal contra a mesquita Al-Aqsa e contra os muçulmanos que vivem no entorno dela”, diz.
“Era para ser uma cidade com três religiões, mas hoje está dominada por uma.”
Vivendo em Porto Alegre, mas com o coração junto da família, em Asira ash-Shamaliya, Fátima Ali lembra que as palavras têm grande peso simbólico e político quando o assunto é Palestina.
“Não se trata de um conflito religioso. A Palestina histórica era um território onde conviviam palestinos muçulmanos, em sua maioria, mas também cristãos e judeus”, diz.
“E também não há guerra. Há uma tentativa de genocídio, um projeto de colonização, de domínio de um povo, com forças completamente desproporcionais”, completa, lembrando que Israel é um dos maiores produtores de armas do mundo.
“Enfim, nesses dias tenho dito que Palestina deveria ser um verbo. Sobreviver, resistir, existir. Ela é sinônimo disso, e de esperançar, como diria Paulo Freire”, finaliza.
Edição: Vinícius Segalla