Dossiê lançado recentemente pelo Instituto Tricontinental reúne reflexões de diversas organizações progressistas
Redação – Brasil de Fato |
Uma crise política, socioeconômica e sanitária sem precedentes, a chegada da extrema direita ao poder e a brutal retirada de direitos sociais. É nesse desafiador contexto que a esquerda brasileira tem enfrentado o governo Jair Bolsonaro e angariado esforços para resistir, se reinventar e engrossar as fileiras por outro projeto de sociedade.
Com o capitão reformado no Palácio do Planalto apoiado pelas classes dominantes e pelas Forças Armadas, o projeto neoliberal instaurado no país após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, se aprofundou. Em 2020, o surgimento do novo coronavírus e a ausência de enfrentamento à pandemia por parte de um governo federal negacionista trouxeram para o Brasil a marca de mais de 430 mil vítimas fataisda doença respiratória e o título de ameaça mundial.
A esquerda, por sua vez, continuou se articulando e tendo como prioridade retomar a condução do país em direção a outro rumo. Mas, quais são os próximos passos a serem tomados em uma conjuntura tão emblemática? Quais são os desafios colocados para as forças políticas progressistas, considerando as eleições de 2022 e a “política de morte” em curso?
Essa é a temática abordada pelo Dossiê 40 do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, lançado no último dia 13 de maio. O documento Os desafios da Esquerda no Brasil apresenta diferentes reflexões a partir do ponto de vista de representantes de partidos e organizações da classe trabalhadora, do campo e da cidade.
Entre os entrevistados estão, Jandyra Uehara, da Executiva Nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT); Juliano Medeiros, presidente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL); Kelli Mafort, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Gleisi Hoffmann, deputada federal e presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT); e Valério Arcary, professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e membro da direção nacional do PSOL.
Balanços e perspectivas
O dossiê está dividido em cinco partes e tem como ponto de partida uma análise crítica da esquerda brasileira nas últimas décadas. A exemplo da política de renda do programa Bolsa Família, responsável por tirar 36 milhões de pessoas da extrema pobreza, e do programa habitacional Minha Casa Minha Vida, que construiu mais de 4 milhões de casas populares, o documento reconhece a importância das políticas de bem-estar social adotadas pelos governos Lula e Dilma, mas faz ponderações.
“A esquerda conseguiu chegar ao governo com Lula mas isso não significa que conquistou o poder. Essa talvez seja uma das chaves que explique a derrota da esquerda nos últimos anos. É inegável que tivemos conquistas importantes nos governos petistas, mas isso não foi acompanhado de um processo de politização que elevasse o nível de consciência das massas”, afirma Luiz Albuquerque, organizador do dossiê.
O também coordenador do departamento de Comunicação e Publicação do Tricontinental explica que após a crise econômica de 2008, a burguesia e o empresariado puseram fim à política de conciliação de classes para manter a lucratividade de seus negócios, em detrimento dos direitos das populações mais vulneráveis.
Sem um processo de politização da grande maioria de trabalhadores que pudesse forjar a consciência de classe dos setores médios e populares, não houve o fortalecimento de uma base social sólida para a defesa de um projeto progressista ou, ainda, que fosse capaz de deter o golpe contra a ex-presidenta Dilma ou a vitória de Bolsonaro, com mais de 57 milhões de votos, dois anos depois.
Entre os desafios urgentes, Albuquerque cita que o consenso da esquerda é o afastamento de Bolsonaro da presidência, a defesa da vacinação em massa e a volta do auxílio emergencial de R$ 600.
A retomada de uma base social e de um conteúdo programático combativo são demandas a médio e longo prazo essenciais para nortear a atuação do campo da esquerda como um todo – seja nas ruas ou nos parlamentos.
“Precisamos retomar o trabalho de base, no sentido de acumular forças e sair da situação defensiva, avançar em pautas de fôlego, mais estruturais. O trabalho de base é indispensável para a luta popular e deve estar vinculado a uma determinada estratégia, a tomada do poder. Com isso, então, é preciso organizar o povo em torno de um programa, fazer a disputa ideológica para reconstruirmos força social, derrotar o bolsonarismo e colocarmos na ordem do dia as reformas estruturais”, defende Albuquerque.
Élida Elena, vice-presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE) e integrante do Levante Popular da Juventude, também está entre as entrevistadas do Dossiê e, ao Brasil de Fato, ressalta a importância do diálogo da esquerda com a população diante dos retrocessos.
“Para que possamos superar esse cenário, precisamos reforçar a mobilização social, a construção de força social da esquerda para que possamos ter outra alternativa e derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo. Temos apostado como passo para esse caminho em campanhas de solidariedade nos diversos estados do Brasil como forma de ampliar nossa resistência e reconectar os vínculos da esquerda com o povo brasileiro”, declara.
As fissuras da direita e a importância da figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a proximidade das eleições presidenciais de 2022 são outros pontos abordados pelos entrevistados. Vale destacar ainda que todas as imagens que compõem o documento fazem parte do projeto Design Ativista, um coletivo que surgiu durante as eleições de 2018 com o objetivo de fomentar a criação e distribuição livre de arte e informação, combatendo as notícias falsas e apoiando a democracia.
“Juntos, venceremos!”
O Dossiê deixa claro que a unidade entre os setores progressistas é central para a construção de um outro futuro. Uma necessidade histórica e um desafio permanente, aponta Albuquerque. Indispensável para “conter o avanço do neofascismo e retomar o Estado”.
“Um grande debate em aberto é como se constituiria essa unidade e quais seriam as táticas necessárias para construí-la. Se se daria em uma frente de esquerda compostas pelas forças progressistas, em torno de um programa mínimo em comum, ou em uma frente ampla que incluiria todos os espectros políticos contrários ao bolsonarismo, incluindo parte da direita liberal, por exemplo? Ou uma combinação de ambas as táticas? Esse debate ainda está aberto”, continua o jornalista.
Elida Elena, da UNE, também endossa a necessidade da unidade entre as plurais esquerdas brasileiras para derrotar o bolsonarismo e destaca a importância da juventude como agente político desse processo.
“Cada organização, sozinha, isoladamente, não vai conseguir cumprir essa tarefa. Nós, da juventude, temos um papel importante. Desde a campanha eleitoral temos sido um elo forte, de resistência, ao projeto bolsonarista. Desde o “Ele Não”, ao Tsunami da Educação e lutas antirracistas e antifascistas do ano passado. Temos muita disposição de luta”, comemora a militante.
Mesmo em meio a uma conjuntura acirrada, Albuquerque, o organizador do dossiê, avalia que ainda que seja necessária a adoção de uma postura defensiva por parte da esquerda, o governo Bolsonaro vem sofrendo um desgaste lento, porém gradual, desde o início do ano. Algo que fomenta a organização popular.
“Há uma percepção de que a militância, a base social da esquerda, se sente mais fortalecida para lutar hoje do que em tempos passados. Esse é um elemento muito importante, é um dos fatores que pode ajudar a alterar a correlação de forças na sociedade”, finaliza.
Leia o Dossiê nº40 completo aqui.
Edição: Vinícius Segalla