por Daniel Camargos, da Repórter Brasil – Para beneficiar pecuaristas, os deputados estaduais de Rondônia aprovaram uma lei que dizima duas áreas de reserva no entorno de Porto Velho. O estrago ambiental, caso sancionado pelo governador, vai retirar a proteção ambiental de 219 mil hectares da Reserva Extrativista Jaci-Paraná e do Parque Estadual Guajará-Mirim, o equivalente às áreas das cidades de São Paulo e Salvador somadas.
Quase a metade (11 dos 25) deputados estaduais que aprovaram o projeto por unanimidade são pecuaristas ou foram financiados por criadores de gado, revela cruzamento de dados realizado pela Repórter Brasil, com base na declaração de bens e de doadores disponíveis no Tribunal Superior Eleitoral com documentação sobre transporte de gado. A redução das áreas de reserva ambiental vai beneficiar diretamente a atividade econômica: estima-se que existam 120 mil cabeças de gado na Resex Jaci-Paraná.
Entre os 25 deputados estaduais, seis receberam doações na última campanha eleitoral de pecuaristas: Alex Redano(DEM), Cássia das Muletas (Podemos), Geraldo da Rondônia (PSC), Johny da Paixão (PRB), Lebrão (MDB) e Lazinho da Fetagro (PT). Além de ter recebido doações, o petista também está entre os seis que são pecuaristas ao lado de Adelino Follador (DEM), Edson Martins (MDB), Ezequiel Neiva (PTB), Luizinho Goebbel (PV) e Laerte Gomes (PSDB)
A relação dos deputados com os interesses no agronegócio não podem ser observadas apenas com as doações. O relator do projeto de lei, o deputado Jean Oliveira (MDB), não tem nenhuma propriedade rural em seu nome e nem recebeu doações de pecuaristas, mas é investigado pela Polícia Federal por integrar uma quadrilha que tentou grilar uma unidade de conservação e por cogitar matar um procurador que se opôs ao roubo da terra pública, segundo revelou a Folha de São Paulo.
Se o agronegócio ganha de um lado, por outro, o projeto ameaça indígenas, incluindo pelo menos seis grupos que vivem em isolamento voluntário, segundo a freira Laura Vicuña, missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Se esse projeto for sancionado pelo governador, o Brasil pode cometer etnocídio”, afirma.
Tanto o Parque Estadual Guajará-Mirim quanto a Reserva Extrativista Jaci-Paraná estão em áreas no entorno das Terras Indígenas Uru-eu-wau-wau, Karipuna, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão e Karitiana. Uma região que Vicuña define como um “mosaico ecológico por onde perambulam povos em isolamento voluntário”.
“Eles [indígenas] não têm contato com a sociedade e nem ficam restritos às terras indígenas demarcadas, por isso, a importância dessas áreas de reserva”, explica Vicuña. Segundo o Cimi, são quatro grupos identificados próximos à Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, um na TI Karipuna e outro na TI Karitiana. “A gente sabe apenas por vestígios encontrados por moradores ou por sobrevoos da existência desses povos”, afirma a missionária.
O favorecimento dos pecuaristas em detrimento da preservação ambiental e proteção dos indígenas está na gênese do texto do Projeto de Lei Complementar 80 de 2020, que foi enviado pelo governador coronel Marcos Rocha (PSL) para os deputados. O governador, que é bolsonarista convicto e reproduz o discurso anti ambiental do presidente, argumentou no texto que na Resex Jaci-Paraná existem 120 mil cabeças de gado “sem qualquer licenciamento ambiental ou autorização para supressão da vegetação nativa”.
Rocha assumiu ainda a incapacidade do governo de lidar com as invasões: “As inúmeras ações de comando e controle até então executadas têm sido insuficientes para impedir o avanço da ocupação e desmatamento ilegais”.
Cabe agora ao governador sancionar ou vetar a lei que ele mesmo enviou. O prazo legal se encerra nesta quinta-feira (20). Um dia antes, a procuradoria Geral do Estado (PGE) de Rondônia emitiu parecer que aponta a inconstitucionalidade do projeto. Entre os problemas listados pela PGE estão a ausência de estudos técnicos para embasar a decisão e a violação do princípio que veda o retrocesso ambiental.
“O objetivo dessa lei é legalizar a grilagem”, afirma o ambientalista Edjales Brito, conselheiro da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Para Brito, a justificativa do governo de que não consegue mais impedir a invasão das áreas pela pecuária é absurda. “Nem cogitaram em mudar o tipo de proteção das áreas e tornar mais compatível com a presença de algumas atividades, pois o plano é acabar com tudo”, afirma.
Como são hoje (à esquerda) e como ficarão áreas de proteção caso governador sancione o projeto (Imagem: disponível em estudo da Procuradoria Geral do Estado)
Brito entende que Rondônia é um “laboratório do Brasil”, em que os retrocessos ambientais chegam primeiro. “A mentalidade de quem está no poder é colonizadora. Chamam indígena e extrativista de preguiçoso e se colocam como o setor produtivo, com um discurso de superioridade”, entende o ambientalista.
Com a redução das áreas de reserva, o que irá acontecer, segundo Brito, é a repetição de um ciclo de destruição. “Primeiro retiram a madeira, depois queimam, fazem as pastagens e, por fim, abrem espaço para as monoculturas de exportação, como milho e soja”, explica.
O fogo, inclusive, não espera a aprovação da lei para começar a destruir. Foram 895 focos de queimada na Resex Jaci-Paraná e 133 focos no Parque Guajará Mirim em 2020. As duas áreas ameaçadas estão majoritariamente inseridas nos limites de Porto Velho e Nova Mamoré. Justamente as duas cidades mais queimadas em Rondônia em 2020, segundo mostram os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Caso a lei seja sancionada, a Resex Jaci-Paraná perderá 171 mil hectares da área protegida, permanecendo com apenas 22 mil hectares, pouco mais de 10% de sua área original. A área foi criada em 1996 para assentar 52 famílias extrativistas que já estavam na região, explica o representante da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), Joadir Lima.
Com o passar dos anos, a falta de fiscalização e apoio dos órgãos governamentais, a reserva foi sendo invadida por pecuaristas. “Os seringueiros sempre denunciaram, mas o governo nunca atuou e as famílias foram expulsas”, afirma Lima. Entre 2008 e 2020 o desmatamento na reserva foi de 83 mil hectares, ou seja, 42% do total, segundo dados do Inpe. É a segunda área protegida mais devastada da Amazônia, atrás apenas da Área de Proteção Triunfo do Xingu, em São Félix do Xingu, no Pará, outra região dominada pela pecuária.
O modus operandi da invasão, segundo o representante dos seringueiros, é a entrada de pessoas que ocupam a terra como “laranjas” de grandes proprietários. “O avanço da pecuária e da soja em Rondônia é muito grande e pressiona essas áreas”, entende Lima.
O ambientalista Edjales Brito explica que quem invadiu a área não são pessoas pobres com perfil para serem inseridos em programas de reforma agrária. “Os produtores de Porto Velho possuem o maior rebanho de Rondônia e grande parte dele está nessas pastagens abertas ilegalmente em áreas públicas invadidas”, afirma.
Já o Parque Estadual do Guajará-Mirim, que tem 217 mil hectares, ficará com 166 mil hectares, caso o projeto seja sancionado.
Brito e Lima integram uma Frente Ampla de Defesa das Áreas Protegidas em Rondônia, um movimento social formado por 65 organizações. A Frente tenta se contrapor ao lobby do agronegócio, mas não conseguiu convencer nenhum dos 25 deputados estaduais de Rondônia a apoiá-los.
A Repórter Brasil procurou os 11 parlamentares questionando se houve conflito de interesse por serem produtores rurais ou por terem sido financiados por pecuaristas. Apenas a deputada Cássia das Muletas (Podemos) respondeu. “São áreas ocupadas há mais de década por pequenos produtores que viviam em absoluta insegurança jurídica e de futuro pela condição irregular que se encontravam”, afirma.
A deputada também garante que o fato de ter recebido doação de um pecuarista não influenciou na sua decisão, pois, segundo ela, as propriedades do doador estão distantes das áreas de preservação afetadas pelo projeto de lei. Ela também destacou que o projeto prevê a criação de novas áreas de reserva.
De fato, são cinco áreas previstas, que somadas chegam a 120 mil hectares, mas que segundo o parecer da Procuradoria Geral do Estado são regiões “substancialmente inferiores em extensão às desafetadas, além de não reproduzirem os atributos únicos encontrados na Reserva Extrativista Jaci-Paraná e do Parque Estadual de Guajará-Mirim”.
A PGE deixa claro que não há como comparar as novas áreas que serão criadas com as duas que podem perder a proteção, pois a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e o Parque Estadual Guajará-Mirim “se encontram em uma das regiões mais relevantes e sensíveis do ponto de vista ambiental, compondo o único corredor ecológico que interliga diversas Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais e estaduais”.
Não é o primeiro decreto com caráter anti ambiental do governo do coronel Marcos Rocha. Em janeiro, ele legalizou o garimpo de ouro no rio Madeira. “Dia histórico”, publicou o governador no Twitter. O coronel Rocha ressaltou que o sogro dele era garimpeiro e atuou na ilegalidade por muito anos. A atividade deixa um rastro de mercúrio, um metal tóxico, que contamina os peixes e compromete a saúde de quem utiliza a água.
A desafetação das áreas de reserva é mais um projeto nesse sentido, segundo a Frente Ampla de Defesa das Áreas Protegidas em Rondônia. Se entrar em vigor, abre caminho para legalização de dezenas de milhares de quilômetros grilados e desmatados para pecuária.