Renan Calheiros: “No processo político de 2022, não teremos dois extremos, mas um só”

Renan Calheiros: “No processo político de 2022, não teremos dois extremos, mas um só”

O senador Renan Calheiros no dia 19, em Brasília.

Relator da CPI da Pandemia diz que viu como natural conversa entre Lula e FHC (“nunca foram inimigos”) e que não acredita em impeachment de Bolsonaro, ainda que a comissão aponte para isso.

El País, AFONSO BENITES

Desde março de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desdenhou da gravidade da pandemia de coronavírus. Minimizou os efeitos da doença, não difundiu a importâncias das medidas de distanciamento social, incentivou a compra de remédios comprovadamente ineficazes no tratamento do vírus e demorou a adquirir vacinas. Diante da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que tenta fazer uma devassa em seu Governo e definir responsáveis pela disseminação da covid-19, que já vitimou mais de 448.000 pessoas no país, o presidente orientou seus aliados que são interrogados no colegiado a negarem os fatos. Os três últimos depoentes que ocuparam cargos na gestão de Bolsonaro mentiram, distorceram versões e se contradisseram em seus depoimentos. É o que o relator da comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), batizou de a “negativa do negacionismo”. “Essa gente não rejeita, não ‘negaciona’ apenas o enfrentamento da pandemia, mas a democracia, a diplomacia”, disse o parlamentar em entrevista ao EL PAÍS.

Depois de três semanas de trabalhos, o senador emedebista diz que alguns dos depoentes, como o ex-ministro e general da ativa Eduardo Pazuello, podem ser reconvocados para acareações. Também afirma que, assim como este militar e o ex-secretário Fábio Wajngarten, os próximos que mentirem terão seus depoimentos encaminhados para o Ministério Público Federal, para que sejam processados rapidamente. Prometeu que a Agência Senado passará a fazer uma checagem de fatos online dos depoimentos. E não descartou a convocação do vereador Carlos Bolsonaro, que, segundo Calheiros, seria um dos membros de uma espécie de conselho paralelo de seu pai, o presidente Bolsonaro. A entrevista que segue foi concedida por videoconferência, na última sexta-feira, logo após Calheiros desembarcar em Maceió.

P. Após essas três primeiras semanas de depoimento, quais as suas impressões iniciais da CPI?

R. Essa Comissão Parlamentar de Inquérito é uma comissão inédita. Nenhuma CPI começou, efetivamente, com um rumo tão definido e com um apoio tão expressivo da sociedade. Estamos ouvindo as pessoas de acordo com prioridades lógicas e não completamos nem um mês de trabalho, e o resultado é surpreendente no rumo de que nós atingiremos nosso objetivo, que é esclarecer o enfrentamento da pandemia, se houve responsabilidade de alguém, quantas mortes poderiam ter sido evitadas.

P. Já conseguiria precisar quantas mortes poderiam ser evitadas?

R. Só na questão da farmacêutica Pfizer, nós tivemos um depoimento esclarecedor do presidente da empresa para a América Latina [Carlos Murillo]. Ele comprovou com as mensagens, com a linha do tempo, com os documentos, que a Pfizer tinha, sim, feito lá atrás uma proposta de 70 milhões de doses. Se o Brasil tivesse aceito essa proposta, nós teríamos começado a vacinação ainda no ano que passou. O mesmo aconteceu com a Coronavac e com outras.

P. Por que ocorreu tudo isso?

R. Porque o presidente Jair Bolsonaro sempre defendeu a imunização de rebanho e sempre foi contra a eficácia da vacina. Ele defendia o contrário, entendia que não precisava fazer isolamento social, nem lockdown, porque era preciso deixar o vírus proliferar naturalmente. Não há nenhum chefe de Estado ou de Governo que tenha adotado essa tática e insistido nela.

P. Na sua última transmissão ao vivo nas redes sociais, o presidente Bolsonaro admitiu que estava com suspeita de covid-19 e seguiu promovendo aglomerações. Não há crime nesse comportamento?

R. Estamos investigando, fundamentalmente, dois crimes: crime sanitário e contra a vida. Mas para a comprovação ou não nessa direção é fundamental que nós tenhamos acesso às provas, depoimentos, façamos o contraditório.

P. Do que se apurou até o momento, muitos jogaram a responsabilidade pela condução da pandemia no ex-ministro Eduardo Pazuello. Ele próprio blindou o presidente. O senhor consegue ver a digital do Bolsonaro em alguns dos fatos que vieram à tona até agora?

R. Tivemos depoimentos surpreendentes no início. Os três últimos depoimentos de representantes foram consequência de uma nova tática. A partir do depoimento do [ex-secretário de Comunicação] Fábio Wajngarten, a de negar os fatos. O Fábio negou a entrevista que havia dado à revista Veja. O ex-ministro Pazuello negou tudo o que havia feito, o que havia decidido, que havia conversado até coisas públicas com o presidente da República. O Governo está numa tentativa de negar o negacionismo. O depoimento do Pazuello também foi marcado por mentiras, imprecisões, contradições.

P. Essas mentiras e contradições vão resultar em acareações?

R. Sim. Para se ter uma ideia do tamanho do cinismo do Pazuello, teríamos de acareá-lo com mais outros 20 personagens da investigação. Mas essa não é uma vertente que possa ser utilizada agora.

P. Não sendo possível fazer 20 acareações, quais o senhor destacaria para serem feitas?

R. A primeira e mais óbvia seria a acareação com o presidente da Pfizer. Mas teriam outras. Quando o presidente Bolsonaro mandou que o Pazuello desfizesse o acordo que ele havia anunciado com o Instituto Butantan, e depois repetiu que quem mandaria era ele, porque ele era o presidente e não confiava na eficácia da vacina, o Pazuello negou o fato, a decisão, a determinação. Negou também qual caminho utilizou para que essa negociação, que estava sendo anunciada como concluída por ele, fosse desfeita naquela oportunidade.

P. O senhor se refere ao trecho em que o Pazuello praticamente nega o vídeo que ficou conhecido como “um manda o outro obedece”. É isso?

R. Também. Foi uma atitude cínica. É aquilo que chamamos de negativa do negacionismo. Essa gente não rejeita, não “negaciona” apenas o enfrentamento da pandemia, mas a democracia, a diplomacia internacional. Agora, nesta fase da pandemia, eles implantaram uma nova cepa, que é a de negar tudo o que fizeram. É um escárnio. É uma nova bofetada na cara da sociedade e nos familiares das mais de 440.000 vítimas da covid-19. Somos o cemitério do mundo e estamos com dificuldade no processo de vacinação. E a cada dia o Governo repete os seus erros diplomáticos, ofende a China e segue nesses descaminhos.

P. O senhor tem sido um entusiasta das redes sociais. Por um bom tempo, foi alvo de várias críticas, mas hoje tem até funk em sua homenagem. Como vê esse movimento em que o senhor deixar de ser vidraça contra a classe política e virou a pedra da oposição ao Governo? O que mudou?

R. O que aconteceu no Brasil foi um processo de criminalização da política. Ocupei o cargo de presidente do Congresso Nacional por quatro vezes. Havia um projeto político do Ministério Público Federal e do ex-juiz Sergio Moro para substituir a política. Eu fui um dos mas agredidos por eles. Eu era uma espécie de presidente do “Sindicato da Política”, por ser o presidente do Senado Federal. Eles quiseram em todos os momentos me colocar como multi-investigado.

P. O que acabou sendo, não?

R. Essas investigações me deram a oportunidade para que eu fizesse a prova negativa e pudesse me defender de todas essas acusações. Até agora, o Supremo Tribunal Federal já arquivou todas que apreciou por falta de provas. Eu entendendo que as demais que faltam apreciar [são dez], serão arquivadas pelo mesmo motivo. Mas eu fiz o enfrentamento. Do ponto de vista do Congresso Nacional nós aprovamos a lei de abuso de autoridade, a lei que cria o juiz de garantias, porque o Brasil é o único país no mundo em que um juiz que investiga e processa é o mesmo que julga ―e depois do Sergio Moro isso não pode continuar a acontecer. Nós condenamos o procurador Deltan Dallagnol, que era o chefe da Lava Jato, no Conselho Nacional do Ministério Público, porque ele utilizou o Ministério Público de maneira comprovada contra mim, nós impedimos a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot e nós resistimos o quanto pudemos para desmontar esse estado policial que tomou conta do Brasil.

P. Qual foi o resultado desse Estado policial ao qual se refere?

R. Ele proporcionou o absurdo de, em substituição à política, eleger para a presidência da República o que há de pior na política, o Jair Bolsonaro. Aquele processo foi uma fraude eleitoral, porque prenderam ilegalmente o ex-presidente Lula, mas, sobretudo, uma fraude à história do Brasil.

P. O senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP) pediu que a PF investigasse ameaças que ele, o senhor e outros parlamentares têm sofrido. Como lida com esse extremismo? Reforçou sua segurança pessoal? Já foi alvo de outro tipo de agressão?

R. Definitivamente, não. Eu não ando com segurança. Não uso, não gosto. Viajo semanalmente nos aviões de carreira. Não tenho muita preocupação com isso, apesar das ameaças, das intimidações, das agressões sobretudo pelas redes sociais. Mas, até com relação a isso, temos uma Comissão Parlamentar de Inquérito completamente diferente, com apoio absolutamente das redes sociais.

P. Como é esse apoio?

R. Antes do depoimento do Pazuello, eu pedi ajuda do internauta para elaborar perguntas. Em duas horas, recebemos 6.000 perguntas. Ao final do processo, chegamos a 28.000. É um exemplo da participação popular. Significa o pioneirismo na história das CPIs. Estamos ali, interrogando as pessoas e você fica ali, paralelamente consultando também o que a sociedade gostaria de perguntar. É tão nova que, depois do depoimento do Pazuello, ela pode, em tempo real, desfazer as mentiras que estão sendo ditas e reiteradas na comissão.

P. Essa contratação já foi feita?

R. Não. Nós íamos contratar uma empresa privada, mas por sugestão da direção do Senado, nós vamos montá-la na Agência Senado. Os jornalistas dessa agência vão fazer a checagem online. As mentiras são tantas e tendem a aumentar na medida em que, preferencialmente, eles seguirão negando o que aconteceu.

P. Os membros da base do Governo costumam dizer que o senhor teria interesse em blindar governadores, entre eles o seu filho, o governador de Alagoas. O que será apurado dos Estados efetivamente?

R. Não tem blindagem. O Governo tem algumas narrativas. Uma delas é essa que veio à tona quando o presidente, em uma conversa com o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO), recomendava que era necessário investigar os governadores para “fazer do limão uma limonada” e o presidente deixasse de ser o foco de investigação. A CPI tem foco determinado. É uma investigação política, claro. Mas ela ocorre toda vez que algo importante não está sendo investigado pelos canais convencionais, como Ministério Público, Polícia Federal. Aí, você escolhe um fato determinado, seleciona 27 assinaturas e faz uma investigação parlamentar. Não tem objetivo paralelo nenhum, não queremos desgastar o presidente nem a sua família, não queremos deixar de investigar governadores e não queremos, muito menos, antecipar o processo político de 2022. Pelo contrário. Foram eles, os governistas, que obstruíram a instalação da CPI, depois judicializaram a minha indicação para relatoria. No fundo, eles colaboram para que a conclusão de nossos trabalhos se aproxime do próximo ano, das eleições, mas numa estratégia absurda e burra.

P. Acredita que o prazo de 90 dias para o fim da CPI será cumprido ou já há a intenção de prorrogar os trabalhos?

R. No que depender de mim, vamos esgotar a investigação em 90 dias. Tenho me esforçado, trabalhado com foco para concluir no prazo. Mas CPI você sabe como ela começa, mas não sabe como ela termina. A investigação vai definindo os limites da própria investigação.

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