A inacreditável decisão do Exército de isentar Eduardo Pazuello de qualquer punição abre uma sinistra e inédita porteira institucional no Brasil.
Folha de São Paulo, Igor Gielow
A partir de agora, qualquer oficial ou praça, ao menos da Força terrestre, se sentirá liberado para emprestar apoio a políticos. Instituição de Estado, o Exército agora permite o serviço a governos —ou à oposição a eles, embora isso não esteja em questão agora.
A implicação da decisão, após uma reunião inconclusiva do Alto-Comando da Força na quarta (2), é ampla e aponta à anarquia.
Que Jair Bolsonaro trabalhou habilmente para trazer militares a seu lado, sob a ilusão de que controlariam o capitão reformado do Exército, isso é sabido.
Que eles tenham angariado apoio ao candidato na esperança de barrar a volta do petismo do poder e depois entrado, inclusive com oficiais da ativa, no governo, também é história contada.
Que o desagrado do presidente com a resistência do então ministro da Defesa, general da reserva Fernando Azevedo, à insistência do chefe em pedir apoio político das Forças levou à queda inédita de toda a cúpula militar em abril, igualmente.
Mas é inaudita a concessão feita pelo comandante Paulo Sérgio Nogueira à pressão de Bolsonaro, ainda mais em um ambiente em que o Alto-Comando era majoritariamente favorável a uma punição, ainda que branda, a Pazuello.
O erro central de Paulo Sérgio, que é conhecido pelo prenome na Força, foi não ter aplicado imediatamente uma punição a Pazuello, logo após o fatídico domingo (23) no qual o desastroso ex-ministro da Saúde achou conveniente subir num palanque e falar bem do presidente a seu lado. Sem máscaras, claro.
Para um experiente general da reserva, a janela de oportunidade foi perdida em nome da tentativa de composição. Quando Paulo Sérgio foi apresentado ao pedido impositivo de Bolsonaro pela isenção de Pazuello em encontro na Amazônia, como a Folharevelou, já era tarde.
Ou o comandante batia na mesa e fazia valer a vontade majoritária da cúpula verde-oliva e enfrentava as consequências disso, ou capitulava. Capitulou, abrindo um abismo anárquico que se insinua desde que Bolsonaro ascendeu ao poder.
O exemplo vem de cima. Pazuello sai incólume no momento em que policiais militares acham por bem prender pessoas que criticam o presidente ou, pior, atiram balas de borracha nelas. Qual será o limite para que a munição real seja empregada?
Até aqui, a ideia de que as PMs eram mais permeáveis do que as Forças à infiltração do bolsonarismo era prevalente mesmo entre os mais alarmados observadores do meio militar. Agora, com o sentimento de liberou geral no Exército, o que dizer das suas forças auxiliares estaduais?
Nesse sentido, ganha outra dimensão a presença de Bolsonaro na formatura de cadetes da PM de Brasília nesta semana, com o chefe da corporação gritando o lema da campanha do presidente ao fim da fala.
A anarquia também pode se dar de outras formas, como na presença de um sargento pedindo melhores soldos em live com o ex-líder do governo Major Vitor Hugo (PSL-GO), um desses deputados saídos do nada eleitos por sua patente na anômala eleição de 2018.
A linha riscada no chão pelo antecessor do comandante, Edson Leal Pujol, que disse que a política era imiscível com o meio militar, foi apagada novamente. Considerando que Paulo Sérgio estava longe de ser considerado um oficial bolsonarista, a sinalização é péssima para a democracia.
Ele se alinhava mais à escola de um comandante maior, Eduardo Villas Bôas (2015-19), que por sua vez já tinha alertado sobre o risco de politização dos quartéis, apesar de ter sido um dos donos da chave que abriu tal portão ao pressionar o Supremo Tribunal Federal a não conceder um habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.
A crise militar de abril havia dado uma oportunidade aos militares de se afastarem de vez dos males do bolsonarismo que abraçaram, com as devidas benesses como a reforma previdenciária e de carreira. Paulo Sérgio enterrou isso, salvo forte reação de seus pares.
Central também será a reação da Marinha e da Força Aérea, esta comandada por um brigadeiro de fortes inclinações governistas. Não parece que vai acabar bem.
Como disse Elio Gaspari, é um tipo novo de anarquia militar que se vê sob Bolsonaro. Por isso mesmo, demanda uma resposta institucional forte —de quem é a pergunta que fica, dada a bovinice do Congresso e a posição frágil do Supremo.
Militar insubordinado que saiu com o rabo entre as pernas do Exército em 1988, sob forte suspeita de liderar uma trama terrorista, Jair Bolsonaro foi tratado como pária pelos fardados estrelados até 2018. Agora, alcançou sua vingança.
É psicanálise barata, mas parece que ele conseguiu enfim matar o pai, simbolicamente, e com a ajuda de um mero oficial de intendência. Shakespeare não faria melhor.