Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil (Parte I)

Brasília comanda avanços de garimpos e desmatamentos no Brasil (Parte I)

por Cristina Ávila, no Jornal Brasil Popular/DF – Um tiro retumba na Estação Ecológica do Jari, na margem do rio que divide o Amapá e o Pará, e poucos minutos se passam até se revelar a autoria.

Dois homens liderados por um sujeito alto e magro saem da floresta portando um moderno fuzil de alta precisão. Ele tem nome e endereço fixo conhecidos pelos ribeirinhos extrativistas que circulam na região durante as safras de castanha e cacau. É um bandido que mata contratado por dinheiro, morador de Laranjal do Jari, município amapaense separado do paraense Almeirim pelas águas encachoeiradas perigosas por onde navegam voadeiras carregadas de combustível, equipamentos, víveres e trabalhadores que seguem para garimpos. A placa indicativa da unidade de conservação de uso integral, proibida a visitantes não autorizados, é como um desaforo impresso ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservacão da Biodiversidade), o órgão ambiental federal responsável por sua conservação. Tem furos de outras balas que testemunham disparos anteriores. O local afetado por resíduos de motores e lixo plástico de acampamentos é importante entroncamento para várias direções de viagens, e foi transformado em mercado privado rentável. Exploradores desse comércio ilegal construíram casa e levaram escavadeiras para dentro da reserva. A impossibilidade de as embarcações ultrapassarem a cachoeira Itacará se apresenta como oportunidade de ganhar dinheiro. Cobra-se R$ 1,2 mil pelo transbordo das tralhas dos garimpeiros no trator que percorre 1 km de chão batido, para assim retomarem seus trajetos pelo rio. O pistoleiro alto e magro atravessa a pequena enseada a passos lentos para o embarque. Sem se incomodar com olhares. A arrogância e destemor se explicam pela camiseta branca bem arrumada dentro das calças, estampada com a foto em preto e branco do presidente Bolsonaro.

Ouro valorizado – A cotação internacional do ouro foi alavancada pelo coronavírus (covid-19) e pela crise econômica ao recorde histórico de US$ 2.073 por onça (1oz é igual a 28,35 gramas) em 6 de agosto de 2020, fazendo-a saltar de US$ 1.160 em 2018. A pandemia que se alastrou pelo planeta desde o início impôs medidas sanitárias e quarentena, evitando a circulação nas ruas, restringindo até mesmo o trabalho ao máximo possível sem sair de casa. Mas investidores ocidentais tornaram o metal precioso em um dos ativos mais interessantes como cobertura financeira contra a volatilidade nos mercados de valores que se apresentava, e empurraram para as viagens em canoas pessoas como Maria Obertina Sales, a Beka, que sem máscara ou medo se animou mais ainda para a luta pelo seu ganho de vida, de cozinheira para homens nos garimpos. Em 16 de julho de 2021 a onça esteve em US$ 1.811, com reversão da tendência. Em junho, esteve em US$ 1.770 na bolsa de Nova Iorque, a maior baixa desde 2016, devido a preocupações com a subida de juros do banco central americano (Federal Reserve) para conter a inflação.

Beka já permaneceu por oito meses no Mamão e está seguindo para o Querecuruzinho, onde chegará em algumas horas de navegação por igarapés que partem do Jari. Na bagagem leva saquinhos com sementes de tomate, pimentão, cebolinha, cenoura. É o que faz para melhorar a qualidade de vida nos acampamentos. Os rendimentos dela dependem das oscilações nos mercados internacionais, mas vive alheia às preocupações dos investidores que consideram que se a inflação norte-americana sobe, o preço do ouro aumenta porque terão que ser pagos pelas pepitas mais dólares inflacionais. Especialistas, porém, avaliam que a longo prazo não há correlação significativa entre esses números. Segundo eles, um dos motivos é que o metal não é matéria prima estratégica, como o petróleo. Beka tem ancestrais alemães e indianos e uma avó negra. “A bisa nasceu no dia da Lei Áurea, era escrava, morreu bem velhinha”, conta com um sorriso simpático enquanto espera com fome para comer um feijão com carne enlatada com uma dupla de companheiras que saiu e está demorando pra chegar. Ainda bem que dispensou o embutido que é muito comum nas tralhas dos garimpeiros. Chega a dupla trazendo um pacuaçu já assado e um cupuaçu maduro e cheiroso.

Há trabalho para mulheres nos garimpos. E para jovenzinhos que deveriam estar na escola. Beka faz parte de uma rede de confiança que permite que durma tranquila em uma balsa rodeada por outras balsas cheias de homens. Um código de respeito é obedecido, pois de outro modo inviabilizaria o serviço que eles precisam delas. Em torno desses locais também se formam bordéis, onde os trabalhadores geralmente gastam tudo o que ganham. A inflação nessas beiras de rios também costuma ser medida pelos pulos nas bolsas de valores de Nova Iorque. Tudo segue pelas voadeiras, pilhas, alimentos, lonas para cobertura de abrigos, os galões azuis de combustíveis e também álcool, drogas, armas. As doenças estão no caminho. Já se tem constatado que a depender do tamanho dos garimpos a contaminação por mercúrio não atinge somente a cadeia alimentar por meio de peixes que podem transporta-la até 3mil km, mas que entre 30% a 72% dos garimpeiros podem desenvolver problemas neuropsicológicos pela inspiração pelo ar e crianças de mães que consomem a fauna aquática podem ter reduzida a capacidade intelectual.

O entroncamento do Itacará é cheio de surpresas. E as esperas são longas, pois não é fácil encontrar pilotos práticos e exímios que enfrentem o rio encachoeirado cheio piranhas, jacarés e uma bicharada sempre ávida por carnes de viajantes descuidados. Um desses pilotos é Samuel Pereira, índio Apalai, um dos povos da Terra Indígena Parque do Tumucumaque. Ele viaja com um cachorro branco chamado Menino e anda pelo rio porque constrói canoas e faz fretes para garimpeiros com suas mercadorias. Ganha mais do que um salário mínimo em poucas horas. Pelo menos R$ 1.200 por um frete. Também negocia barricas de castanhas. Longe de casa, aporta na margem do barranco onde está acampado um grupo de castanheiros. Procura um remédio para dor de dente. Tempos difíceis. Os especialistas garantem que nos momentos de incertezas, como nas guerras, o ouro permanece como investimento seguro. Os dólares movimentam a Amazônia ribeirinha. No isolamento das matas, o câmbio se paga com dores e com vidas.

Em meio ao contexto mundial e à crise política, o Brasil se destrói. Com valores monetários dos prejuízos dos garimpos muito maiores do que possam alcançar os lucros da atividade. “A extração de 1kg de ouro de aluvião gera em média 7 hectares de desmatamento e erosão de 15 mil m³ de solo. Uma área demora 30 anos para recuperação de 80% dos serviços ecossistêmicos”, afirma o economista Pedro Gasparinetti, diretor da Conservação Estratégica (CSF-Brasil), que com o Ministério Público Federal lançou em junho estudos sobre impactos do garimpo ilegal realizados por peritos de economia, da saúde e de outras áreas profissionais. Segundo levantamentos, somente na bacia do rio Tapajós (PA) os prejuízos somam mais de R$ 5,4 bilhões, com 4.547 hectares desmatados e 6,1 milhões de toneladas de sedimentos despejados nas águas da região e cerca de 369 mil pessoas dos 2,4 milhões de habitantes de 76 municípios sujeitas a risco de contaminação pelo mercúrio utilizado para amalgamar o metal. Os cálculos da CSF e MPF foram feitos para reduzir os erros na aplicação de multas por danos ambientais e valoração de processos judiciais mais próximas da realidade.

Pedro Gasparinetti ressalta que em um quilo de ouro vendido 30% é o lucro do dono do garimpo e o valor dos impactos será duas vezes maior do que a receita total bruta. Ou seja, muito superior ao lucro. “Se tiver um lucro de R$ 200 mil, o impacto pela extração pode chegar a R$ 2 milhões. Isso mostra que é importante que o valor da multa seja elevado como também é necessário investir em prevenção. O custo social e ambiental é o valor aproximado de quanto a gente deve utilizar para prevenção”, observa.

Serra Pelada não existe mais – Nos últimos anos, deixaram de existir garimpos artesanais, como ocorria em Serra Pelada, com uso de pás, picaretas ou de bateias. Hoje são utilizados maquinários pesados como retroescavadeiras, independentemente se estiver arrogante e criminosamente em uma unidade de conservação ou terra indígena. A atividade garimpeira tem três tipos: Aluvião, que ocorre com abertura de valas ou cavas abertas em geral na beira de rios, conhecido como garimpos de baixão ou de barranco, que são os mais comuns na Amazônia e causam mais desflorestamento. Outro é de balsa, realizado com dragagem de leitos dos rios, com mais graves contaminações por mercúrio. E ainda há o garimpo de poço, com extração do ouro em túneis subterrâneos. A valoração dos prejuízos é feita medindo-se, por exemplo, quantidade de ouro retirada, extensão de desmatamento em hectares, profundidade de escavações, comparados com benefícios naturais perdidos, como pesca, água potável, oportunidades de geração de renda, bioprospecção (exploração pela farmacêutica) perdidas por extinção de espécies, além de custos sociais e custos de recuperação das áreas afetadas.

“O garimpo ilegal está espalhado por todos os estados da Amazônia. No Pará está muitíssimo intenso e violento. As situações mais críticas estão nas terras indígenas Yanomami (AM e RR) e Munduruku (PA)”, afirma o procurador da República em Santarém (PA) Gustavo Kenner Alcântara. “É uma estrutura imensa de maquinários e investimentos. E cada vez mais se percebe que ações in loco exigem muitos recursos e são inefetivas. Como retirar mais de 20 mil garimpeiros do território Yanomami? É uma cidade. São investidos enormes recursos financeiros e facilmente os garimpeiros retornam. Somente estão lá porque o ouro tem caminhos para as grandes redes de mercado, para as multinacionais e o exterior”. Ele ressalta que os próprios garimpeiros são vítimas nas mãos do crime, com situações comuns de trabalho escravo e condições degradantes. E cita entre outras operações a Dilema de Midas, realizada em 2018 pelo MPF e Polícia Federal que desbaratou esquema de imputação fraudulenta de ouro proveniente de terras indígenas. “Todas as compras realizadas entre 2015 e 2017 eram ilegais”, observa o procurador Gustavo Kenner Alcântara. Os investigadores concluíram que o posto da Ourominas em Santarém comprou mais de R$ 72 milhões ilegalmente, 100% da produção.

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