Por Matheus Pichonelli – Cada dia que passa fica mais escancarada a dificuldade de Jair Bolsonaro compreender que o direito a governar o país por quatro anos, dado a ele pelo voto popular em 2018, não significa carta livre para transformar o Brasil em uma maquete ampliada do mundinho particular que habita sua cabeça.
A mais recente mostra dessa confusão está nas discussões o Exame Nacional do Ensino Médio, que o presidente e seus asseclas querem transformar no “Enem do Jair” e que levaram 37 servidores do Inep, o órgão responsável pelo exame, a se demitir por suposta ingerência do governo na elaboração de questões.
No começo da semana, Bolsonaro comemorou que as perguntas do Enem finalmente começavam a ter a cara do governo. O resto ficou subentendido, inclusive a suspeita de que ele teve acesso antes ao material —o que entraria na lista dos crimes de responsabilidade aos quais já responde. Para visualizar a gravidade do ato, pense no que faria um presidente bisbilhoteiro se ele já tivesse declarado (imagem meramente ilustrativa) que pretende beneficiar seus filhos, sim. Por sorte ou azar nenhum está na fase do vestibular.
A armadilha, vendida como polêmica, seguiu um roteiro conhecido. Primeiro Bolsonaro dá dois passos para cruzar a linha do absurdo e observa a repercussão. Em seguida decide se vai recuar um passo ou avançar mais. Qualquer uma das hipóteses já alterou a linha do aceitável.
Ao ser questionado sobre um possível acesso indevido ao material, Bolsonaro ludibriou dizendo que a maldade estava na cabeça de quem se exalta. E negou que tenha aprovado ou censurado qualquer questão. O mesmo fez seu ministro da Educação, chamado a explicar a declaração do chefe na comissão dedicada ao tema na Câmara. Milton Ribeiro se limitou a dizer que “cara do governo” era um modo carinhoso de dizer que o exame agora privilegiaria a “competência, honestidade e seriedade”.
Antes de prosseguir, fica aqui o registro para quem foi aprovado no exame em anos anteriores: na visão do atual governo, vocês só estão onde estão porque vocês e os responsáveis pelas provas não são competentes nem honestos nem sérios. São apenas seres lobotizados para dar as respostas certas para os governantes dos turnos anteriores. Para Bolsonaro, a versão antiga da prova de admissão na faculdade não media conhecimento, mas “ativismo político e comportamental”.
Falou o presidente que:
– soma 5 com -4 e diz que dá 9;
– confunde o enviado dos EUA para questões climáticas com o ator de “Debi & Lóide”;
– acha que vacina dá Aids;
– tentou curar o povo na pandemia com remédio para piolho;
– não consegue pronunciar corretamente palavras como “firewall”;
Se inteligência fosse critério para prova, Bolsonaro não tinha escolhido para sua equipe um secretário de Cultura que escreve “assesso” ou um ministro da Educação, já enxotado, que acha tudo “imprecionante”.
Do alvoroço é possível que Bolsonaro tire proveito —e isso ele já mostrou que sabe.
Se eu pudesse apostar, não jogaria as fichas na probabilidade de algum vestibulando se deparar no domingo com alguma questão pedindo para assinalar corretamente qual dos filhos do presidente é mais bonito, se o 01, o 02, o 03, o 04 ou todas as alterativas anteriores. Ou sobre as propriedades curativas da cloroquina. Nem Bolsonaro iria tão longe.
O que ele quer é sambar em cima do alvoroço que ele mesmo cria para depois posar de vítima e dizer que, como sempre, houve muito barulho por nada. É a deixa para afirmar que ideológicos eram os seus antecessores, não ele.
Só cai no conto quem não se lembrar que ele acaba de cassar a medalha do mérito científico de dois pesquisadores responsáveis por estudos que contrariavam as posições ideológicas do presidente: um médico que assinou um dos primeiros estudos que apontaram a ineficácia da cloroquina no tratamento da Covid e uma cientista que publicou uma cartilha sobre prevenção de doenças para pessoas trans. Na cabeça do presidente isso é pecado moral. É ele quem define quem é gente e quem não é.
Desde o primeiro dia de governo Bolsonaro não perdeu a chance de mostrar que em seu exame particular só passava de fase quem estivesse, ou fingisse estar, completamente alinhado com sua visão de mundo completamente ofuscada por suas obsessões. Mas para ele “ativismo político e comportamental” só quem faz são os inimigos.
É como diz a música, já citada aqui outras vezes: tudo aquilo contra o que sempre lutam é exatamente tudo aquilo que eles são.
Bolsonaro acusar alguém ou algum órgão de contaminação ideológica é como o Quentin Tarantino reclamar que algum filme pegou pesado nas cenas com sangue e violência. Não tem contradição —e falta de consciência de si — maior.