Mineradores clandestinos ouvidos pelo BdF ajudam a explicar proliferação da atividade que preda população ribeirinha
Murilo Pajolla – Brasil de Fato | Lábrea (AM)
A nova “corrida do ouro” que atraiu os olhares para o município de Autazes (AM) na última semana está longe de ser um fato isolado. Ao contrário, é um sintoma da crescente dependência econômica provocada pela mineração ilegal no rio Madeira nos últimos anos.
Sem incentivos para permanecer na agricultura, integrantes pobres das comunidades ribeirinhas vêm abandonando o roçado para se dedicar ao garimpo, que oferece alta e rápida lucratividade, enquanto produz graves danos socioambientais e acentua a histórica desigualdade social na região.
Depoimentos de garimpeiros colhidos pelo Brasil de Fato em agosto deste ano demonstram por que ações repressivas como a que destruiu dezenas de balsas no rio Madeira no último fim de semananão são capazes, por si só, de livrar a região dos crimes ambientais.
Em Novo Aripuanã (AM), mineradores ilegais protestam contra queima de balsas no rio Madeira / Reprodução/Facebook
“Na roça o colega se ferra. É um trabalho sofrido, mas o dinheiro é abençoado. Eu comparo assim porque o dinheiro que eu pego em ouro no final de semana eu compro qualquer coisinha e já era, já acabou.”
O depoimento é de um ribeirinho que vive em uma comunidade às margens do rio Madeira, perto do Município de Manicoré (AM). Aos 28 anos, ele se alterna entre o cultivo de bananas e a lavra garimpeira para sustentar esposa e seis filhos.
“Se hoje eu plantar, tipo, 500 pés de banana, vou tirar R$ 1 mil e pouco em cinco ou seis meses. Na balsa, se você trabalhar um mês, dependendo do ouro, você faz uns R$ 8 mil. Na roça você só se lasca”, calcula o homem, que pediu anonimato.
Seu primeiro “mandado” – nome dado ao trabalho freelance no garimpagem – foi na draga de propriedade do sogro, quando descobriu o potencial financeiro da atividade ilegal. Ele explica como os ganhos são divididos entre trabalhadores e os patrões.
“Em três dias eu e meu cunhado fizemos nove gramas [de ouro]. Saiu 40% para mim e para o meu parceiro, aí nós dividimos. Para cada um ficou R$ 1800. Meu sogro ficou um pouquinho mais porque ele comprou o rancho [alimentos] e o óleo para a balsa dele”, relembra.
Epidemia
Há aproximadamente 150 comunidades ribeirinhas espalhadas pelas margens do rio Madeira, apenas no trecho de 700 km entre Porto Velho (RO) e Manicoré (AM). Pelo menos 40% delas estão ou já estiveram envolvidas com a extração mineral.
A estimativa é de Jordeanes Araújo, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “É importante perceber como o garimpo ilegal imobiliza a força de trabalho local, por causa do intenso comércio de ouro e outros produtos. Isso mexe com a própria estrutura agrária dessas comunidades”, explica o docente.
“Várias comunidades estão praticamente envolvidas o ano todo com garimpo. Em muitos casos, 70% da renda acaba vindo dele. Tenho alunos da Ufam que abandonam a universidade em um determinado momento do ano para ficarem nas balsas”, observa o antropólogo, que acompanha indígenas e ribeirinhos no sul do Amazonas há mais de um década.
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O garimpeiro ouvido pelo Brasil de Fato opina: “Todos os anos nós trabalhamos mesmo só para alimentar nossa família, para se manter. Mas tem cara que não quer e está mais do que certo. É um trabalho ruim. Quando é bom é bom, mas tem dia que você passa uma semana na balsa e não consegue nada. Aí é prejuízo”.
Para ele, o garimpo significou uma oportunidade única de ascensão social. Com R$ 22 mil obtidos na coleta do ouro, construiu uma casa simples de madeira na comunidade, onde mora com a esposa e filhos.
“Na maioria das vezes a pessoa entra no ramo pensando em ter a balsa dele. Com 10 mil você compra uma pequenininha. Uma média, mas simples, dá uns R$ 25, R$ 30 mil”, relata o ribeirinho.
Mesmo com a oportunidade à mão, o ribeirinho diz não querer deixar a vida de agricultor para se tornar patrão do garimpo em tempo integral.
“Se eu tiver uma balsa, vou ter que me preocupar no rio e em terra, né, no bananal e na balsa. Aí, se eu deixo de fazer um trabalho e o outro não dá certo… Não quero ser rico, quero ter dinheiro para manter minha família”, afirma.
Quase sempre ocorrendo à beira das comunidades, a atividade garimpeira afasta os ribeirinhos do extrativismo e da conservação do ambiente, potencializando a poluição ambiental e dando espaço a outras ilegalidades, como o tráfico de drogas e a prostituição.
“Sabe o que estraga o garimpo? É esses caras que vem de fora. Se ‘amostram’, vão trabalhar tudo armado, cheio de bala. Aí já pega a culpa tudinho na gente”, diz, ao reconhecer a presença do narcotráfico em meio à extração ilegal de minério.
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Agro é garimpo
A explosão da mineração ilegal na bacia do Madeira foi traduzida em estatísticas por um levantamento do Mapbiomas. Segundo a organização, a área atingida mais do que dobrou entre os anos de 2007 e 2020, saltando de 37,5 para 96,6 quilômetros quadrados, o equivalente a todo o perímetro urbano de São Bernardo do Campo, cidade na região metropolitana de São Paulo.
A principal responsabilidade sobre esse crescimento recai sobre o agronegócio, que injeta dinheiro no garimpo, sob incentivo do presidente Jair Bolsonaro (PL), encorajador da atividade predatória e em cujo governo a fiscalização ambiental foi desmontada.
Segundo o professor da Ufam, o dinheiro que abriu caminho para exploração mineral em larga escala na bacia do rio Madeira é o mesmo a financiar a devastação ambiental no chamado arco do desmatamento, que avança sobre a Floresta Amazônica.
“Na maioria dos casos, os responsáveis pela expansão da fronteira agrícola são os grandes investidores e fazendeiros, que detêm um grande número de balsas. Mas tem também aquele morador que vendeu um terreno, uma moto, para financiar sua empreitada”, alerta Araújo.
No Amazonas o garimpo é proibido, mas não é segredo para ninguém / Reprodução/Google Street View
Sem políticas públicas de incentivo à agricultura familiar ou acesso a direitos sociais como saúde e educação, a população vê no garimpo uma alternativa possível de melhoria das condições de vida.
“O governo federal estimula e o agronegócio financia a garimpagem no rio Madeira. E esse pai ou mãe de família acaba sendo ludibriado pelo dinheiro. A lavra garimpeira reproduz, portanto, uma situação colonial”, assinala o sociólogo.
Repressão
Após o deslocamento em massa de mineradores ilegais para a comunidade de Rosarinho ganhar manchetes, a Polícia Federal e as Forças Armadas ocuparam a região e destruíram 130 balsas. O procedimento é considerado ineficaz para o professor da Ufam.
“Penso que nesse momento o ato de queimar as dragas só atiça ainda mais a atividade garimpeira no rio Madeira. Porque os políticos locais apoiam os garimpeiros, tanto em investimentos, quanto no financiamento de novas balsas”, opina Araújo.
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Para os latifundiários que investem parte de seus lucros na mineração clandestina, a operação pode não representar prejuízo significativo. Mas o mesmo não vale para o setor mais pobre dos garimpeiros, composto majoritariamente pela população local.
“Depois da última operação, os vereadores, prefeitos de cidades como Manicoré e Humaitá [onde vivem mineradores ilegais] fizeram reuniões recentes em apoio à atividade, que movimenta a economia desses municípios”, expõe.
Nos últimos dias, a presença das forças federais de segurança parece ter desmobilizado temporariamente a garimpagem na região. Mas postagens em redes sociais confirmam que a prática já começa a se recompor.
Publicação mostra draga escondida esperando fim da fiscalização da Polícia Federal / Reprodução/WhatsApp
“Corrida do ouro” é antiga
Em agosto deste ano, a reportagem conversou, também sob a condição de anonimato, com um segundo garimpeiro que viajava pelo rio Madeira.
Ele relatou ter deixado um garimpo ilegal em Aruiquemes (RO), município conhecido pela exploração da casseterita, da qual se extrai o estanho utilizado pela indústria na produção de ligas metálicas.
“Teve uma operação policial e eu tive que sair de lá. Tenho colega que pegou R$ 25 mil de multa no CPF por crime ambiental. Se você é trabalhador, é preso. Se você é bandido, é preso. Então é complicado”, afirmou o minerador ilegal.
Três meses antes da invasão de balsas em Autazes (AM), ele era um dos muitos garimpeiros de outros estados a explorar a bacia do Madeira, já conhecida pela falta de fiscalização e pela abundância de ouro.
“Ou você mete a cara e faz o trabalho ilegal para você ter o sustento da sua família ou você vai passar necessidade. Não pode ter egoísmo. Porque é uma coisa que Deus deixou. Ouro é uma coisa da natureza”, diz.
Segundo o pesquisador da Ufam, a garimpagem na região remonta à década de 50. Os primeiros a buscarem ouro eram do Mato Grosso e chegaram até o grande Madeira por um de seus afluentes, o rio Ji-Paraná, mais conhecido como rio Machado.
“Se a mineração no Madeira começou há cinco décadas e só enriqueceu quem tem recursos financeiros para construir diversas dragas, o que resta para os moradores das comunidades é a condição extrema da pobreza quando esse ouro acabar”, prevê Araújo.
O cenário atual da exploração do ouro na região, com centenas de balsas equipadas com maquinário especializado, se concretizou com a operação das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio a partir de 2014.
“O volume dessas usinas fez com que o solo do rio Madeira jogasse na superfície uma camada de ouro. Aí então acontece um boom de garimpagem, apesar do monitoramento feito pelas agências federais de fiscalização”, acrescenta o professor universitário.
Para o ribeirinho que atua no garimpo, um fator decisivo para a migração à atividade ilegal foi a cheia histórica do Madeira em 2014, que devastou comunidades e praticamente acabou com a produção agrícola beira-rio.
“Todo mundo só trabalhava em agricultura, banana, roça. A maioria esconjurava garimpo. Quando veio a enchente de 2014 é que acabou com tudo. Em 2015 de Manicoré para cima juntou mais de 300 balsas. A cada ano que passa vai aumentando.”
Mercado aquecido
Vinculado ao dólar, o preço do ouro vem apresentando alta no mercado internacional e tornando o garimpo ainda mais lucrativo. Extraída do fundo do Madeira, a substância é transportada rio acima até a Bolívia, de onde ganha outros continentes.
Segundo os garimpeiros ouvidos pela reportagem, o mais comum é que os próprios funcionários das balsas fiquem com 40% do ouro recolhido, enquanto o restante fica com o patrão. Ambos procuram, então, a melhor proposta e vendem para a pessoa responsável pelo transporte.
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“Esses caras que levam [o ouro do Madeira] ganham muito. Ele chega lá já derretido, na barra, mais caro já. O próprio dono desse barco compra ouro”, conta com naturalidade o ribeirinho que trabalha na mineração clandestina, a bordo de uma embarcação que transporta centenas de passageiros sobre as águas do Madeira.
Devastação ambiental
Segundo o Greenpeace, o rio Madeira é o mais biodiverso entre os afluentes do rio Amazonas. Os peixes, fundamentais na alimentação das populações tradicionais da floresta, atuam como concentradores naturais do mercúrio utilizado no garimpo.
Pesquisas demonstram que, ao serem consumidos pelos seres humanos, o minério pode causar graves problemas de saúde nos rins, fígado, aparelho digestivo e no sistema nervoso central. Um exemplo é a Terra Indígena Yanomami, cujas crianças estão tragicamente comprometidas pela desnutrição. .
“A conservação da Amazônia é um elemento central quando falamos sobre os esforços globais para conter a crise climática e da biodiversidade. A extração do ouro causa sérios impactos no ecossistema e certamente está aprofundando a crise ecológica do bioma”, afirma Carolina Marçal, porta-voz da campanha Amazônia do Greenpeace.
Para ela, existe uma clara relação entre a expansão descontrolada do garimpo na bacia amazônica, o sucateamento dos órgãos de fiscalização e as diversas medidas em tramitação no congresso que buscam flexibilizar a legislação socioambiental.
“O poder de destruição que o garimpo tem sobre os rios da Amazônia é enorme, a atividade predatória ameaça a integridade ecológica das áreas atingidas. O assoreamento dos rios e a contaminação por mercúrio são alguns dos muitos impactos causados pela atividade”, destaca a integrante do Greenpeace.